A CAPOEIRA COMO QUILOMBAGEM
A Capoeira como Quilombagem.
Resumo
Realiza breve análise da capoeira enquanto forma de organização política escrava, abordando o Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XIX, demonstrando seu caráter enquanto quilombagem e sua importância como fator de resistência à escravidão urbana.
1 APRESENTAÇÃO
As lutas sociais dos movimentos negros, debates políticos e debates intelectuais engajados, têm como foco central a mudança da sociedade brasileira visando à inclusão e participação qualitativa e quantitativa do negro. Para que isso ocorra, é preciso partir da situação concreta do negro, enfocando positivamente sua participação política e econômica nos diversos momentos da história do Brasil e apontando suas contribuições no complexo cultural. Este é um dos melhores caminhos para destruir as imagens negativas que bloqueiam o processo de construção de uma auto -estima justa e para questionar e desconstruir os mitos sobre a incapacidade inata do negro que, dizem os racistas, não teria trazido nada de bom para a história do Brasil e da humanidade. Nesse sentido, como analisa Moura (1983, pp. 9-10), as estratégias de resistência criadas pelos negros escravizados são um conjunto de ações e reações que significaram a contribuição do negro africano, ou afro-descendente, no sentido de ver o modo de produção escravista substituído no Brasil pelo trabalho livre. São estratégias de dissimulação, ambigüidades, mas também de conservação dos valores culturais do negro. Essas formas de resistência, quer no passado escravista, quer depois da extinção do trabalho escravo, irão representar algumas das formas através das quais a população negra dinamizou o processo de transformação da sociedade durante a formação e desenvolvimento da nação brasileira. Estas estratégias manifestaram-se através de várias formas, algumas alternativas, outras simbólicas ou ambíguas, mas todas elas com o significado de resistência direta ou indireta ao sistema escravista e ao racismo.
O preconceito da historiografia tradicional brasileira aborda as rebeliões coloniais como determinadas exclusivamente pela contradição metrópole X colônia, percebendo a história brasileira como exclusiva da elite branca, deixando de lado as rebeldias e construções históricas negras e indígenas. “Foram essas, no entanto, as legítimas rebeliões coloniais, pois implicavam na reversão da situação colonial, basicamente apoiada na escravidão de negros e na escravidão e servidão de índios”. (BARBOSA e SANTOS, 1994, p. 106). O enfrentamento individual ou coletivo, sem formação de comunidade alternativa, foi uma forma de rebeldia negra bem mais comum do que se crê, variando o seu alcance conforme o contexto político geral, contribuindo para o desgaste do sistema produtivo, levando à Abolição.
Os quilombos foram - por sua organização e continuidade histórica - a maior expressão de resistência à escravidão no Brasil. Analisados no seu conjunto, percebe-se a sua continuidade histórico-social, a qual determina a quilombagem como processo de desgaste às forças – sociais, econômicas, culturais – do modo de produção escravista. A quilombagem é “um movimento emancipacionista que antecede, em muito, o movimento liberal abolicionista; ela tem caráter mais radical, sem nenhum elemento de mediação entre o seu comportamento dinâmico e os interesses da classe senhorial.” (MOURA, 1983, p. 33).
Assim, o quilombo é o centro organizacional da quilombagem, embora outros tipos de manifestação de rebeldia também se apresentassem, como a capoeira, por exemplo. Entende-se, portanto, por quilombagem
Uma constelação de movimentos de protesto do escravo, tendo como centro organizacional o quilombo, do qual partiam ou para ele convergiam e se aliavam às demais formas de rebeldia. (...). Incluímos, por esse motivo, no conceito geral de quilombagem outras manifestações de protesto racial e social (...). Isso se explica não somente porque esses movimentos emancipacionistas escravos se inserem na mesma pauta de reivindicações dos quilombolas, mas também porque esses negros urbanos contavam como aliados os escravos refugiados nos diversos quilombos existentes (...). O fenômeno da quilombagem, achamos nós, tem como epicentro o quilombo, mas nele podem ser englobadas todas as manifestações de resistência da parte do escravo (...). Era um cadinho de perseguidos pelo sistema colonial. Era no quilombo e nas demais manifestações da quilombagem que essa população marginalizada se recompunha socialmente. Por tudo isto a quilombagem tem uma dimensão nacional (...). (MOURA, 1983, p. 33).
