PONCIÁ: A DENÚNCIA VISCERAL DA EXCLUSÃO
Ponciá: a denúncia visceral da exclusão.
Resumo
Realiza breve análise da obra Ponciá Vicêncio (2003) de Conceição Evaristo, enfocando o aspecto de denúncia da exclusão social e o racismo vivenciado pelos negros e afro-descendentes ao longo da história do Brasil - que se reflete e continua na atualidade - abordado de forma característica que enquadra a obra dentro da literatura afro-brasileira.
Palavras-chaves: Literatura Afro-Brasileira; Racismo; Exclusão Social; Ponciá Vicêncio; Conceição Evaristo.
1- APRESENTAÇÃO
A literatura afro-brasileira na atualidade, ao mesmo tempo em que comemora várias realizações e descobertas, continua sofrendo preconceito, sendo muitas vezes não legitimada enquanto literatura afro-brasileira. Como levanta Duarte (2002), a ausência de uma história ou mesmo um corpus estabelecido e consolidado, tanto no passado quanto no presente, em virtude do número ainda insuficiente de estudos, debates, fóruns específicos e pesquisas a respeito, assim como a ausência da disciplina “Literatura Afro-Brasileira” nos currículos de graduação e pós-graduação da maioria dos cursos de Letras no Brasil, contribuem para a pouca informação sobre esta literatura. Mas não são apenas estas as barreiras para dar visibilidade a essa afro-brasilidade.
Tais empecilhos vão desde a estigmatização dos elementos oriundos da memória cultural africana e o apagamento deliberado da história dos vencidos até ao modo explicitamente construído e não essencialista com que se apresentam as identidades culturais. Ao lado disso, acrescente-se nossa constituição híbrida de povo miscigenado, onde linhas e fronteiras de cor perdem muitas vezes qualquer eficácia. (...) a concepção de um paraíso híbrido localizado ao sul do Equador dissimula em grande medida o rebaixamento dos afro-descendentes. (...) a idéia de branqueamento implica em denegação do ser e do existir negro num país de racismo camuflado como o Brasil. (DUARTE, 2002, p. 4-6).
Nessa perspectiva, tem-se a dimensão da diversidade e contradições que marcam a presença afro na literatura. Essa presença extrapola a órbita da natureza na medida em que se torna etnicidade, assumindo um determinado pertencimento identitário, para além dos condicionantes fenotípicos. Portanto, ao analisarmos um texto de literatura, existem algumas características essenciais, que somente quando encontradas em seu conjunto, permitem classificar o texto como literatura afro-brasileira, a saber:
a) Temática: “o negro é o tema principal da literatura negra. Sobre muitos enfoques, ele é o universo humano, social, cultural e artístico de que se nutre essa literatura”. (IANNI, 1988). “pode contemplar o resgate da história do povo negro na diáspora brasileira, passando pela denúncia da escravidão e de suas conseqüências ou ir até à glorificação de heróis como Zumbi e Ganga Zumba”. (DUARTE, 2002, p. 3). Entram ainda as tradições culturais ou religiosas transplantadas para o Brasil, mitos, lendas e um imaginário que, muitas vezes, se refere à oralidade. Outra vertente dessa temática é a história contemporânea abordando os problemas da modernidade brasileira (subúrbio, favela, crítica ao preconceito e ao branqueamento, marginalidade, prisão, desigualdade social, etc.). Mas o tema negro não é obrigatório para o autor afro-descendente, assim como nada obriga que o assunto negro esteja ausente da escrita dos brancos. Portanto, “a adoção da temática afro não deve ser considerada isoladamente para caracterizar a literatura afro-brasileira e sim, sua interação com outros fatores como autoria e ponto de vista”. (DUARTE, 2002, p. 4).
b) Autoria: não se trata apenas de um dado exterior, da condição fenotípica. “É preciso compreendê-la na condição de traduzida em constante discursiva integrada à materialidade da construção literária”. (DUARTE, 2002, p. 4). A perspectiva do autor, no texto, deve apontar para uma visão dos oprimidos, fazendo da cor da pele uma tradução textual de uma história coletiva e/ou individual.
