ENTREVISTA COM MESTRE JACARÉ (LUIS MÁRIO LADEIRA) - DA TURMA DOS PRECURSORES DA CAPOEIRA EM BH

 1ª SEMANA DA CULTURA BANTUS CAPOEIRA – JULHO DE 2004.

TEMA: ANTIGOS MESTRES DE CAPOEIRA DE BELO HORIZONTE / MG
EQUIPE DE TRABALHO: JUNINHO (Geraldo Tadeu), DINAMITE (gringo australiano), PIMENTA (Patrícia), SABIÁ (Mariana).

ASSUNTO: MESTRE: LUIS MÁRIO JACARÉ

Entrevista concedida por Mestre Jacaré à equipe de trabalho do Grupo Bantus Capoeira, no dia 18 de julho de 2004. Gravada em fita K7, transcrita abaixo, na íntegra.

Só prá vocês terem uma idéia, a capoeira aqui era tão desconhecida, isso na década de 60, era tão desconhecida, que quando se falava capoeira, era o que chamamos de rasteira. Quando se falava que ia dar um golpe num cara se dizia vou dar uma capoeira no cara... Ou seja, nem se tinha idéia do que era capoeira. Nesta época só na Bahia que a capoeira era desenvolvida. Nem no Sudeste, só em Salvador mesmo. Até no interior da Bahia não me lembro de capoeira.

Eu conheci a capoeira foi por coincidência. Eu tive uma prima que casou com um baiano. Eu não tive irmãs, então essa prima era que nem uma irmã pra mim. Então ela casou com um baiano que ela conheceu no Rio e foi morar em Salvador. No 1º ano que ela tava lá eu fui a Salvador porque eu queria conhecer Salvador também. E era férias, eu tava no 4º ou 5º ano de Engenharia, assim fiquei lá um mês. Esse marido da minha prima me perguntou lá se eu conhecia capoeira. Eu falei que não, só de nome né? Aí ele disse: - então vou te mostrar que coisa bonita.

O 1º lugar que me levou foi no Mercado Modelo e o pessoal jogava pra correr o chapéu lá pra turista etc e tal.

Ah, era uma roda, Mestre?
É eles tinham uma roda na porta do Mercado que funciona hoje. Mas hoje ela ta totalmente deturpada né?

Quem era o Mestre que puxava essa roda?
Não tinha mestre não, tinha vários capoeiristas. Tinha um chamado Gato, outro chamado Zé de Mola, tinha Macaco Branco, Macaco Preto, Cebolinha... Depois eles todos ficaram meus amigos. A capoeira que se jogava no Mercado era assim: eles ficavam ali o dia inteiro achacando turista. Faziam um joguinho muito sem vergonha né? Falavam que era angola mas não era nada, faziam muito aquela posição de descanso né? (Chamada de angola), aí rodavam o chapéu né? E nessa época a capoeira na Bahia tava no auge com os mestres todos: o Bimba tava no auge, Pastinha tava cego mas a academia dele tava no auge tocada pelos seus alunos, o João Grande. Tinha o Caiçara, o Mestre Gato, tinham outros mestres mas os principais eram esses: Bimba, Pastinha, Caiçara e Gato todos com academia né? E academias muito bem montadas. Pastinha dava aulas no Terreiro de Jesus, se não me engano, o Bimba dava aula lá também.

Aí o Sr. Viu e fez esse primeiro contato?
Eu vi, mesmo essa capoeira sem vergonha que jogavam no Mercado, aí fiquei doido com capoeira e comecei né? Onde que tinha mais? Aí nesse mês eu fiquei por conta de capoeira, total, fui várias vezes no Bimba, fui várias vezes no Pastinha...