Barbosa e Santos (1994, p. 116-117), levantam também a noção de quilombismo:
(...). O quilombismo se estruturava em formas associativas que tanto podiam estar localizadas no seio de florestas de difícil acesso que facilitava sua defesa e sua organização econômico-social própria, como também assumiram modelos de organização permitidos ou tolerados, frequentemente com extensivas finalidades religiosas (católicas), recreativas, beneficentes, esportivas, culturais ou de auxílio mútuo. (...). Genuínos focos de resistência física e cultural. Objetivamente, essa rede de associações, irmandades, confrarias, clubes, grêmios, terreiros, centros, tendas, afochés, escolas de samba, gafieiras, foram e são quilombos legalizados pela sociedade dominante; do outro lado da lei se erguem os quilombos revelados que conhecemos. Porém tanto os permitidos quanto os “ilegais” foram uma unidade, uma única afirmação humana. Étnica e cultural, a um tempo integrando uma prática de libertação e assumindo o comando da própria história. (BARBOSA e SANTOS, 1994, p. 117).
Este trabalho adota a noção de quilombagem para analisar a capoeira das primeiras décadas do século XIX na cidade do Rio de Janeiro. Por tratar-se de uma noção específica de resistência escrava, foi escolhida para abordar a capoeira do período (predominantemente realizada por escravos) em detrimento da noção de quilombismo – que aborda a resistência negra em geral, inclusive na atualidade. Assim, é dentro da perspectiva de quilombagem que a capoeira, enquanto forma de resistência do escravo negro, será abordada neste trabalho, especificamente no período das primeiras décadas do século XIX no Rio de Janeiro (capital da Colônia na época), onde ela ainda obtinha, em sua maior parte, a participação de escravos negros, contribuindo, nesse sentido, inclusive para a Abolição.
Por falta de fontes de pesquisa sobre a capoeira entre os séculos XVI e XVIII, não é possível reconstruir o processo que levou o deslocamento da capoeira do campo à cidade. Por serem do começo do século XIX os primeiros registros dos capoeiras urbanos, e ser, o Rio de Janeiro, a capital da Colônia na época, este trabalho abordará especificamente este universo para análise da capoeira enquanto quilombagem. Nota-se ainda, a importância do fenômeno capoeira no Rio de Janeiro, o qual muitas vezes é deixado de lado na atualidade, até mesmo por capoeiristas, que mencionam apenas fatos e personagens históricos da capoeira baiana, esquecendo-se do poder político dos capoeiras cariocas no século XIX. Com todo o reconhecimento e respeito que a capoeira baiana merece na história do Brasil, principalmente a partir da década de 1930, não se pode deixar de lado, os aspectos de força política que a capoeira carioca representou ao longo do século XIX. Apagar a memória da capoeira carioca do período foi, inclusive, estratégia política adotada muito posteriormente já no advento do Estado Novo de Getúlio Vargas – que adotou o apoio à capoeira baiana como forma de controle desta prática, estimulando o esquecimento sobre a força política negra que a capoeira carioca demonstrou. Mas como analisar os meandros desta discussão extrapola os objetivos deste trabalho, serão abordadas agora, algumas características da capoeira carioca do período que a definem como quilombagem.
2 A CAPOEIRA ESCRAVA
Ao analisar o conteúdo dos decretos que punem os capoeiras, publicados entre 1821 e 1834, percebe-se que “três deles aludem explicitamente aos “escravos capoeiras” (...); outros três referem-se ao castigo dos açoites, aplicados aos escravos (...); por fim, os outros quatro decretos pedem providências sobre negros chamados capoeiras, pretos capoeiras, capoeiras e malfeitores (...) e capoeiras suspeitos de andar armados”. (REIS, 2000, p. 14). Os dados coligidos por Soares (2002) confirmam essa presença massiva de escravos capoeiras na primeira metade do século XIX. Para o autor, a capoeira configura-se “como uma invenção escrava e urbana do Brasil”. (SOARES, 1994, p. 25) , ainda que marcado por um forte legado africano. Também Holloway (1993) , informa que, dentre as causas das prisões de escravos, a capoeiragem era uma das mais expressivas. Soares (2002, p. 38), diz que em 1810 é vigorosa a escalada de atuação das maltas de capoeira (nome policial para os agrupamentos de capoeiras) na cidade, o que resultou em redobrada atividade repressiva do novo aparato policial recém criado por Dom João VI.
Dissemos em outra parte que era a escravidão que maior contingente fornecia ao exército de capoeiras. (...) Transportando-nos aos primeiros dias do império vemos que o governo foi obrigado a lançar mão de medidas enérgicas a fim de conter os desmandos da capoeiragem. (ARAÚJO, 1898, pp. 55-62 ).