c) Ponto de vista: “adoção de uma visão de mundo própria e distinta da do branco, sobrtudo do branco racista, como superação da cópia de modelos europeus e de toda a assimilação cultural imposta como única via de expressão”. (DUARTE, 2002, p. 7). Desta forma, a noção da negritude é o discurso da diferença atuando como elo importante da cadeia discursiva que configura a afro-descendência na literatura brasileira.
d) Linguagem: “discursividade que ressalta ritmos, entonações, opções vocabulares, e, mesmo, toda uma semântica própria, empenhada muitas vezes num trabalho de ressignificação que contraria sentidos hegemônicos na língua”. (DUARTE, 2002, p. 8). Nesse sentido, o discurso afro-descendente busca romper com as formas de fala e escrita do mundo do branco, através de uma reversão de valores aderida por uma nova ordem simbólica.
e) Público: “a formação de um público específico, marcado pela diferença cultural e pelo anseio de afirmação identitária compõe a faceta algo utópica do projeto literário afro-brasileiro”. (DUARTE, 2002, p. 9). Pelo caráter político que isto acarreta, há a busca de outros espaços mediadores entre texto e público.
Este trabalho analisa a obra Ponciá Vicêncio (2003), de Conceição Evaristo, que por suas características enquadra-se dentro da literatura afro-brasileira. Sem pretender realizar minuciosamente uma crítica literária à obra, este trabalho aborda, sob o ponto de vista do leitor crítico de Ponciá Vicêncio, principalmente a forma visceral em que a autora denuncia, no livro, o racismo e a exclusão social do afro-descendente no Brasil da atualidade. Considerando um passado que se mostra no presente e que ao se mostrar, busca novamente o passado, a autora revela a dinâmica da exclusão social em que o afro-descendente está sujeito no nosso país. Portanto, serão abordadas agora algumas destas características presentes no texto, levantadas pelo olhar do leitor.
2 PONCIÁ VICÊNCIO
O livro começa apresentando Ponciá – já na cidade grande - relembrando a sua infância no interior. Mostra a relação de Ponciá com a natureza e com sua vida em geral, na época em que ela ainda “gostava de ser menina. Gostava de ser ela própria. Gostava de tudo. Gostava. Gostava da roça, do rio que corria entre as pedras, gostava dos pés de pequi, dos pés de coco-de-catarro, das canas e do milharal”. (EVARISTO, 2003, p. 9).
Logo depois, apresenta, metaforicamente, a imagem do arco-íris, que no final do livro, vai revistar Ponciá no momento de reencontro com sua família.
Quando Ponciá viu o arco-íris no céu, sentiu um calafrio. Recordou o medo que tivera durante toda a sua infância. Diziam que menina que passasse por debaixo do arco-íris virava menino. Ela ia buscar o barro na beira do rio e lá estava a cobra celeste bebendo água. (EVARISTO, 2003, p. 9),
Na sua infância, quando Ponciá ainda não havia realizado a sua trajetória de perdas, o arco-íris está presente fortemente. Da mesma forma, no final do livro, quando ela reencontra a sua família e, também, a sua memória e identidade, o arco-íris novamente se faz presente, agora se diluindo, como que ao mesmo tempo, os seus medos também se diluíssem neste reencontro:
Lá fora, no céu cor de íris, um enorme angorô multicolorido se diluía lentamente, enquanto Ponciá Vicêncio, elo e herança de uma memória reencontrada pelos seus, não se perderia jamais, se guardaria nas águas do rio. (EVARISTO, 2003, p. 132).
O romance tem um lastro histórico. Ponciá nasce em um lugar impregnado de memória (do pai, do avô, do nome do dono do avô), no interior, marcado pelo passado da escravidão. Ponciá tem família de fato, mas luta o tempo todo com sua herança Vicêncio, que não é o sobrenome de sua família, e sim, do dono de seu avô que foi escravo.