Mas aí o Sr. Começou a jogar mesmo né?
Não, só olhei, né? Só olhei. Eu ia como observador, ficava admirado com aquela plasticidade da capoeira né? As academias tinham características diferentes, né? O Bimba tava lançando a capoeira regional, que ele criou uma série de seqüências combinadas. Que o pessoal de angola não gostava nem a purrete, né? O pessoal da angola gostava de jogar solto, etc e tal né? E o Bimba não, ele tinha uma série de seqüências, não sei se tem até hoje, tinha assim, era queixada, dava uma armada e o terceiro já era um chapéu de couro, aquele trem bem ensaiado mesmo né? E o jogo muito mais em pé do que no chão. Ah, tinha um tal de Carlos Sena lá, eles tinham muita rivalidade entre si. O Carlos Sena meteu faixa na capoeira, o resto não concordava, etc e tal, sabe como é?

Bimba já trabalhava com lenço?
Acho que nessa época, assim com cordel, ele não tinha não, só tinha seqüência, né? Seqüência nº 1, nº 2, nº 3. Mas esse negócio de lenço eu não me lembro disso não. Agora o Bimba foi o que eu menos freqüentei na época porque ele era extremamente mal educado, casmurro e mercenário. Pra ver os treinos dele você tinha que dar dinheiro, tinha que pagar, etc e tal. O Bimba não era simpático nem um pouquinho né? Já o Pastinha era espetacular, o Caiçara era espetacular, Mestre Gato era espetacular... Tinha um que não dava aula de capoeira, mas fabricava berimbau, chamava Valdemar, que ficava lá na Liberdade. Eu comprei, trouxe o porta-malas lotado de berimbau dele. Mas esse foi o primeiro contato que eu tive e foi amor a primeira vista, sabe? Eu não fiz mais nada, não ia à praia e como eu fui em janeiro, peguei o grosso das festas de Largo né? E fui ficando...

E aí o Sr. Já começou a jogar?
Não porque eu não sabia nada. Eu ia na má nota mesmo. Eu comecei a só observar, observar, observar, anotar tudo que eu assistia, os cara começaram a me conhecer de tanto que eu ia...

E como foi colocada essa paixão aqui em Belo Horizonte?
Pois é, agora o mais estranho, o mais engraçado era o seguinte: eu achei um livrinho lá chamado “Aprenda Capoeira Sem Mestre”, sabe como é? Então eu comprei aquele livrinho e lá na Bahia mesmo eu já começava com o que eu via e com o que eu lia no livro. Mas era uma dificuldade aqueles bonequinhos (ilustrações do livro) levantando as pernas, mas Nossa Senhora... E outra coisa, capoeira é bom pra quando a pessoa já começa novinha né? Eu sempre pratiquei esportes, mas minha formação física era diferente. Não tinha nenhum tipo de alongamento, não fazia nenhum tipo de alongamento e comecei a forçar aquela barra, etc, etc. E comecei a ensaiar alguns passinhos, mas não o suficiente pra ter coragem de entrar numa roda deles né? Que ia ser ridículo né? E outra coisa, comecei a assistir muito, tinha muita capoeira em festa de Largo, aí misturava todo mundo, todas as escolas, etc e tal e foi aonde que eu via pancadaria em capoeira. Porque nas academias não tinha, mas em, festa de Largo misturava academia, começava a sair porrada e o mais engraçado, é que capoeira quando acirrava o negócio, eles partiam pra cima do outro não com capoeira, aí já virava puxada de cabelo, rolava no chão, virava briga de rua mesmo. Mas isso não era muito comum não, costumava acontecer, né?

