BERIMBAU TOCOU NA CAPOEIRA
Berimbau tocou na capoeira.
"A hora é essa
A hora é essa
Berimbau tocou
Na capoeira
Berimbau tocou
Eu vou jogar”
Foto: DEBRET. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Paris: Didot Firmin et Fréres, 1824.
Resumo
Realiza breve histórico do instrumento berimbau analisando sua presença dentro da capoeira, discorrendo sobre alguns tipos de toques de berimbau específicos no jogo da capoeira e alguns de seus elementos culturais: Santa Maria, Jogo de Dentro, Angola e Benguela.
Palavras-chaves: Capoeira; Berimbau; Toques; Santa Maria; Jogo de Dentro; Angola; Benguela.
1 BERIMBAU
A origem do nome berimbau ainda é controversa. O termo aparece nos primeiros lexicógrafos da língua portuguesa, como Bluteau e Moraes, sem a menor insinuação etimológica. A Real Academia Española na 12ª edição de seu dicionário, em 1884, registrou o verbete, que até hoje ainda permanece com proposição onomatopaica para a sua origem – “voz imitativa del sonido de este instrumento”. Cândido de Figueiredo recorre ao francês brimbale. Nascentes define-o, porém silencia quanto ao étmio. Proposições para a origem africana há de Leite de Vasconcelos, em artigo publicado na Revue Hispanique, onde apresenta o mandinga bilimbano. Renato Mendonça propõe o quimbundo mbirimbau, com a simplificação do grupo consoântico mb. Por fim, Carominas depois de achar que a origem é duvidosa, admite que talvez seja africana. Édison Carneiro (1975, p. 15), menciona que o vocábulo era conhecido, mas havia confusões, pois designava, em geral, um instrumento aerofone, presente em todos os continentes, trazido ao Brasil pelos portugueses – tratava-se do berimbau de boca. O Pequeno Dicionário de Aurélio Buarque de Holanda, reimpressão de 1968, ensina: “pequeno instrumento sonoro de ferro, que se toca segurando-o nos dentes e acionando a lingueta com o dedo indicador” (In: CARNEIRO, 1975, p.15). É difícil dizer exatamente como, quando e por que o apelativo de um instrumento aerofone acabou designando também um instrumento cordofone, tão diverso na sua estrutura e na sua função. Chamando-o de berimbau-de-barriga, os capoeiras o diferençavam e distinguiam do outro, de boca, e o descreviam melhor.
Entretanto, a alternativa preferida parecia ser gunga, forma assumida no Brasil pela palavra angolana hungu, em que o h aspirado, como no exemplo clássico Dahomé/Dagomé, se transformou em g. É como gunga que ao berimbau se referem, como já acontecia na ocasião, muitas chulas de capoeira. (CARNEIRO, 1975, p. 15-16).
“Panhe esse gunga
Me venda ou me dê
Esse gunga não é meu
Eu não posso vendê”
“Esse gunga é meu
Eu não dô a ninguém
Esse gunga é meu
Foi meu pai qui me deu”
Quanto ao instrumento em si, Waldeloir Rego (1968, p.73) diz que “não se pode precisar a sua verdadeira origem e por que vias entrou no Brasil”. Há registro deste instrumento em vários cantos do universo, inclusive na África, conforme observação e documentação de Hermenegildo Carlos de Brito Capello e Roberto Ivens, quando da viagem empreendida pelos territórios de Iaca e Benguela, durante os anos de 1877-1880. Por outro lado, Édison Carneiro diz que
(...) se podemos identificá-lo (o berimbau) com o humbo e o rucumbo, não há razões válidas para negar sua origem africana. (...) Não há a menor dúvida – trata-se de um instrumento originário de Angola. Em outros pontos da África Ocidental, encontram-se instrumentos musicais com a mesma estrutura básica do berimbau – corda, cabaça e arco – mas provém diretamente do humbo e do rucumbo de Angola aquela que agora acompanha o jogo da capoeira. (CARNEIRO, 1975, p.18).
