SOBRE AS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA NO BRASIL

1 AS MATRIZES AFRICANAS E AFRO-BRASILEIRAS


Os africanos que foram trazidos para o Brasil, vieram também com suas culturas originais e todo um corpo de crenças e rituais religiosos. Atualmente as religiões africanas se firmam de maneira flagrante de norte a sul do país, graças ao sincretismo entre elas próprias, entre elas e o catolicismo, entre elas e crenças dos nativos (índios) e entre elas e o espiritismo.

Esse fenômeno foi muito acentuado no Brasil devido às condições do sistema escravista, que misturava nas senzalas, africanos de diversas etnias e crenças e, obrigava o escravo a aderir a crenças que não eram as suas, como forma de sobrevivência dentro do sistema.

Uma vez que o catolicismo era a religião oficial durante o período colonial e imperial no Brasil (1500-1889), as manifestações exteriores das demais religiões e suas práticas rituais foram comprimidas pela Igreja. Esse fato criou a necessidade dos negros utilizarem o sincretismo de suas crenças com as da Igreja, mascarando seus deuses com os nomes de santos católicos, como forma de resistência cultural. Com tal subterfúgio, respeitavam a lei, a Igreja, e continuavam cultuando seus deuses africanos. Porém, observa-se que:

As religiões africanas que podiam teoricamente implantar-se no Brasil eram tão numerosas quanto as etnias para aqui transportadas. Entretanto, pode-se aqui fazer uma observação de ordem geral, a de que todas essas religiões, sem exceção, estavam estreitamente ligadas às famílias, às linhagens ou aos clãs. (BASTIDE, 1985, P. 87).

Sendo assim, como em condições tão adversas como as da escravidão (que separava famílias e misturava clãs), uma religião tão ligada à família, linhagem ou aos clãs, poderia resistir?

Para responder a essa pergunta, é necessário primeiro, definir as diferenças básicas de crenças entre os negros da África Ocidental no norte (sudaneses, principalmente no Brasil das etnias nagô da Nigéria também chamados iorubás e jêje do Daomé), dos bantos do sul da África (Angola, Moçambique, Congo).

Os bantos veneravam os ancestrais familiares, sendo o pai de família quem exercia o sacerdócio; os ancestrais do chefe são objetos de culto por parte de todos os membros da tribo e servem de intermediários entre os homens e o Deus supremo, deus do céu ou da chuva. Da mesma forma, o culto dos antepassados domina também a religião dos negros de Angola e do Congo.

Já entre os iorubas e daomedanos,

ocorre uma dupla religião, rural e urbana, onde acredita-se que todo homem descende de uma divindade, sendo que todos os membros de uma família descendem da mesma divindade. Cada deus tem uma função determinada que lhe é própria. É preciso que cada propriedade possua um altar do deus familiar onde o serviço seja assegurado por um intermediário ou um preposto, um sacerdote familiar. Da mesma forma, cada comunidade urbana tem necessidade, para que cada grande deus possa agir bem ou mal sobre ela própria, de um templo, de um santuário onde as (...) cerimônias sejam celebradas por um grão-sacerdote ligado a cada deus. (FROBENIUS, pp. 122-23).

Assim, os bantos reinterpretaram as outras religiões do Brasil, a religião indígena, a religião católica, e a religião de outras etnias africanas em termos do culto dos mortos. Para os iorubas e daomedanos, isso já era mais difícil, já que eles se dirigiam menos aos ancestrais que às divindades, mas ainda assim, esses cultos transformavam em deuses reis ou heróis que viveram na terra, divinizando-os após sua morte, dando ao transe um papel central em seus rituais, coisas estas que podiam ajudar os bantos da costa do Atlântico a redefinir suas religiões em termos iorubas.

No catolicismo, os bantos enxergaram os santos como “intermediários” entre os homens e o deus supremo, adaptando assim a sua concepção de intermediários com uma roupagem católica. O fato de existirem santos negros, possibilitava a concepção de que estes santos pudessem ter sido ancestrais, não familiares, mas nacionais. Por isso os bantos foram mais permeáveis à aceitação de confrarias. Posteriormente, quando o espiritismo se desenvolve no Brasil, com os fenômenos de mediunidade e de incorporação dos mortos, é que ele fornecerá a melhor solução aos últimos bantos importados, ou aos seus descendentes, para reinterpretar em termos europeus a religião de seus pais.