Bem, mas eu lutava judô naquela época, larguei imediatamente, pensando: vou ter que mexer com isso (capoeira), fiquei treinando sozinho, trouxe umas fitas, quer dizer, Super 8, não tinha nem fita de vídeo, não tinha vídeo. E falei: pôxa, como é que eu vou fazer? Dar aula disso vai ser meio charlatanismo etc e tal né? Fiquei treinando com meus irmãos, mostrei pra eles, mas eles não se interessavam não porque não viram né? Aí, alguns meses depois, casualmente, vi num cantinho de jornal assim: “Encontra-se em Belo Horizonte professor Antônio Maia Cavalieri de capoeira que vai ministrar um curso de capoeira na ACM: Associação Cristã de Moços”. Aí eu fui o primeirão. Dia tal abre inscrição. Fui o primeiro a me inscrever né? E esse cara é o Toninho Cavalieri que foi o, digamos assim, primeiro mestre que chegou aqui. Toninho era, a informação dele era muito mais estranha do que a minha. Porque ele era de Juiz de Fora, nunca tinha ido à Bahia e começou a aprender capoeira com um cara que veio do Rio, que nós não sabíamos absolutamente nada. Então era um saco de gato, né? E eu, aluno do Toninho, comecei a mostrar pra ele as minhas experiências de Salvador, o que eu trouxe em Super 8, e passei a ser o 1º aluno dele e acho que colaborei muito também para o próprio desenvolvimento da capoeira dele. Porque muita coisa ele não sabia, ele tinha sido aluno de um cara que foi aluno do Bimba, que desceu pro Rio e foi parar em Juiz de Fora não sei por causa das quantas etc e tal né?

Só que nós começamos a arrumar aluno e naquela época veio Paulão. Do Paulão saíram vários mestres aí né? Porque hoje a gente já tem bisneto de capoeira, foi aluno do aluno, do aluno, do aluno, né?

Tinha Maestro, tinha Luis Amarante, tinha Fernando Azulão, tinha 2 irmãos meus, Abdala que formou em Medicina e foi pra Teófilo Otoni. Eram os primeiros.

Na época era um curso e aí montou-se um grupo mesmo?
Formou um grupo. E aí nós começamos a exibir até o que nós sabíamos. Apresentação em eventos, a turminha ficou boa.

E as rodas, vocês faziam rodas nessa época?
Não. Não tinha roda. Era só na ACM. Mas o Toninho era da polícia e posteriormente, tempos depois, ele foi perseguido, acho que ele foi morar em outro local. Mas eu sei que ele não teve mais condição de continuar por isso eu me distanciei. Então foi a 2º vez que a capoeira teve uma paralisação. E nós falamos: Poxa, fazer o que? Parar nós não podemos. Paulão começou a dar aula na escola de Filosofia na Rua Carangola. De lá saíram vários mestres né? É inclusive o Macaco. Macaco da Ginga.

Mas esse grupo tinha o nome de Ginga ou a Ginga veio depois?
A Ginga veio muito depois. Acho que o Macaco começou com a Ginga porque o Paulão, que era um outro aluno dele, voltou pra Pedra Azul, ele saiu de BH, tava aqui estudando Educação Física, voltou pra lá e aí o Macaco fez a Ginga ali na Contorno.
O Paulão foi pra lá dar aulas. E a aula do Paulão era toda sofisticada, de uniforme, se pagava. E eu fiquei com os menininhos órfãos, que não podiam pagar, etc e tal. Órfão de capoeira, né? E o Paulão gostava de regional, gostava de angola. Então, pra capoeira não morrer eu montei um grupo de capoeira que era no terreiro da minha casa. Que era na Bernardo Monteiro. Lá não pagava, tinha 2 aulas por semana - 2ª feira e 5ª feira – e eu dava 15, 20 minutos de física e o resto era o pau quebrava, sabe como é? Jogo, jogo, jogo, jogo o tempo todo. E aí começou a ter uma fluência. A minha casa chegava a ter 200, 300 pessoas etc e tal.

E era roda?
Roda, roda, roda, né? Da minha casa saiu o Mão Branca, o Mão Branca começou a jogar lá. Mão Branca foi meu aluno. Reinaldo foi meu aluno, Rei. O Amadeu, que fala que jogou na Bahia, que fez, que aconteceu, o Amadeu (Dunga), 1ª capoeira que ele tomou conhecimento foi lá em casa, sabe como é? Ele não jogava, ele ficava meio cabreiro, ele tinha um jeito danado, tava servindo exército aqui e tudo sabe? Mas também jogou lá, não chegou a ser meu aluno mas lá. Ney Fiúza jogava lá, Brucutu, Bebinha, tinha uma turma aí que vocês não devem nem saber. Porque o Pintor eu não lembro de quem ele foi aluno. O Pintor deve ter sido aluno já do Macaco, eu não sei. Qual é a origem dele? Quem ensinou capoeira pra ele? Eu nem me lembro...

