RAÇA, CLASSE, ETNIA, ESTIGMATIZAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

Raça, Classe, Etnia, Estigmatização e Globalização:

Fundamentos Para um Debate Antropológico

Fabiana de Paula Domingos
Patrícia Campos Luce
Ricardo Tadeu Barbosa


Resumo
Delimitação e Perscrutação dos conceitos de Raça, Etnia, Classe Social, Etnicidade assentados nas Ciências Sociais e possibilidades de entrelaçamento aos conceitos de Estigmatização e Globalização numa perspectiva antropológica.

Palavras-Chaves: Raça, Etnia, Classe , Etnicidade, Estigmatização, Globalização.

• INTRODUÇÃO

Este trabalho objetiva, fundamentalmente, identificar alguns conceitos de raça, classe, etnia e globalização e apontar entre eles, os elementos unificadores e desarticuladores que os compõem. Nesse sentido, salientamos que usaremos como pressuposto inicial os estudos dos professores: Roberto Oliveira, Michael Banton, Lílian Schwarcz e Stefânie Loureiro como base de sustentação teórica. Faremos ainda a articulação desses conceitos no sentido de torná-los aplicáveis ao conceito de estigmatização racial no campo étnico brasileiro.

• DESENVOLVIMENTO

I- Raça, Etnia e Estigmatização

O homem nasce livre e em toda a parte encontra-se a ferros (...). Toda a nossa sabedoria consiste em preconceitos servis; todos os nossos usos são apenas sujeição, coação e constrangimento. O homem nasce, vive e morre na escravidão: ao nascer cosem-no numa malha; na sua morte pregam-no num caixão: enquanto tem figura humana é encadeado pelas novas instituições. Eu senti antes de pensar. Observai a natureza e segui o caminho que ela vos traça. Ela exercita continuamente as crianças; endurece o seu temperamento com provas de toda a espécie,e ensina-lhes, muito cedo, o que é uma dor e o que é um prazer. (Rousseau: 1999, p.77)

Na tentativa de tecer uma discussão acerca da identidade étnica, entendemos ser necessário fazer alguns comentários sobre os termos raça e etnia. Para tanto, faremos uma breve incursão ao século XIX, sem, no entanto, perdermos de vista um pensador fundamental do século XVIII – Rousseau – que é fonte de “inspiração” para os teóricos raciais do final do período novecentista. Nesse sentido, o conjunto de preocupações sociais, morais, legislativas e políticas na França, durante o século XVIII, nasceria durante o século XIX a Antropologia como disciplina científica e o campo conceitual sobre o qual se articularam, a partir de termos e conceitos tomados emprestados das ciências da natureza e da vida, as teorias baseadas nas diferenças entre os seres humanos e as sociedades.

No século XVIII, o debate sobre as diferenças básicas existentes entre os homens começou a ser desenvolvido. Nesta época, a reflexão sobre a diversidade humana foi diretamente influenciada pelos legados políticos da Revolução Francesa e dos ensinamentos da Ilustração que pressupunham a igualdade e a liberdade como naturais. Levava à determinação da unidade do gênero humano e a certa universalização da igualdade, entendida como um modelo imposto pela natureza. Jean Jacques Rousseau (1775/1978, p. 251) afirmava sobre a origem da desigualdade entre os homens que “se há uma bondade original da natureza humana: a evolução social corrompeu-a”.

A partir da segunda metade do século XVIII, uma visão negativa da América é observada em autores como Buffon (1707-88) com sua tese de “infantilidade do continente” e Cornelius De Pauw (1768) com a teoria da “degeneração americana”, entre outros. Apesar da unidade do gênero humano permanecer como postulado, um agudo senso de hierarquia aparecia como novidade, formatando uma visão etnocêntrica. Este período foi marcado por uma tensão entre imagem negativa da natureza e do homem americano, e a representação positiva do estado natural apresentada por Rousseau.