Tem as mais variadas denominações levantadas por diversos pesquisadores: berimbau, urucungo, orucungo, oricungo, uricungo, rucungo, berimbau de barriga, gobo, marimbau, bucumbumba, gunga, macungo, matungo, rucumbo, nucumbo, humbo, burumbumba, rucumbo, humbo, hungu, lucungo, m’bolumbumba. Para Édson Carneiro (1975, p. 19), Humbo, rucumbo, hungu e lucungo, nas várias línguas que se falam em Angola, são os étimos de dois sinônimos de berimbau em uso no Brasil – gunga, na Bahia, e urucungo, na região centro-sul.
Outro aspecto levantado por estudiosos é o fato de que no lugar do arame atualmente utilizado, em outros tempos, tratava-se de uma corda feita de tripa, de algodão fabricado pelos povos em Angola, de cobre ou latão. Da mesma forma, a moeda utilizada pelos capoeiras para tocar o instrumento (dobrão) não era citada como instrumento para tocar o berimbau. Porém, a cabaça e o pedaço de pau onde o fio grosso era amarrado e uma cordinha que amarrava a cabaça ao pedaço de pau são sempre citados. A vareta ou a variante de tocar com os dedos também se encontra nas citações, assim como a observação de ter o berimbau sons parecidos com os de uma viola.
“Chora viola ê
Chora viola á
Chora viola chora viola viola”
De acordo com Rego,
O berimbau que hoje é divulgado e tocado em todo o território brasileiro é um arco feito de madeira específica, pois qualquer madeira não serve, ligado pelas duas pontas por um fio de aço, de vez que arame, além de partir rapidamente, não dá o som desejado. Numa das pontas há uma cabaça (Cucurbita lagenaria, Linneu) que não deve ser usada de modo algum verde, quanto mais seca melhor. Faz-se uma abertura na parte que se liga com o caule e parte inferior, dois furos, por onde deve passar um cordão para ligá-lo ao arco de madeira e ao fio de aço. Toma-se de um dobrão (moeda antiga), um pedacinho de pau, um caxixi e o instrumento está pronto para se tocar. (REGO, 1968, p. 72).
Outro aspecto interessante, que leva a crer na origem africana do berimbau (já que o grande contingente de escravos brasileiros era de africanos) é o observado por Édison Carneiro
A área antiga do berimbau (que ainda não tinha este nome) compreendia a Bahia, o Maranhão, Pernambuco e o Rio de Janeiro – cobria exatamente os quatro grandes centros nacionais de distribuição de escravos. (CARNEIRO, 1975, p. 17).
Mas desde quando o berimbau está associado à capoeira?
De acordo com Carneiro (1975, p. 19), há notícia da capoeira desde a transferência da capital do país da Bahia para o Rio de Janeiro / (1763), mas, tratando-se de uma forma de luta pela liberdade, naquele período, não seria de se esperar a presença de instrumentos musicais. Estes só apareceriam mais tarde, quando os negros passaram a exercitar-se para embates futuros. Pertence certamente a esta fase a gravura “jogo de capoeira” de Rugendas, Viagem Pitoresca Através do Brasil, 1835 (Figura 1), devendo-se notar, porém, que o único instrumento musical à vista é um tambor, que um negro toca com as mãos, cavalgando-o.
Porém, ao analisarmos os ensinamentos de Mestre Pastinha – tendo, portanto, uma visão de dentro da capoeira encontramos a seguinte definição de berimbau: “O berimbau é música. É instrumento musical. (...) E na hora da dor ele deixa de ser instrumento e passa a ser uma foice de mão”. (In: Documentário desenvolvido pelo Grupo de Capoeira Angola Pelourinho – Angola A Capoeira Mãe – retirado da internet).
Como nota-se na citação, dentro da perspectiva de Mestre Pastinha, o fato de ser um instrumento musical não separa o berimbau de ser, também, uma arma de defesa pessoal dentro da luta. Portanto, talvez, a presença musical na capoeira e até mesmo do berimbau, não estaria necessariamente ligada ao momento histórico em que ela deixa de ser luta no espaço urbano (como no exemplo das maltas de capoeira no Rio de Janeiro, ou como defesa pessoal de escravos contra feitores nos mais diversos locais no Brasil, ou defesa dos capoeiras contra a polícia, posteriormente) para tornar-se jogo (ou esporte) a partir do momento em que a capoeira sai da ilegalidade no código penal brasileiro. Da mesma forma, se considerarmos a cosmovisão africana banto (influenciadora da capoeira), em que a música está intimamente ligada aos demais aspectos do ser humano e da vida comunitária (por exemplo: ao mesmo tempo em que se dança, se reverencia uma entidade religiosa; ao mesmo tempo em que se joga, se ensina aos mais novos da comunidade a vivência dentro da lógica social através do jogar e, ao jogar, reverencia-se anteriormente e posteriormente alguma entidade através da música e do ritual, o corpo é música, a música é corpo). Sendo assim, não se pode afirmar com precisão que a musicalidade na capoeira exista somente a partir do momento em que ela deixa de ser ilegal no Brasil (ou seja, a partir do século XX). É fato que não há registros da presença marcante (como o é atualmente) do berimbau na capoeira, antes do século XX. Mas também não se pode afirmar que a musicalidade não existia na capoeira antes deste período.