Foi o César.
Ah, Cezinha! César. O César foi aluno do Paulão. O César não era do início lá da capoeira com o Toninho Cavalieri não. O César foi aluno do Paulão lá na Carangola. E o Pintor deve ter sido aluno de César quando César começou a dar aulas. Nesse desdobramento eu perdi o fio da miada porque são muitos anos, quase 40 anos...

E na sua casa, durou quanto tempo?
Aconteceu uma coisa interessante que foi o seguinte: a casa era de meu pai. Eu casei e morava nos fundos. Aí tinha um terreiro que era um pátio e que tinha a roda. Só pra vocês terem uma idéia, no meu terreiro tem a roda (marcada) no chão até hoje. Eu jogo capoeira até hoje, apesar da bucite. Jogo sozinho. Mas hoje eu jogo a capoeira que eu nunca joguei na minha vida, eu jogo em pé porque eu não consigo mais. Eu sempre fui malabarista, ficava de cabeça para baixo. Mas hoje tenho que ficar em pé. Mas eu jogava assim prá fazer exercício. Mas se precisar jogar em pé eu jogaria, muito fora da minha característica mas jogaria...

Aí, fora a roda lá de casa, onde a favela baixava todinha. A favela era outra favela né? O tráfico ainda tava incipiente, ou quase que não existia. Aí o pessoal da favela chegava. Eu dava aula a semana inteira, dava aula em favela, dava aula no Pau Comeu, no Pindura a Saia, no Cafezal, nas associações de bairro, etc. e tal.

E ocorreu que eu fui ao Rio de Janeiro em determinada época. E tava tendo aquele Berimbau de Ouro. Aí o Rio já tava mais desenvolvido né, tinha um grupo lá chamado Senzala que tava fazendo o Berimbau de Ouro. E eu conheci, nesse dia, eu que ajudava e tudo, um camarada que chamava Camisa Roxa que tinha um grupo lá em Salvador que chamava Olodum. E esse Olodum era muito antes desse que ta lá hoje. Eles têm o mesmo nome, não sei qual foi a ligação. O Olodum antes era um grupo de capoeira que se exibia todo ano inclusive no exterior. Certo? Como eles eram muito melhores que nós, muito melhores, eu quis que o pessoal daqui conhecesse a capoeira deles e consegui um patrocínio com o Banco Credireal porque o presidente era meu amigo e trouxe o Olodum pra Belo Horizonte. Mas foi muito difícil, eu arrumei uma verba, mas eles vieram num ônibus da Universidade Federal da Bahia, o ônibus enguiçou em Lafaiete, eu tive que ir lá levar mecânico, tudo era difícil pra burro. Mas eles estiveram aqui um período e aí nós começamos um intercâmbio muito bom entre Salvador e Belo Horizonte. O pessoal de Salvador, quando ia para São Paulo, ou Rio ou aqui mesmo, passava sempre na minha casa, ficava hospedado na minha casa.