Sobre a política escrava – no caso do enfrentamento coletivo com senhores ou com o Estado – Karasch (2000) relaciona as maltas de capoeira, entendendo-as como grupos de apoio mútuo, tal como as confrarias de negros, que estavam voltados ara os conflitos de rua, não para a vida devocional e de assistência. A polícia desconhecia este caráter agregativo e via os capoeiras como pouco mais do que desordeiros de rua. Classifica as maltas como sociedades secretas, com as mesmas características, como rituais, orações, sinais e saudações secretas, que mesclavam práticas da maçonaria com misteriosos estilos africanos. Estas sociedades assombravam os senhores de escravos do Rio com a possibilidade de um grande levante. Eram, na realidade, a ponta do iceberg, a parte visível de uma organicidade muito mais complexa, onde libertos, escravos e livres pobres encontravam proteção e solidariedade. E esta sociedade foi capaz de sobreviver a longos anos de feroz perseguição. Karasch (2000), percebe ainda como as maltas respondiam por uma certa geografia escrava na cidade, voltada para a autodefesa de grupos e o controle de partes na cidade. Esta geografia se tornou tão sólida que até parcelas da elite política da cidade passaram a fazer uso destes grupos. Mesmo assim, estas sociedades clandestinas continuaram a ser acusadas de planejar levantes escravos, o grande fantasma da classe senhorial carioca.
Mas os capoeiras também foram utilizados como aliados dos interesses senhoriais. Faziam o papel de assassinos de aluguel e guarda-costas, muitas vezes por determinações de seus senhores. Quando da rebelião dos mercenários irlandeses e alemães (que se revoltaram por causa de mau tratamento) em 1828, os senhores do Rio deram permissão virtual para que seus escravos caíssem sobre os revoltosos e os matassem impunemente. O governo só conseguiu dominar a rebelião com a ajuda dos capoeiras e dos escravos da cidade. Esta atitude custaria caro para os senhores nos anos seguintes, quando o espectro da rebelião escrava toma conta do Rio. Além dos conflitos senhoriais, escravos também entravam em brigas com militares, fatos estes que muitas vezes degeneravam em graves incidentes.
A capoeira era uma atitude permanente de rebelião, apesar de não se dirigir diretamente contra a instituição escravista. Se enquadrava naquilo que Soares (1988) chamou de “rebelião de baixa intensidade”, isto é, estratégia de acossar permanentemente os beneficiários e mantenedores da ordem escravista – senhores e policiais -, mas não enfrentá-los diretamente, o que seria uma derrota certa. Assim, a capoeira se assemelha a uma luta de guerrilha, mesmo nos moldes de uma sociedade do século XIX. Daí o seu caráter de quilombagem.
As maltas eram, na verdade, uma necessidade de auto-defesa diante da truculência senhorial e policial, como observa Karasch (2000).
Utilizada como uma forma de luta e também de dança, a capoeira era tida pelos negros como meio de defesa. Assim como o exército e a polícia serviam aos senhores, esse grupo se organizou em resposta às necessidades de proteção física dos escravos, especialmente quando proibidos de carregarem armas. (...) por volta do século XIX os capoeiras já estavam organizados na Corte, em maltas e irmandades, cuja finalidade era defender seus companheiros de raça. Durante o primeiro Império, cada bairro possuía sua malta rival das dos outros bairros. (KARASCH, 1972, p.329)
A incidência de ocorrências envolvendo capoeiras a partir de 1810 aumenta, o que mostra uma estratégia escrava por trás dos enfrentamentos com a ordem policial, mesmo não sendo resultado de uma liderança única e determinada, mas sim de uma experiência comum da escravaria urbana.
A repressão do aparato repressivo da Corte era constante, mas não conseguiu acabar com a capoeira como prática cultural.
Detenção por capoeiragem foi uma das mais freqüentes razões de Estado para prisão de escravos anotadas nos registros da velha Intendência de Polícia da Corte, para o período 1810-1820. Durante este período, pelo menos 411 escravos foram presos e remetidos ao Calabouço como capoeiras, onde eles eram condenados a sofrer entre 50 a 300 chibatadas. E era também comum eles serem detidos por diversos meses antes de serem retornados aos seus senhores. Neste período, a polícia também prendeu 29 capoeiras livres, que sem dúvida sofreram açoites e alguns meses de prisão. (SOARES, 1988, p. 390) .