Por outro lado, o aspecto da religião ioruba-daomedana que cultua os deuses da natureza em benefício da comunidade, por sacerdotes urbanos rodeados por uma confraria de iniciados, era possível no quadro das “nações”, reconstituídas pelo governo português, depois pelo brasileiro, a fim de evitar, exaltando as rivalidades interétnicas, a formação de uma consciência de classe e a revolta geral dos negros contra os brancos. Esse aspecto nacional em sobreposição ao aspecto doméstico da religião dos iorubas-daomedanos, achou nas organizações dos cantos, das nações, das reuniões de dança, dos batuques, os “nichos” apropriados para se ocultarem e sobreviverem. Outro aspecto que se readaptou em função da pressão do sistema, foi o de que na religião dos iorubas-daomedanos, cada divindade tem seu local próprio de culto na África. No Brasil, cada candomblé terá, sob autoridade de um único sacerdote, o dever de render homenagens a todas as divindades ao mesmo tempo e sem exceção.

Para compreendermos essas nações, batuques ou confrarias, “é necessário recolocá-los na sociedade total da época, caracterizada pela monocultura, pela escravidão e pela grande propriedade”. (BASTIDE, 1985, p. 91).

Sobre este prisma, a manutenção das religiões africanas deve ser vista definitivamente entre o dualismo de classes opostas. A luta das civilizações é somente um aspecto da luta das raças ou das classes econômicas no seio de uma sociedade de estrutura escravista.

O negro não podia se defender materialmente contra um regime onde todos os direitos pertenciam aos brancos; refugiou-se, pois, nos valores místicos, os únicos que não lhe podiam arrebatar. Foi ao combate com as únicas armas que lhe restavam, a magia de seus feitiços e o mana de suas divindades guerreiras. (...) Em suma, a cultura africana deixou de ser a cultura exclusiva de uma classe social, de um único grupo da sociedade brasileira, a de um grupo explorado economicamente e subordinado socialmente. (BASTIDE, 1985, P. 96).

2 – SINCRETISMO COMO FORMA DE ADAPTAR-SE À NOVA ORDEM SOCIAL

O ano de 1930 marca duas fases distintas da história brasileira. Até os anos 30, observa-se a desagregação do antigo sistema: o fim de uma sociedade que baseava sua produção no trabalho agrícola; depois de 1930 temos a consolidação do movimento que se esboçava desde os fins do século XIX: a urbanização, a industrialização, a sociedade de classe, tornam-se realidades sociais, permeadas pelo sangue negro do escravo que se tornou proletário. É interessante notar que a formação da Umbanda segue as linhas traçadas pelas mudanças sociais. “Ao movimento de desagregação social corresponde a organização da nova religião”. (ORTIZ, 1978, p. 29).

Para subir individualmente na estrutura social, o negro não tem alternativa, ele precisa aceitar os valores impostos pelo mundo branco; ele vai pois, recusar tudo aquilo que tem uma forte conotação negra, afro-brasileira. Existe um desejo de embranquecimento que corresponde a um complexo de inferioridade do negro diante do branco, decorrente da posição inferior do negro no sistema escravocrata brasileiro. (ORTIZ, 1978, p. 30).

Por outro lado, ocorre o movimento de uma camada social branca, em direção às crenças tradicionais afro-brasileiras; uma aceitação do fato social negro, e não uma valorização das tradições negras. Negros, mulatos, portugueses, à miséria da cor soma-se a miséria de classe; a favela torna-se o foco do feitiço, o lugar onde se agrupa uma classe marginal à sociedade, que tem como único consolo a religião e as práticas mágicas que se enriquecem na medida em que cada povo traz a sua contribuição. O imigrante e o negro encontram-se lado a lado numa situação de classe; o espiritismo vai atingi-los, muito embora ele tenha que se transformar acentuando particularmente a sua dimensão mágica. O sincretismo não se limita a uma correspondência entre deuses africanos e santos católicos, agora é o próprio universo mítico afro-brasileiro que é atingido.

A desagregação da memória coletiva negra se dá, portanto, no interior dos próprios cultos afro-brasileiros, particularmente nas nações bantos. É esta etnia que tende a sincretizar, com maior facilidade, suas crenças com a corrente espírita kardecista, dando assim nascimento ao que se costuma vagamente chamar de “baixo espiritismo”. O terreiro da macumba vai reproduzir a estrutura das casas de candomblé, reinterpretando-a, porém, segundo as necessidades de uma nova situação social. Por exemplo, conserva-se o altar do santo protetor, mas elimina-se o fetiche preparado com o sangue dos sacrifícios, que se encontra no “pegi”. Substitui-se ainda o fetiche do deus pela imagem católica que lhe corresponde.