Arrumei, trouxe um camarada, que por sinal, foi uma decepção, que era amigo do Camisa Roxa, um tal de Cascavel pra dar aula aqui. Nós todos que éramos alunos demos aula pro Cascavel e ele arrumou uma palhaçada descarada. Uma tal de emboscada: pegava os meninos, levava pro meio do mato e tinha que procurar igual escravo, etc e tal, quando encontrava tinha que quebrar o pau. E peguei e chamei ele num canto e falei: - ó cascavel... Porque ninguém tinha coragem de encarar o bicho. Aí falei: - você ta dispensado, é uma vontade dos nossos alunos, você é totalmente diferente do que nós queríamos, etc. e tal. Essa foi uma experiência negativa. Botei ele pra fora de Belo Horizonte. Chiou, chiou, chiou, quis brigar e tudo, mas independente, capoeira eu também sempre fui de briga e tudo, briga era comigo mesmo. E nunca considerei que capoeira fosse briga, sabe como é? Eu brigo, já briguei e muito, mas nunca usei, usei depois, mas briga comigo era briga de rua. Sempre fui mais respeitado, eu também era mais velho, etc e tal né?

E as rodas na Feira Hippie, são depois disso?
É, a Feira Hippie começou com o Amadeus (Dunga). Mas fui lá umas 2, 3 vezes, muita pancadaria, muita baixaria. Uma vez eu parti pra porrada pra valer mesmo, não tem capoeira, não tem nada não. O cara caiu no chão aí chuta e pronto acabou, se era isso que tava querendo fazer comigo, né?
Ah eu me lembro também de um mestre folcloríssimo aqui, o Mestre Negão, que acho que foi aluno do Paulão. Negão era uma figura. Teve um problema sério com César dentro da minha academia com uma cabeçada, tinha uns trem assim né? Mas o que fez a roda lá de casa parar foi um camarada que veio da Bahia a meu convite, um tal de Miro, que eu conheci lá e achei gente boa. Eu constantemente ia a Bahia, não parava de ir à Bahia. 3 ou 4 vezes por ano eu ia a Bahia, mantive o intercâmbio o tempo todo. E, esse Miro, a meu convite, passou por Belo Horizonte, junto com os Macacos Preto e Branco, etc e tal, que vieram aqui. Por mim, eu não sabia dos antecedentes criminais dele e hoje até, a última notícia que eu tive é que ele ta na penitenciária de Neves, diz que ele virou pastor, já matou gente aí. Ele era do capeta... E lá, dentro da minha casa ele aprontou sabe? Aprontou num dia que meu pai tava na janela assistindo. Ele deu um chute num menino, numa saída do jogo de angola, etc e tal, deu um pontapé no menino de cabeça para baixo – o menino chamava Cebola (Washington), mas aí o menino quase perdeu a vista, o diabo a quatro e foi aquela coisa horrorosa. E ele disse que deu o chute no menino pra ele ficar esperto, que aquilo não era capoeira, etc e tal, e nesse dia eu não tava jogando, que eu tava com uma distensão na virilha, eu tava só no berimbau. Aí eu peguei e falei: - Miro ce deve ta doido, ce ta louco, sei lá mais o quê... Se você ta mais esperto treinando então é comigo. E corri pra dentro de casa pra calçar o sapato, porque ele jogou com sapato com uma sola deste tamanho e eu tava de chinelo de dedo e ele achou que eu tinha ido buscar arma e cascou fora. Aí os 2 Macacos que tavam lá, eu falei com o Macaco Preto, eles tavam morando juntos: - Ô Macaco fala pro Miro que qualquer lugar que eu achar ele no mundo, um vai ter que engolir o outro aí, que ele se prepare porque eu vou catar ele aqui em Belo Horizonte toda. E ele mudou de Belo Horizonte e voltou depois. Mas com isso papai mandou encerrar a atividade e foi a última vez que teve roda lá em casa.
Aí nós ficamos meio órfãos de lugar e eu arrumei uma academia de maré pra dar aula. Que era um pouquinho abaixo do DOPS. Lá a capoeira ficou muito tempo.