O tempo passava, a menina crescia e não se acostumava com o próprio nome. Continuava achando o nome vazio, distante. Quando aprendeu a ler e escrever, foi pior ainda, ao descobrir o acento agudo de Ponciá. (...) sabia que o sobrenome dela tinha vindo desde antes do avô de seu avô, o homem que ela havia copiado de sua memória para o barro e que a mãe não gostava de encarar. (...). Na assinatura dela, a reminiscência do poderio do senhor, de um tal coronel Vicêncio. (EVARISTO, 2003, p. 27).
Ponciá cresce em meio a várias lembranças, nesse mundo marcado pelas memórias da submissão, da humilhação, resquícios da escravidão.
O pai de Ponciá sabia ler todas as letras do alfabeto. (...). Não conseguia, porém, formar as sílabas e muito menos as palavras. (...). Filho de ex-escravos, crescera na fazenda levando a mesma vida dos pais. Era pajem do sinhô-moço. Tinha a obrigação de brincar com ele. Era o cavalo onde o mocinho galopava sonhando conhecer todas as terras do pai. (...). Um dia o coronelzinho exigiu que ele abrisse a boca, pois queria mijar dentro. O pajem abriu. A urina do outro caía escorrendo quente por sua goela e pelo canto de sua boca. Sinhô-moço ria, ria. Ele chorava e não sabia o que mais lhe salgava a boca, se o gosto da urina ou se o sabor de suas lágrimas. (EVARISTO, 2003, p. 14).
Evaristo reflete, ao longo do livro, uma sociedade contra a afro-descendência, que quer esterilizar a afro-descendência, que é a sociedade brasileira atual. Faz isso sob um ponto de vista de dentro para fora, em um texto marcado por metáforas que denunciam a exclusão social no Brasil. Como exemplo, o personagem avô de Ponciá, que perdeu os filhos em plena vigência da Lei do Ventre Livre e Ponciá que também perde os seus 7 filhos (todos morrem). Nesse processo, assim como em várias passagens do texto, passado e presente, memória individual e memória coletiva se mostram o tempo todo. É a história do Brasil – negro. Há a idéia da interrupção da descendência expressa na não-existência do sobrenome (presente na noção de que escravo, e seus descendentes, não têm família, não são cidadãos). A violência do processo é exacerbada por Conceição Evaristo, através de um brutalismo poético , como o observado na citação destacada acima, referindo-se ao pai de Ponciá e ao filho do fazendeiro do qual ele era pajem.
Ponciá cresce no meio rural e vai buscar o futuro na cidade grande. Ao chegar, fica mendigando na porta de uma igreja. Nessa passagem do texto Evaristo escancara o descaso da igreja com os excluídos sociais. Na cidade arruma emprego de “doméstica”, vivendo em um barracão na favela em péssimas condições de vida. Ao sair de sua terra natal, ao invés de melhorar sua qualidade de vida, ela retrocede ou fica estagnada. A sua trajetória na cidade é de retrocesso. “Ponciá havia tecido uma rede de sonhos e agora via um por um dos fios dessa rede destecer e tudo se tornar um grande buraco, um grande vazio”. (EVARISTO, 2003, p. 21).
A personagem principal se casa. O marido de Ponciá é um agente de violência e não do amor. Sempre, no texto, identificado como “o homem de Ponciá” e não pelo seu nome. Trabalha de pedreiro na cidade e também é vítima do sistema excludente, podendo, ainda, representar o lado masculino de Ponciá – que também se vê perdido em meio à exclusão social, repassando a violência que recebe da sociedade diretamente a Ponciá.
Ponciá Vicêncio interrompeu os pensamentos lembranças, levantou-se endireitando as costas que ardiam pelo soco recebido do homem e foi vagarosamente arrumar a comida. Olhou para ele, que se havia assentado na cama imunda, e se sentiu mais ainda desgostosa da vida. (...). O grito do homem reclamando da lerdeza de Ponciá fez com que, mais uma vez, ela interrompesse as lembranças. Irritou-se, mas não disse nada. Engoliu a raiva em seco junto com o silêncio. (EVARISTO, 2003, p. 21).