3 – A VISÃO DO KARDECISMO E A DESAGREGAÇÃO DA MEMÓRIA COLETIVA NEGRA

O espiritismo kardecista procura desvencilhar-se de toda conotação “proletária”, “miserável” ou “negra” que poderia assimilá-lo a esse gênero de práticas. Os espíritos da macumba são eliminados das mesas brancas, que se recusam a aceitá-los, criando um mecanismo seletor, resguardando a “pureza” daqueles que freqüentam o centro. A rejeição de entidades espirituais da macumba se traduz na rejeição ao negro e à uma classe social. Isso se dá no nível espiritual e na prática com a crítica ao despacho de Exu, das bebidas das divindades, dos charutos dos caboclos, etc. Esta recusa atinge também os espíritos dos índios.

Na religião espírita ocorre, portanto, essa resistência ao contato com as tradições mágicas. Ao contrário, isso não acontece nas crenças afro-brasileiras. Porém,

(...) paralelamente à desagregação da memória coletiva negra, existe um movimento de resistência: o candomblé representa bem esta corrente que quer preservar o mundo simbólico afro-brasileiro. Mas, na medida em que o negro se integra na nova sociedade brasileira, o movimento de desagregação se acentua. (ORTIZ, 1978, p. 43).

As práticas dos candomblés tornam-se incongruentes com as da sociedade; a “camarinha” é para os fiéis um gasto de tempo excessivamente longo, numa sociedade onde o trabalho assalariado é a ocupação primordial. No nível dos símbolos, os sacrifícios de sangue são cada vez mais conotados como “bárbaros”; no plano individual, o candomblé exige ainda uma adesão e submissão incondicional à personalidade do pai-de-santo, o que se opõe à liberdade recentemente adquirida pelos cidadãos. Dois caminhos se abrem aos negros: o retorno à tradição, o que implica na adoção dos rituais do candomblé, ou a integração na sociedade, o que leva, senão à renúncia da tradição, ao menos à reinterpretação desta segundo novos valores sociais.

4 – O SURGIMENTO DA UMBANDA COMO SOLUÇAO ORIGINAL

A Umbanda surge como canalização de um movimento de desagregação das antigas tradições afro-brasileiras. Porém, reinterpreta, normaliza, codifica estas antigas estruturas, para que elas perdurem no sistema. Os elementos genuinamente africanos, ou melhor, afro-brasileiros, são rejeitados pela camada de intelectuais kardecistas (brancos e mulatos de “alma branca”), que são os criadores da Umbanda.

A Umbanda que nasce retrabalha os elementos religiosos incorporados à cultura brasileira por um estamento negro que se dilui e se mistura no refazimento de classes numa cidade que, capital federal, é branca, mesmo quando proletária, culturalmente européia, que valoriza a organização burocrática da qual vive boa parte da população residente, que premia o conhecimento pelo aprendizado escolar em detrimento da tradição oral, e que já aceitou o kardecismo como religião, pelo menos entre setores importantes fora da Igreja Católica. (PRANDI, 1991, p. 49).

As atitudes decisivas foram a adoção da língua vernácula, a simplificação da iniciação, com a eliminação quase total do sacrifício de sangue, iniciação que ganha, ao estilo kardecista, características de aprendizado mediúnico público, o desenvolvimento do médium. Mantém-se o rito cantando e dançado dos candomblés, bem como um panteão simplificado de orixás, já porém há muitos anos sincretizados com santos católicos, reproduzindo-se, portanto, um calendário litúrgico que segue o da Igreja Católica, publicizando-se as festas ao compasso deste calendário. O centro do culto, no seu dia-a-dia, estará ocupado pelos guias, caboclos, pretos-velhos e mesmo os “maléficos” e interesseiros exus masculinos e femininos já cultuados em antigos candomblés baianos e fluminenses. A Umbanda incorpora na doutrina verdades teologais do catolicismo – fé, esperança e caridade -, as grandes virtudes católicas adotadas pelo kardecismo, e procura emprestar dessa religião seus modelos de organização burocrática e federativa. Seu panteão tem à frente orixás-santos dos candomblés e xangôs, mas o lugar de destaque está ocupado por entidades desencarnadas semi-eveméricas, à moda kardecista e africana, ou encantados de origem desconhecida, à moda dos cultos de maior influência indígena: os catimbós, os candomblés de caboclos, de onde também se originam certas práticas rituais.