Ainda sobre a presença do berimbau na capoeira, cabem as observações de Rego (1968, p. 58) sobre a capoeira de Mestre Bimba , chamada de luta regional baiana (capoeira regional).
Mestre Bimba, por exemplo, não admite o berimbau no começo do aprendizado, isso só acontecendo na terceira fase, a que chama seqüência com berimbau, sem se falar nos discípulos já formados, que jogam durante um tempo enorme, usando todos os golpes necessários, sem que se ouça uma nota musical qualquer, partida de um dos instrumentos musicais da capoeira. (...) as escassas informações deixadas pelos cronistas e viajantes que por aqui passaram (...) quando se referem à capoeira, são unânimes em falar isoladamente do jogo sem o toque; ou do berimbau, hoje instrumento principal da capoeira, mas sem a ela referirem. (REGO, 1968, p. 58-59).
Tudo faz crer que o berimbau, primitivamente, era um instrumento solista – ou, para ser mais exato, uma viola africana. Ladislau Batalha viu nele algo como uma “guitarra” monocórdia, enquanto o major Dias de Carvalho, para quem os sons do berimbau lembravam os de uma viola, escreveu, decisivamente: “os luandas chamam-lhe violâm. Tocam-no quando passeiam e também quando estão deitados nas cubatas”. (In: CARNEIRO, 1975, p. 20). Por outro lado, Rego (1968, p. 71), explica que “o berimbau não existiu somente em função da capoeira, era usado pelos afro-brasileiros em suas festas e, sobretudo no samba de roda, como até hoje ainda se vê, se bem que muito raro”.
Das fontes citadas, apenas Manuel Querino o dá como acompanhamento musical da capoeira – e não do treinamento, digamos, de profissionais, mas de amadores. Fazia o ritmo para o brinquedo, antecessor da vadiação atual. É de supor que somente no século XX, e na Bahia, o berimbau se tenha incorporado ao jogo de Angola, de maneira insubstituível, dominante e caracterizadora. Foi, a partir de então, provavelmente, que o instrumento se fez mais comprido, que o arame substituiu de vez a corda de fio ou de tripa e que o berimbau se enriqueceu com o caxixi e a moeda de cobre, dobrão, 40 réis ou dois vinténs do tempo do Império, com que o conhecemos agora. (CARNEIRO, 1975, p. 20).
2 TOCOU
De acordo com Rego (1968, p. 58) não há documentação fidedigna que afirme taxativamente que no princípio, no jogo da capoeira só havia golpes. Entretanto, a presença marcante do berimbau também não existia, consequentemente os toques teriam vindo depois e se adaptado aos golpes. Para Rego (1968, p. 59), há no acompanhamento musical, toques que se poderia chamar de gerais, porque são comuns a todos os capoeiras, os quais são executados ao lado de outros que são particulares de determinada academia ou mestre de capoeira. Também acontece, e não raro, um mesmo toque, apenas com denominação diferente entre os capoeiras. Para que se tenha uma idéia, Rego (1968, p. 59) recolhe o nome dos toques de alguns capoeiras, que na época atuavam na Bahia. Segue citação dos mestres onde a presença dos toques Jogo de Dentro, Angola, Benguela e Santa Maria estão presentes, já que este trabalho é especificamente sobre estes toques.