O irmão de Ponciá – Luandi – também vai tentar a vida na cidade grande. A sua trajetória também é de perdas e de busca constante por melhoria na qualidade de vida. Na cidade fica procurando a irmã por muito tempo, e só vai reencontrá-la bem posteriormente no texto. Arruma um emprego de faxineiro em uma delegacia. Passa a ter o sonho de se tornar soldado, como forma de obter algum poder na sociedade, sonho este que se torna uma ilusão. Apaixona-se por Bilica – uma prostituta – que morre ao tentar largar a vida de prostituição.
Ocorre uma trajetória de perdas na vida da personagem principal: do lugar de origem, dos vínculos com a família, do espaço de origem, de referências e do futuro – representado por seus filhos que morrem. Assim como para Luandi também e Bilica. A cidade é um espaço de perdas para Ponciá, sendo a principal perda, a que ela faz de si mesma, de sua consciência. Ela olha e não vê, não come, não fala. A beleza do acúmulo de perdas é representada pelo resgate, na metáfora do barro no texto: o barro é vida, origem. É através do barro que era comida na hora da fome e que vira alimento do espírito através da arte, que há esse resgate da memória, de uma identidade. É pela moldagem do barro que Ponciá vai reencontrando sua história, sua memória. O barro é útero e túmulo nesse sentido. Representa que o ciclo da vida passa pela terra.
A estação de trem em que Ponciá chega e sai da cidade, onde reencontra sua família, tem no texto, um significado metafórico: local de encontros e desencontros, de passagem, de movimento.
A prostituta Bilica representa a presença do passado, as marcas da escravidão repercutidas no presente. A prostituição é uma forma de escravidão (ela é escrava do cafetão). Quando ela tenta sair daquela vida, ela paga caro com a própria vida, mostrando mais uma vez a exclusão social que a cidade grande representa.
Conceição Evaristo faz uma paródia ao romance de formação (Bildusgsroman) . A trajetória ascensional do romance de formação, em Ponciá, é invertida. A personagem sempre perde. Só ganha quando reencontra a sua origem, no final. Em sua peregrinação, o itinerário é da perda. Ao voltar para casa, Ponciá encontra a casa vazia, uma casca de cobra no fogão: metáfora indicando que a cobra muda de pele, o mundo mudou, exigindo de Ponciá uma mudança também. Ela volta para casa pior e não encontra nada, ficando desligada do passado e do futuro (já que todos os seus filhos morrem). Da mesma forma, a trajetória de Luandi (irmão de Ponciá), também é de perdas. A narrativa é complexa e entrecortada, mesclando de forma tensa passado e presente, recordação e devaneio. Luandi também representa o processo de busca dos valores dos brancos para tentar se colocar socialmente em uma sociedade racista. Ao tentar ser soldado, aderindo completamente ao valor do branco, sendo instrumento repressor do sistema, Luandi demonstra a busca por uma necessidade de colocação como cidadão na sociedade, o conflito identitário. Ao vestir a farda emprestada e voltar à sua terra natal, Luandi percebe que em sua terra a farda não tem sentido. É alertado inclusive, pela personagem que representa a memória, o passado e presente, a sabedoria no texto (Nêngua Kainda), de que aquela farda não servia para ele. Não era própria dele. Os valores impostos dos brancos não são os melhores valores, que devem ser buscados por Luandi e não fazem sentido na vida no interior. Aqui Evaristo desmascara mais uma faceta da exclusão social, que leva ao conflito de identidade como o vivenciado por Luandi. A personagem Nêngua kainda é a depositária da memória coletiva, o passado e presente. O passado é muito importante no sentido de resgate da memória. Com isso, Evaristo levanta a questão de que um povo sem memória não é povo, não tem identidade.
Ponciá aprende muito pouco na cidade grande. Na verdade ela desaprende. Esquece o que aprendeu. A cidade não forma e nem educa, é o meio da exploração. Assim, Conceição Evaristo encara o problema de favelização atual, de violência e exclusão urbana. A cidade grande é a perda de tudo, inclusive das ilusões.