No Discurso Sobre a Origem da Desigualdade, Rousseau cria a hipótese dos homens em estado de natureza, vivendo sadios, bons e felizes enquanto cuidam de sua própria sobrevivência, até o momento em que é criada a propriedade e uns passam a trabalhar para outros, gerando escravidão e miséria. No Contrato Social, através do pacto o homem abdica de sua liberdade, mas sendo ele mesmo parte integrante e ativa do todo social, ao obedecer à lei, obedece a si mesmo e, portanto, é livre: “a obediência à lei que se estatuiu a si mesma é liberdade” (Rousseau: 1997, p. 93). Mais adiante, Rousseau parece demonstrar extrema nostalgia do estado feliz em que vive o “bom selvagem”, quando é introduzida a desigualdade entre os homens, a diferenciação entre o rico e o pobre, o poderoso e o fraco, o senhor e o escravo e a predominância da lei do mais forte. Nesse sentido, o final do século XVIII, – período que corresponde a um maior conhecimento e colonização dos novos territórios - é assinalada “a inferioridade física do continente, e de uma conseqüente debilidade natural de suas espécies ... todos condenados por natureza a uma decadência irresistível, a uma corrupção fatal” (Gerbi, 1982).

No século seguinte, “raça” é um termo introduzido na literatura mais especializada por Georges Couvier, que propagava a idéia da existência de heranças físicas permanentes entre os vários grupos humanos. Desta forma, “raça” tornou-se um meio de classificar as pessoas por características físicas. As categorizações raciais podiam então ser aplicadas sem adesão a qualquer teoria sobre as origens de tais distinções. O arbítrio do indivíduo era entendido, para Galton (1869/1988, p.86) como “um resultado, uma reificação dos atributos específicos da sua raça”. As pessoas, nesta época, pensavam que a humanidade estava dividida em raças como uma característica física inerente. Os outros povos eram vistos como biologicamente diferentes. Este conceito foi influenciado pelo momento de lutas políticas por que passava a Europa nos últimos quartéis do século XIX. Para Cuvier, a representação das raças humanas era uma hierarquia, com os brancos no topo e os negros na base. As diferenças de cultura e qualidade mental eram produzidas pelas diferenças no físico.

Não foi por acaso que os caucasianos ganharam domínio sobre o mundo e operaram o mais rápido progresso nas ciências. Os chineses estavam menos avançados. Tinham crânios com uma forma mais próxima da dos animais. Os negros estavam imersos na escravidão e no prazer dos sentidos, embora fossem criaturas racionais e sensíveis. (COLEMAN, 1964, p. 166).

Os conceitos de raça que se consolidaram no século XIX se formaram pela fusão de duas correntes intelectuais. A primeira, a História Natural, procede do campo do saber da ciência moderna. Na História Natural o termo raça se estendeu do sistema de classificação do reino animal ao estudo do ser humano, gerando debates sobre questões como a unidade da espécie e a variedade das raças. A segunda tem origem numa tradição histórica em que se gestou a teoria das origens germânicas da nobreza européia a partir da chamada ‘teoria das invasões’, ou ‘teoria de classes’, como também ficou conhecida em algumas de suas versões.

Não obstante, duas vertentes intelectuais surgem naquele contexto: os humanistas; que naturalizavam a igualdade humana - adeptos da Revolução Francesa - e os que esboçavam diferenças raciais entre os homens. Essa última, tomou “corpo” durante o século XIX. É importante lembrar que o conceito de raça está associado a uma base biológica. Desse modo, lembra Burton (1977), que é imprudente estudar a idéia de raça separada de noção de classe e nação. Historicamente, tal articulação deu lugar à crença de que os brancos tinham herdado uma superioridade que os habilitava a estabelecer o seu poder em todas as regiões do mundo, já que eles se tornaram hegemônicos como classe dita superior e “pioneiros” no assentamento de seus Estados Nacionais. Sobre esta discussão, Oliveira acrescenta: “creio que não cabe mais exorcizar a noção de raça como não devemos lutar ainda para eliminar quaisquer biologismos porventura agarrados á noção de etnia...” (OLIVEIRA, 1976:83).