Porém vale lembrar que até o final da ditadura Vargas, assim como antes e pouco depois, a Umbanda experimentou sistemática perseguição da polícia. Mas quando os anos 50 terminam a Umbanda vê sua taxa de crescimento aumentar, vendo três décadas depois a sua celebração como uma religião genuinamente brasileira.

5 - CONCLUSÃO

Apesar das condições adversas da escravidão, misturando as etnias, fragmentando as estruturas sociais nativas, impondo aos negros novo ritmo de trabalho e novas condições de vida, as religiões transportadas do outro lado do Atlântico não estão mortas. A religião ou as religiões afro-brasileiras foram obrigadas a procurar nas estruturas sociais que lhes eram impostas “nichos” onde pudessem se integrar e desenvolver. O sincretismo com a religião católica foi uma das opções de resistência e manutenção de rituais africanos dentro do sistema escravista.

Com as mudanças econômicas, políticas e sociais advindas da nova forma de organização urbana industrial, principalmente a partir de 1930, as religiões afro-brasileiras se readaptaram ao novo sistema, sincretizando-se com outras religiões. Ocorreu a busca por uma “elevação” social de uma camada da população marginalizada, adotando o pressuposto de que as matrizes negras africanas tradicionais deviam ser “camufladas” por uma roupagem branca, influenciada pelo catolicismo e posteriormente pelo kardecismo, e que se adequassem a nova ordem social. Essa visão que busca moldar os rituais genuinamente africanos aos valores brancos permanece até hoje na Umbanda, como exemplificado (grifado) na reportagem do ANEXO I. Nela, observa-se que o ritual de sacrifício de animais não é permitido no “Vale dos Orixás” (Santuário Nacional da Umbanda) – ponto turístico e local de realização de encontros de adeptos de religiões afro-brasileiras para realização de cultos. O proprietário do local (pai Ronaldo) que se declara ex-candomblecista e atual umbandista e pai de santo, utiliza o argumento de que no local os valores de preservação ecológica são primordiais, sendo, portanto, inaceitável o sacrifício de qualquer forma de vida. Observe aqui também um outro ponto: a atual necessidade social de preservação ecológica molda uma nova demanda de atitude em relação ao ritual de sacrifício de animais dentro da religião e uma nova forma social de enxergar o sacrifício. Foram estas demandas sociais e maneiras diferenciadas de acordo com a época que influenciaram mudanças internas nas religiões afro-brasileiras ao longo da história.

Porém o sincretismo neste período não foi apenas superficial. Ele mudou a estrutura interna e espiritual das religiões afro-brasileiras. Como o kardecismo era seletivo em relação aos negros, índios e classes sociais marginalizadas houve a necessidade de uma nova proposta de religião em que essas camadas e os espíritos e entidades que elas cultuavam poderiam participar, porém ainda com uma nova roupagem que misturou a moral católica, com aspectos do kardecismo e outros das religiões africanas e indígenas também anteriormente já sincretizadas. 

Portanto, a Umbanda surge como solução original para o problema da exclusão de classe e racial de uma camada da sociedade brasileira situando-se como uma religião que incentiva a mobilidade social como oportunidade aberta a todos, sem nenhuma exceção. O status social não está mais impresso na origem familiar. Trata-se agora, para cada um, de mudar o mundo a seu favor. E essa religião é capaz de oferecer um instrumento a mais para isso: a manipulação do mundo pela via ritual.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das interpenetrações de civilizações. Trad. Maria Eloísa Capeleto e Olívia Krähenbühl. 2ª edição. São Paulo: Pioneira, 1985.
MORETTI, Fernado. Vale dos Orixás: Pai Ronaldo revela toda a sua história. Revista Orixás Especial, São Paulo: Editora Minuano, nº 10, janeiro, 2006.
ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro. Petrópolis: Editora Vozes Ltda, 1978.
PRANDI, Reginaldo. Os candomblés de São Paulo: a velha magia na metrópole nova. São Paulo: Editora Hucitec da Universidade de São Paulo, 1991.

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