Mestre Bimba (Manoel dos Reis Machado): Benguela e Santa Maria;
Canjiquinha (Washington Bruno da Silva): Angola (há, também neste mestre, outros toques chamados de Angola em Gêge e Angolinha), Santa Maria, Jogo de Dentro;
Pastinha (Vicente Ferreira Pastinha): Angola, Santa Maria;
Gato (José Gabriel Goes): Angola (com o variante Angolinha), Jogo de Dentro, Benguela (com o variante Benguela sustenida), Santa Maria (com o variante Santa Maria Dobrada);
Waldemar (Waldemar da Paixão): Benguela, Santa Maria, Angolinha (o nome do toque é Angolinha e não Angola);
Bigodinho (Francisco de Assis): Jogo de Dentro, Angola (há também Angolinha), Santa Maria;
Arnol (Arnol Conceição): Angola (há também Angolinha), Jogo de Dentro;
Traíra (João Ramos do Nascimento): Santa Maria (com o variante Santa Maria Regional), Angola (com os variantes Angola Dobrada, Angola Pequena e Angolinha), Jogo de Dentro.
Percebe-se que alguns toques ocorrem com freqüência para vários mestres. Os toques divergentes raramente constituem um toque totalmente diferente dos demais. Via de regra, é um já existente, apenas com outro rótulo ou então uma ligeira inovação, introduzida pelo tocador, fazendo com que se dê um nome novo.
A denominação de alguns toques da capoeira está ligada a determinados povos ou regiões africanas pura e simplesmente pelo nome, ou são toques litúrgicos ou profanos de que a capoeira se valeu, como Benguela, Angola, Ijexá e Gêge-ketu. (REGO, 1968, p. 63).
A partir da citação de Rego, pode-se inferir também, que a denominação de alguns toques referentes a regiões africanas (Angola, Benguela), foi adotada como forma de reafirmação cultural do afro-brasileiro com sua matriz africana, em um período em que a luta pela liberdade social e de expressão cultural do afro-descendente no Brasil estava tomando cada vez mais força. Quanto ao toque Jogo de Dentro, Rego faz a seguinte observação:
O capoeirista Canjiquinha tem um toque com a denominação de muzenza, que não é senão o toque jogo de dentro. Na Bahia, muzenza é o nome que se dá à noviça nos candomblés de nação Angola. Quando ela aparece em público para dar o nome de seu orixá (deus), canta-se uma cantiga de saída de muzenza, onde ela vem dançando uma coreografia ligeiramente curvada. Com base nessa coreografia, a malícia popular resolveu caricaturar a dança, aumentando a curvatura do corpo, dando a impressão que se vai ficar de quatro pés. Com isso se vê, constantemente, a brincadeira entre dois homens, quando um pede qualquer coisa ao outro, então o que não quer dar responde: - “só dançando muzenza...”, isto é, só ficando em posição de quatro pés, para ser possuído sexualmente. Indaguei de Canjiquinha por que deu o nome de muzenza ao toque jogo de dentro, respondeu-me que apenas por deboche. (REGO, 1968, p. 64).
Não foi encontrada na pesquisa realizada nenhuma referência ao porque do nome Jogo de Dentro, assim como ao toque Santa Maria. Para o toque Benguela, há referência da variante na nomenclatura para Banguela.
3 NA CAPOEIRA
Cada toque de berimbau na roda de capoeira, possui um significado, uma simbologia e código que, na atualidade, determina a forma de jogar a capoeira e também o comportamento do côro (voz) na roda. Por exemplo, os toques de nome Angola e Benguela, possuem denominação que também indica uma forma específica de jogar a capoeira na roda. A figura de Carybé – 1975 - (Figura 2), demonstra como o berimbau, dentro desta perspectiva, passa a ser o mestre da roda, já que de acordo com o toque executado, a forma de jogar será determinada.
“Cada mestre é um estilo. A capoeira é uma só e quem comanda o jogo é o berimbau com os mesmos toques e cantigas”.
Percebe-se que nesta perspectiva, há certo padrão de toques de berimbau, definidor de certo modo de jogar (e de se comportar na roda). A capoeira passa a ter na musicalidade fonte de sua essência, já que esta define a forma de jogar a capoeira e os demais códigos na roda.