Mas aí o Sr. Fundou algum grupo?
Não, a capoeira continuou com a mesma característica lá de casa. Capoeira do Jacaré e tal que chamavam. E depois que lá fechou a academia, tinha uma outra academia lá na Praça ABC, de uma professora chamada Sarita que era muito minha amiga. Consegui segurar a capoeira lá. Foi o último lugar que eu me lembre de ter dado aula.
Nessa época eu já tava formado, já era engenheiro há uns 10 anos e comecei a ter muita atividade fora de Belo Horizonte e tinha muito compromisso, tava com obra fora, em Brasília também. Aliás, Brasília tava começando a ter uma capoeira boa este período, aliás, hoje todo lugar tem. E com isso, eu passei a jogar capoeira, uns 15 anos depois que eu comecei, já na década de 80, na academia dos meus alunos ou dos alunos dos meus alunos. Como é o caso, por exemplo, do Pintor, quando eu sabia que tinha roda eu ficava lá, jogava, joguei muito na Ginga quando o Macaco tava lá, joguei na academia do Azulão. Quando eu sabia que tinha eu ia. Aí começaram a aparecer uns nomes: Noventa, que tem um ônibus aí de capoeira, Museu de Capoeira. Aí comecei a jogar com o Mão Branca. O Mão Branca, que foi meu aluno, foi pro Rio, aí voltou com uma academia aí, com o Mão Branca eu tava em casa. Ele tava dando aula ali na Carangola, então todo tempo que eu tinha eu dava uma corrida e jogava lá. Até quando o Mão Branca mudou, se não me engano ele ta com academia lá no Estoril, lá eu fui uma vez ou duas e aí eu comecei a perder o contato. Hoje, de vez em quando eu vejo uma roda de capoeira na Praça Sete, eu chego e não conheço mais ninguém e ninguém me conhece também. E geralmente eu to de terno e gravata, não tem como. Eu dô uma espiadinha ali e tal.

Mas a paixão sempre fica?
Ah, direto né? Eu não perco... Ah, nem meu Mestre também foi eu mesmo, eu que me dei porque não tinha ninguém pra dar mestre pra ninguém né?

Como eram as cantigas, as músicas, os ritmos de berimbau em Belo Horizonte? Tinha um toque de angola próprio também, como eram?
A gente trazia os discos né? A gente ouvia na Bahia.

O que vocês ouviam na Bahia vocês cantavam aqui?
A gente trazia os discos, naquela época devia ser 78. O jogo começava, a gente ficava uns 20 minutos cantando, até a gente sair pra jogar tinha aquela benzeção toda, eu fazia muito parecido com o que eu via lá, do que eu gostava que era a angola de Pastinha, né? Era a dissimulação da capoeira mesmo, aquele jogo de chão, por exemplo, aquilo não é defesa pessoal nunca, aquilo era dissimulação da capoeira quando a capoeira era proibida e tudo pra mostrar que era dança e não luta porque senão os cara prendia. O capoeira era preso naquela época era considerado malandro, até se não me engano, a década de 30, 40. Aí que começou a não ser né? Mas como eu ando afastado por causa de trabalho, essas coisas todas, muita coisa eu não me lembro né? Mas tanto é que quando vinha gente da Bahia a gente jogava de igual pra igual, etc e tal, começou a ter capoeirista aqui. O Mão Branca, era, na minha opinião, vocês conhecem o Mão Branca? Não sei como ele ta hoje, mas na época ele tinha tudo pra ser o melhor capoeirista do Brasil. O Amadeu (Dunga) é um débil mental completo mas, na minha opinião, também a capoeira que ele jogou foi uma das melhores do Brasil. Mas o César jogou capoeira pra burro, tinha o Lú que jogava (Luis Amarante), nós não ficávamos devendo. Ah, depois teve uma época, que eu fiquei meio desgostoso, que resolveram fazer uma Federação de Capoeira. Aí tinha que lutar campeonato e começaram a falar, era preso a regras, tinha ponto se dava uma porrada aqui e tinha faixa. Aí eu falei: - Não quero isso não, a capoeira que eu joguei não era assim. Não sei nem se vocês têm faixa também, até o Mão Branca que foi meu aluno daí uns tempos pôs faixa né? E me perguntou aí eu falei: - ó, a capoeira que eu joguei não foi desse tipo. Eu acho que pra evoluir teve que ter isso mas aí realmente pra mim perdeu um pouco da originalidade, mas pra outros não. A capoeira por ter nascido assim muito folclórica etc e tal eu acho que dificilmente algum dia eu acho que ela vai ter um jeito de ser unificada.