O termo “raça” obteve várias conotações para diferentes escritores e foi significado de muita confusão entre eles. Assim, tornou-se conveniente usar o conceito de “tipo”. À medida que se acumulavam os dados sobre a diversidade das formas humanas, os autores tendiam cada vez mais, a referir várias espécies de tipos, e na verdade a elaboração de tipologias de várias espécies tornou-se a característica do academicismo do século XIX. As principais características da doutrina da tipologia racial foram as seguintes: as variações na constituição e no comportamento dos indivíduos devem ser explicadas como a expressão de diferentes tipos biológicos subjacentes de natureza relativamente permanente; as diferenças entre estes tipos explicam as variações nas culturas das populações humanas; a natureza distinta dos tipos explica a superioridade dos europeus em geral e dos arianos em particular; a fricção entre as nações e os indivíduos de diferente tipo tem a sua origem em caracteres inatos. Os tipologistas usaram o tipo racial como sinônimo de espécie, redefinindo os estudos de Prichard, que acreditava que quanto mais exata fosse a investigação sobre a etnografia do mundo tanto menos bases haveria para a opinião de que as características das raças humanas eram permanentes. Desta forma, a teoria dos tipos raciais emerge influenciada pelo estado conjuntural do conhecimento muito deficiente dos modos de vida dos povos não europeus, pelo sentimento quase intoxicante do tempo sobre o ritmo de progresso material na Europa e pelo contexto dos contatos raciais no ultramar, em que a maior parte das “autoridades” fez as suas observações dos povos não europeus.

A teoria da tipologia racial foi importante para a expansão das crenças acerca da inferioridade natural de não europeus. Alguns autores que se destacam neste período: Gobineau (1816-1882), que acreditava que o mundo humano estava por degradar-se e o seu declínio já não podia ser detido. O sangue das raças criadoras tinha perdido a sua pureza e, por conseguinte, o seu poder. A expansão colonial só poderia apressar a autodestruição. Robert Knox (1791-1862), acreditava que a única política sensata é a de que cada raça viva dentro das suas fronteiras naturais. Josiah Clark Nott (1804-73) e George Robbins Gliddon (1809-57), desenvolveram um estudo mostrando as diferenças nos crânios de brancos e negros, como argumento da superioridade de brancos. Destacam-se duas escolas divergentes neste período: a monogenista e a poligenista. A primeira, dominante até meados do séc. XIX, congregou a maior parte dos pesquisadores que, conforme as escrituras bíblicas, acreditavam que a humanidade era una. O homem teria se originado de uma fonte comum, sendo os diferentes tipos humanos apenas um produto “da maior degeneração ou perfeição do Éden” (QUATREFAGE, 1857). Para os poligenistas, existiam vários centros de criação do homem, que corresponderiam, por sua vez, às diferenças raciais observadas. Esta visão permitiria o fortalecimento de uma interpretação biológica na análise dos comportamentos humanos, que passaram a ser crescentemente encarados como resultado imediato de leis biológicas e naturais. Ocorreu o nascimento da frenologia e antropometria, teorias que passavam a interpretar a capacidade humana tomando como base o tamanho e proporção do cérebro de diferentes povos.

O dicionário das relações étnicas e raciais, o termo raça aparece como um conceito biológico e faz referência à raça humana. Segundo ele, a humanidade não se divide em espécies, nem tampouco pode ser classificada, embora, ao longo da história, algumas tentativas tinham sido feitas nesse sentido, com interesses de dominação de alguns sobre outros. Hoje, para as ciências biológicas, a raça humana é única e os grupos que a compõem ficam melhor designados como étnicos.

Oliveira entende que há um movimento dialético entre etnia e classe social. As contradições existentes na estrutura de classes, tendem a inserir as minorias sociais no sistema interétnico como grupo étnico dominado, que passam a ser explorados e submetidos socialmente.