Importante também era a reação dos senhores de escravos, quando seus cativos estavam sob pressão das forças policiais. Eles protestavam quanto à perda de suas propriedades diante dos desmandos do Estado, acobertando, muitas vezes, os atos de seus cativos, como as saídas noturnas e a formação de grupos de rua. Faziam isso preocupados em perderem os serviços de sua força de trabalho.
Em 1822, possivelmente sob pressão dos senhores de escravos que estavam relutantes em perder os serviços de seus escravos por um período considerável, as autoridades buscaram padronizar o castigo dos capoeiras que eram presos para 100 açoites, após os quais eles eram imediatamente retornados aos seus senhores, com exceção dos que eram culpados por outros crimes. (SOARES, 1988, p. 390) .
As inúmeras determinações policiais para banir a capoeira da cidade são percebidas também por Holloway (1997) . E a reiteração destas medidas indicava uma forte presença no imaginário cultural e simbólico relativo a escravos e indivíduos de baixa condição. Este autor considera a importância da continuidade do fenômeno (capoeira), sendo uma resposta dos escravos e de seus aliados nas camadas inferiores da sociedade urbana ao sistema de controle que o Estado emergente lhes impunha. Finalmente, o autor demonstra a especificidade da capoeira como forma de resistência afro-brasileira na época:
As atividades das maltas e sua técnica específica de luta fizeram da capoeira o esforço mais persistente, e talvez mais bem-sucedido, dos afro-brasileiros urbanos para estabelecer um espaço social, uma área de atividade que pudessem controlar, usada em seu proveito segundo suas prórpias condições, excluindo os de fora. (...) Ela se destaca entre os vários métodos de resistência comumente utilizados pelos escravos do Rio de Janeiro, que vão desde a redução do ritmo de trabalho e a sabotagem, maneiras mais disponíveis e diretas de resistir ao trabalho forçado, passando pela fuga e a formação de quilombos nas cercanias da cidade, até a franca rebelião armada, mesmo que em pequena escala e sempre rapidamente sufocada pelas forças de segurança. (HOLLOWAY, 1997, pp. 207-211)
Portanto, levantaram-se algumas peculiaridades da capoeira escrava no Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XIX, que a definem como prática de quilombagem - como definida por Moura (1983) -, portanto, de resistência escrava ao sistema escravista.
3 CONCLUSÃO
Diversas foram as formas de resistência do negro escravizado no Brasil. A ciência social tradicional, com enfoque racista, aborda os conflitos e movimentos de rebelião do país como prioritários de uma elite branca. Deixam de lado o papel dos índios e, principalmente dos negros e afro-descendentes no processo histórico do Brasil, como executores das mudanças e rebeliões que traçaram as linhas da nossa história, permeando e preservando sua rica cultura como executores do processo, e não como simples coadjuvantes, como muitas vezes são abordados.
A capoeira permeia as teias de nossa história, em diversos locais e períodos históricos, até os dias atuais em que se espalhou, inclusive, pelo mundo. Estratégia política de resistência ao sistema escravista, adotou no Rio de Janeiro do século XIX, um caráter de forte poder e mobilidade política dos negros e afro-descendentes, driblando com sua ginga o sistema, modificando com sua ambigüidade a ordem imposta pelo branco. Virou “o mundo de pernas pro ar” como bem observado por alguém , através da sua capacidade de negociação constante com o sistema, sem perder seu enfoque de resistência e agregação, que definiram seu caráter político de enfrentamento à escravidão. Das práticas de quilombismo, caracterizou-se pela sua persistência e continuidade, apesar de sempre ter sido foco de perseguição até a década de 1930, chegando inclusive a ser criminalizada por cerca de 40 anos. Contribuiu pelo seu caráter de resistência constante, de dentro pra fora no processo de abolição da escravidão no país.
Abordar a história da capoeira sob esta ótica, refrescando a memória sobre a capoeira escrava carioca, é também, abordar a história de resistência do negro e afro-descendente no Brasil como realizadores do processo histórico que culminou, entre outros diversos fatores, com a passagem do trabalho escravo para o assalariado no Brasil.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Wilson do nascimento; SANTOS, Joel Rufino – Atrás do muro da noite. Brasília, Fundação Cultural Palmares/MINC, 1994.
MOURA, Clóvis. As raízes do protesto negro. São Paulo: Global Editora, 1983.
REIS, Letícia Vidor de Sousa. O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Publisher Brasil, 2000, 208p.
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). 2ª ed. Ver e ampl. Campinas: Editora Unicamp, 2002, 608p. (Coleção várias histórias).
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