A memória resgata a personagem, liberta a personagem do abismo da cidade grande. A viagem de volta é motivada pelo que ainda resta em Ponciá, que é a memória. Ela volta para a cidade, após revisitar sua terra natal, um pouco renovada, mas volta à decadência na cidade. No final o retorno às origens é novamente retomado como esperança para a personagem. Ocorre um final feliz, em que sua família reaparece e, também, um novo futuro para Ponciá.
A história de Ponciá não é linear. Os tempos de sua vida são embaralhados. O passado volta o tempo todo no meio do presente. A forma em que Evaristo desenvolve a história também segue esta lógica.
Ponciá Vicêncio representa o passado presente, que deixa marcas atuais. “A senzala de ontem é a favela de hoje”. Ponciá nasce após a escravidão, mas no interior, marcado pelos resquícios da escravidão e, na cidade grande, é socialmente excluída. O livro é uma denúncia, com um ponto de vista de dentro para fora e um texto cheio de metáforas, da exclusão social, violência e preconceito em que os afro-descendentes, as mulheres, o migrante que vem do interior tentar a vida na cidade grande, o pobre, estão submetidos na sociedade brasileira. Porém, trata a questão da afro-descendência de forma especial, demonstrando todas as facetas que envolvem o racismo e a exclusão social desta população no Brasil.
3 CONCLUSÃO
“Conceição Evaristo desponta na literatura afro-brasileira dos anos 90 com narrativas fortemente marcadas pela forma poética com que representa a crueldade do cotidiano dos excluídos”. (DAURTE, 2004, p. 6). A sua obra revela a identificação e compromisso da intelectual afro-descendente para com os colocados à margem do desenvolvimento. Em Ponciá Vicêncio, a autora relata o cotidiano de uma afro-descendente oriunda do mundo rural, desde a infância até a idade adulta desterritorializada na favela em que passa a vegetar com o seu companheiro. Como aponta Duarte (2004, p. 7), descendente de escravos africanos, já de início Ponciá surge despojada do nome de família, pois o “Vicêncio” que todos os seus carregam como sobrenome, provém do antigo senhor de escravos dono da terra. Esse estigma de subalternidade acompanha Ponciá em sua trajetória de vazios e derrotas. A perda de seus entes queridos e de tudo que possa indicar enraizamento identitário é o processo pelo qual Ponciá passa durante todo o romance. Ao abordar as histórias dolorosoas, como a do pai e do avô, a narrativa demonstra os gestos de resistência ao processo de espoliação pelo qual passam os excluídos. “Formam, todavia, uma rede discursiva pela qual se recupera a memória da dor quase sempre recalcada”. (DUARTE, 2004, p. 7). No final, o reencontro com a família e com a memória, oferece um novo futuro para a personagem.
Dessa forma, o romance Ponciá Vicêncio, no decorrer da narrativa, escancara a exclusão por que passam os afro-descendentes na sociedade brasileira. Finalizando, será apresentado um poema de Conceição Evaristo, que pode ser considerado um poema-síntese da interpretação de Ponciá Vicêncio, ao apontar a mesma idéia de memória cultural, do passado presente e aqui, também do futuro.
Foto: Conceição Evaristo
VOZES-MULHERES
A voz de minha bisavó ecoou
criança
nos porões do navio.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
Recolhe em si
A fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.
REFERÊNCIAS
DUARTE, Eduardo de Assis. Notas sobre a literatura brasileira afro-descendente. In: SCARPELLI, Marli Fantini e DUARTE, Eduardo de Assis (Orgs.). Poéticas da diversidade. Belo Horizonte: FALE-UFMG, 2002.
DUARTE, Eduardo de Assis. Dois Momentos do Romance Afro-brasileiro: Maria Firmina dos Reis e Conceição Evaristo. In: VII CONGRESSO BRASA, 2004, Rio de Janeiro. PUC, 2004. p. 1-8.
EVARISTO, Conceição. Vozes-mulheres. In: Cadernos negros. n. 13, São Paulo. Quilombhoje, 1990.
EVARISTO, Conceição. Ponciá vicêncio. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2003.
Comentários
Postar um comentário