Nessa ideologia de dominação e de exploração, há uma tentativa do grupo dominante em homogeneizar a sociedade segundo seus próprios valores ou estabelecendo uma hierarquia étnico-racial ou afirmando uma identidade étnica única para todos. Nesse sentido, como resultado desse etnocentrismo, em se tratando dos grupos afro-descendentes no Brasil, há uma mensagem silenciosa lançada diretamente às pessoas negras que foca o ideário e o cotidiano branco. Na verdade, essa dinâmica social almeja uma identidade do vencedor e leva, muitas vezes, o negro a renegar a sua negritude. Nesse ponto, Oliveira acrescenta:

A situação de minoria social, reflete, desde logo, uma certa estigmatização, relativamente variável, tornando nítida a posição do grupo étnico no horizonte social da sociedade inclusiva. O que significa que seus contornos aparecem no próprio modelo nativo dos indivíduos inseridos em sistemas interétnicos, de maneira que os próprios membros do grupo minoritário passam a se ver com os olhos do grupo majoritário ou através das categorias etnocêntricas “do outro” – como demonstramos em outro lugar e com referência a um outro contexto. (OLIVEIRA, 1976: 87, 88)

O conceito etnicidade está profundamente ligado à antropologia da segunda metade do século passado. Ele açambarca os confrontos estabelecidos pelos “grupos étnicos no interior de um mesmo espaço social e político dominado apenas por um deles” (OLIVEIRA: 2000). Nessa amostra há pistas de que o sistema interétnico brasileiro foi etnocêntrico desde a sua origem. Quem possuía uma estrutura bélica e econômica mais solidificada (no caso os europeus), passou a ser a vanguarda neste sistema estigmatizado pelo poder e, muitas vezes, pela força bruta, em relação a minorias étnicas – indígenas e negros.

A escravidão no Brasil é um exemplo de dominação étnico-racial, pois os europeus – “ditos civilizados e civilizadores” - ocuparam este território e subjugaram indígenas e africanos com o trabalho compulsório. Esse particular pode ser evidenciado pelo estudo de Laura de Melo e Souza que detalha algumas atividades realizadas por escravos negros no Brasil.

Várias eram as alternativas para a utilização da mão-de-obra desclassificada: constituição dos corpos que se aventuraram pelo sertão em entradas; a guarda, a defesa e a manutenção de presídios; o trabalho nas obras públicas e na lavora de subsistência; a formação de corpos de guarda e política privada; a composição de corpos de milícia e de outros recrutados esporadicamente para fins diversos; a abertura e povoamento de novas áreas. (SOUZA: 1982)

II- Identidade e Globalização

O processo de globalização constrange progressivamente o poder dos Estados, restringindo sua capacidade de operacionalização. Está se formando um novo paradigma nas relações sociais e econômicas. Apesar de toda a sua vitalidade, a economia global está agravando a exclusão social. Nesse sentido, o futuro do capitalismo global parece depender de uma profunda revisão de seus conceitos de modo a tentar compatibilizá-lo com uma distribuição mais equânime dos resultados de sua acumulação.

A interdependência é uma das palavras mais indispensáveis nos novos modelos de vida da sociedade. O poder e, portanto, as questões políticas, econômicas, religiosas e militares estão cada vez mais relacionadas. Apesar de um discurso universal, o processo de globalização ou de internacionalização, limita sua dinâmica nos denominados “países desenvolvidos”. Os “subdesenvolvidos” permanecem excluídos, embora os primeiros não vacilem em apoiar-se neles, especialmente na hora de obter matérias-primas a preços ridiculamente reduzidos. Nesse particular, Ladislau Dowbor oferece sua versão ao mundo globalizado:

Trata-se de uma globalização hierarquizada. Navegam com confiança neste espaço cerca de 500 a 600 grandes transnacionais que comandam 25% das atividades econômicas mundiais e controlam cerca de 80 a 90% das inovações tecnológicas. Estas empresas pertencem aos Estados Unidos, Japão, Alemanha, Grã-Bretanha, e poucos mais, constituindo um poderoso instrumento de elitização da economia mundial. No dizer de um franco economista, neste sistema “quem não faz parte do rolo compressor, faz parte da estrada”. A verdade é que ampla maioria das populações do mundo hoje faz parte da “estrada”. (DOWBOR, 1995)