Ser esporte né? Não tem como?
É, ou assim, chegar a ter uma Confederação de Capoeira, tem, mas o pessoal não reconhece, etc e tal. É muito difícil unificar. Se eu pudesse ter uma varinha de condão eu fazia hoje igual era antigamente. Jogar brincando, sem bater, sem encostar, não tinha choque, era casual.

Tinha roda de samba depois?
Samba duro às vezes. Mas pra efeito de show, pra que não ficasse só capoeira, aí punha o maculelê, talvez porque a primeira vez que fui bater maculelê eu quase quebrei o dedo, levei uma porrada no dedo. Ainda mais maculelê de facão que eu achava aquilo perigosíssimo inclusive pra quem tava assistindo porque saía muita fagulha. Então quando tinha apresentação fazia uma puxada de rede, punha samba de roda, samba duro. Era engraçado porque se começava a pular e passava a perna e o outro caía, mas o outro já estava esperando a rasteira, era mais um teatro.

E os capoeiristas tinham uma forma de se vestir?
Nas academias: na Ginga e no Paulão, etc, etc era aquele trem. Eu me lembro do Marcão era uma roupa azul com uma faixa branca na perna, o outro era branco, etc. Lá em casa se jogava até pelado se você quisesse. Sapato, descalço, de bermuda... Era do jeito que eu via a capoeira da Bahia de roda, principalmente a de festa de largo, que era totalmente solta, você ficava de qualquer jeito que você chegasse. E nas academias. Pastinha, etc, a não ser o Bimba, que punha a turma toda de uniforme, jogava de qualquer jeito.

A de Pastinha não tinha que ser blusa amarela e calça preta não?
Nada disso. Só se posteriormente puseram, quando eu fui lá não tinha nada disso. E outra coisa também, jogava quem queria. O negócio deles era assim: numa determinada hora começava a roda, não tinha aquecimento, não tinha nada, o povo começava a jogar, primeiro o povo deles e depois quem quisesse. Outra coisa que ficou uns 10 anos aí ou mais pra aparecer foi mulher jogando capoeira.

Mas só aqui em Belo Horizonte?
Não nem aqui nem na Bahia não tinha mulher jogando capoeira. Eu vi mulher jogando capoeira 10 anos depois.

Criança tinha?
Criança tinha, mas as primeiras mulheres que eu vi jogando capoeira eu pensei: não vão conseguir nunca. Mas depois eu vi cada menina jogando capoeira, dando show em homens aí. A primeira coisa que eu achava é que a mulher tinha a ginga muito feminina, era engraçado, eu pensava que mulher não tinha nascido pra isso não. Mas aí eu vi mulher jogando dando de 500 em homem aí, com uma plasticidade total, etc e tal. Se bem que nunca deixa de ter um “quê” de mulher, uma feminilidade. Mas demorou demais pra mulher entrar na capoeira. Eu vi mulher na capoeira em 80 e tal. Pode ter tido uma antes aí mas eu não vi ou não me lembro. Não me lembro qual foi a primeira mulher aqui a jogar. Me lembro da Sereia, mulher do Mão Branca que tentou jogar, mas uma falta de jeito total. O Mão querendo ensinar de tudo quanto é jeito, não sei como é que tá a filha do Mão. Não sei nem se o Mão ta dando aula.

Mestre, o Sr. Canta uma ladainha que vocês costumavam cantar naquela época lá nas rodas na sua casa?
Olha, já faz muito tempo que eu não toco berimbau... Mas vou tentar...

Neste momento Mestre Jacaré pega o berimbau e toca iúna, depois, São Bento Grande e depois a ladainha.

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