Para Eric Hobsbawm, no mercado livre e global “tudo o que importa é a soma da riqueza produzida e o crescimento econômico, sem qualquer referência ao modo como tal riqueza e distribuída”. Como se pode observar, o processo de globalização está contribuindo para segregar povos e nações em torno de cadeias de empresas industriais e financeiras transnacionais. Em contrapartida, surgiram movimentos antiglobalização em todo o mundo que discutem às conseqüências negativas que atingiram a sociedade em quase todos os países – inclusive os países ricos. Eles partem do princípio de que as multinacionais conquistaram tanto poder que estão dando forma ao mundo segundo os seus interesses econômicos.

Essa nova vertente do capitalismo – especulativo, transnacional e financeiro – coloca novos problemas e desafios no âmbito da identidade cultural, ou seja, a integração de povos e culturas “transnacionais” é um fato real ou uma invenção distorcida da realidade? Nesta - suposta - inter-relação global há espaços de acomodação para as particularidades da cultura regional? Em que medida os grupos do grande capital transnacional se impõem à liberdade das tradições das civilizações – ditas – periféricas?

A charge acima nos ajudará a responder essas questões. Nesse sentido, ANGELI mostra pedintes solicitando esmolas a senhores “engravatados” que os observam com um certo espanto. Nela, está refletida o contraste entre a modernidade e a pobreza (miséria.com), tendo como pano de fundo uma paisagem urbana caracterizada pela incorporação de variados recursos tecnológicos.

Esta charge trabalha com a idéia de que para ser “moderno” é preciso usar uma “roupa de marca”. É importante observar que ser “moderno” significa criar uma identidade com uma etiqueta. Na verdade, a crítica é dirigida exatamente à falta de identidade no mundo globalizado e pós-moderno, isto é, excludente e banalizado. Para Jair dos Santos, “o ambiente pós-moderno denota que entre os homens e o mundo estão os meios tecnológicos de comunicação. Eles nos informam sobre o mundo e o refazem à sua maneira; hiper-realizam o mundo, transformando-o num espetáculo”. De modo geral, as relações de identidade cultural no mundo globalizado não estão sendo respeitadas face à estrutura majoritariamente imperante. Cria-se um modelo “universal” de identidade moderna e quem não se adequa a ele fica estigmatizado. Obviamente, este modelo pós-moderno tira de foco o que deveria ser fundamental. A tendência é olhar para os lados e não para o que é central. Perde-se o horizonte cultural particular e vê-se a verticalidade padronizada e inventada. As relações de identidade também tendem a ser globalizadas, valorizando-se o superficial e o obsoleto. Em suma, pode-se dizer que a mundialização além de excludente do ponto de vista da economia, também fixa padrões de identidade coletiva. É, por assim dizer, um ataque frontal a autodeterminação dos povos.

• CONCLUSÃO

O conceito de raça foi um dos elementos que compôs o imaginário do país durante a construção do Brasil como nação. Num primeiro momento, o conceito foi apropriado, pelas elites “pensantes” do país, das teorias raciais e racistas em voga na Europa nos séculos XVIII e XIX. Esta apropriação trouxe para as entranhas da nação a idéia da superioridade racial que, ainda hoje, dificulta a adaptação e a inserção das populações negra e mestiça do país no contexto de cidadãos e de cidadania, além de criar hierarquias entre as etnias brasileiras.

Enquanto colônia predominou no Brasil a idéia da diferença entre os seres alicerçada na religiosidade: a diferença residia no fato de que os portugueses eram cristãos, portanto, civilizados e os índios e africanos, pagãos, impuros. Com as idéias do iluminismo difundiu-se no Brasil e no mundo a idéia da classificação dos seres humanos em raças; as raças eram as diferenças que não estavam no campo da diversidade na origem, mas sim no caráter social da questão: os homens eram classificados pelo seu “nível de civilização”.

Com a independência e durante o Segundo Império, estas idéias foram dando lugar à outra: o conceito de raça aparece como determinador nas descrições do povo e da nação brasileiros. Assim, na segunda metade do século XIX, os debates sobre a abolição e as questões políticas do Brasil, a questão das raças se transformam no principal discurso da então política ‘nacionalista’ que se tentava implantar no Brasil.

Neste contexto, em que o Brasil começa a se consolidar como nação, havia uma busca de identificação do Brasil como uma nação ‘européia’, o processo de mestiçagem e branqueamento da população foi idealizado para tornar o país mais ‘europeizado’. Ainda assim, persistia no país a política de estabelecer as diferenças entre a parcela civilizada, aristocrática e superior da população – identificada à raça branca – e a parcela não-civilizada e ‘inferior’ - identificada às demais etnias, primordialmente aos negros. A definição de raça deixava então de se alicerçar em questões religiosas para se fundamentar no modelo de hierarquias ‘cientificamente estabelecidas’ entre os povos ou raças.

Michael Banton alerta para o fato de que a partir do momento em que os indivíduos começam a racionalizar o seu papel no Estado e se identificam pertencentes a uma nacionalidade e a uma determinada classe social ele acaba por determinar seu grupo racial e suas relações raciais, ou seja, as teorias sobre raça tinham, muitas vezes, por objetivo a tentativa de incluir a nacionalidade pela via de sua diversidade étnica fundamentada no discurso da ciência.

No Brasil a definição de raça parece estar intrinsecamente aliada aos termos classe e identidade. Se buscarmos hoje a definição do que significa “ser brasileiro”, a resposta dependerá como os indivíduos percebem a si mesmos e aos indivíduos à sua volta, ou seja, de como se faz sua construção subjetiva por cada um daqueles que - segundo Darcy Ribeiro – marca o nosso povo (nossa ninguendade); pois somos tantas culturas, tantas misturas, que se pode dizer que somos múltiplos.

Mas o que por ele é visto com fatalidade por ser visto de outra maneira: justamente a diversidade possibilitou o surgimento de uma nova identidade, que concilia todas aquelas que a formaram. Jeffrey Lesser alerta para o fato de o estudo das diferentes nações que compõem o Brasil foram por muito tempo deixadas de lado por conta da cor da pela e do fato destas pessoas serem oriundas de uma pátria não-branca . Lesser afirma que uma identidade nacional única ou estática jamais existiu: a própria fluidez do conceito fez com que ele se abrisse a pressões vindas tanto de baixo quanto de cima. Segundo ele, a "'brancura' continuou como um requisito importante para a inclusão na 'raça' brasileira, mas o que significava ser 'branco' mudou de forma marcante entre 1850 e 1950" (p. 21).

Com mais de cinco séculos de história e quase de 200 anos como nação independente, podemos dizer que a identidade nacional ainda está por construir. É importante observar, no entanto, que nosso passado colonial, ibérico e ocidental não é um modelo a ser seguido nem tampouco a ser admirado. Escravidão de etnias inteiras e subjugação de raças construiu o nosso passado/presente. Nossa história deve ser reescrita, assim como nossa mentalidade deve ser rememorizada.

• REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CARDOSO, Ciro Flamarion. O Trabalho na América Latina Colonial. São Paulo. Ática, 1988.
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DUPAS, Gilberto. Folha de São Paulo, 2 de abril de 1999.
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HORTA, Carlos Roberto. Globalização, Trabalho e Desemprego: Enfoque Internacional. Belo Horizonte. C/Arte, 2001.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso. Os (Des)Caminhos da Identidade. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Volume 15, Número 42, fevereiro de 2000, p- 07-21.
SANTOS, Jair Ferreira dos. O Que é Pós-Moderno. Brasiliense. São Paulo, 1986.
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.
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SANTOS, R. V. & MAIO, M.C. Qual “Retrato do Brasil?” Raça, Biologia, Identidades e Política na era da Genômica. Mana, 2004
SCHWARCZ, Lílian Moritz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil (1870-1930). São Paulo. Companhia das Letras, 1993.

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