Para efeito explicativo, será explicado como este código entre toque e jogo é desenvolvido no Grupo Bantus Capoeira de Belo Horizonte – Minas Gerais (Mestre Pintor), que segue, basicamente, a simbologia do jogo de capoeira angola desenvolvido por Mestre João Pequeno (aluno de Mestre Pastinha – Bahia), apesar de algumas modificações, e referências da capoeira regional (no caso do toque Benguela) que é desenvolvido pelo Grupo Bantus Capoeira, fundamentado (apesar de algumas diferenças) no jogo de benguela de Mestre Bimba.
Assim, definem-se como efeito explicativo os seguintes sons básicos do berimbau:
Tchi – quando o dobrão encosta levemente no arame (som “arranhado”), cabaça encostada na barriga, vareta bate no arame em um ponto imaginário um pouco acima do dobrão.
Chi – quando o dobrão encosta levemente no arame quando ele está ainda vibrando.
Tim – quando o dobrão pressiona o arame com firmeza, cabaça não encosta na barriga, vareta bate no arame em um ponto imaginário acima do dobrão.
Tom – quando o dobrão não encosta no arame, cabaça fica desencostada da barriga, vareta bate em um ponto imaginário abaixo do dobrão.
Toque Angola: tchi tchi tom chi tim
Usado para jogo de capoeira angola (toque realizado pelo berimbau mais grave – gunga). Durante a execução do toque, no início da roda (ou quando a bateria pára de tocar para recomeçar a tocar durante o jogo ou entre um jogo e outro) canta-se a ladainha. Neste momento não deve haver jogo (os jogadores e os demais presentes na roda precisam ouvir a ladainha inteira e aguardar a indicação do tocador de gunga para o início do jogo ou esperar a chula começar para poder jogar). Este toque pode, ainda, ser realizado como base pelo berimbau gunga no decorrer da roda inteira de capoeira angola, servindo, após a ladainha, de acompanhamento para as chulas e corridos (cantigas) durante o jogo. Na ladainha não há côro, o côro começa a participar a partir da chula. As pessoas na roda devem ficar assentadas e não há palmas como acompanhamento da música.
Exemplo: O berimbau gunga começa a tocar o toque Angola. Ao seu lado direito, o berimbau médio toca São Bento Pequeno; ao lado direito do médio, o berimbau violinha toca São Bento Pequeno (pode ter variações, como tocar Santa Maria, e mais liberdade de improvisos); Pode ocorrer também, do berimbau gunga tocar São Bento Pequeno. Nesse caso, quem toca Angola é o berimbau médio, enquanto o violinha continua no improviso. Ao lado esquerdo do tocador de berimbau gunga fica o atabaque, que não é tocado durante a ladainha. Ao lado direito do berimbau violinha, fica o pandeiro (há variação entre usar 1 pandeiro ou 2 pandeiros – quando são 2, ficam os dois pandeiros um ao lado do outro). Os pandeiros tocam junto com os berimbaus durante a ladainha. Ao lado esquerdo do atabaque fica o reco-reco e ao lado esquerdo do reco-reco fica o agogô. Estes dois últimos também só são tocados após a ladainha. As pessoas na roda ficam assentadas em círculo que tem como ponto inicial as extremidades da bateria (no caso, o agogô e o pandeiro que está ao lado direito do violinha). Ou seja, na circunferência, o ponto inicial é a bateria. Os dois jogadores (um em cada lado da bateria) ficam agachados aguardando o momento de início da ladinha (que pode ser cantada por alguém da bateria ou por um dos jogadores agachados ao pé da bateria). Canta-se a ladainha:
“Refletiu a luz divina
Em todo seu esplendor
Vem do reino de Oxalá
Onde há paz e amor
Luz que refletiu na terra
Luz que refletiu no mar
Luz que vem lá da Aruanda
Capoeira iluminar
Camaradinho...”
Nesse momento o atabaque, reco-reco e agogô começam a tocar e o côro, juntamente com todos (exceto o puxador da chula ) se prepara para responder as chulas:
“Iê viva meu Deus (puxador)
Iê viva meu Deus camará (côro)
Iê viva meu Mestre (puxador)
Iê viva meu Mestre camará (côro)
Iê dá volta ao mundo (puxador)
Iê dá volta ao mundo câmara” (côro)
Nesse momento o tocador de gunga faz um sinal (abaixa levemente o berimbau) que indica a permissão para iniciar o jogo dos dois jogadores agachados às extremidades da bateria. Há quem diga que o jogo pode ser iniciado após a chula que diz “iê dá a volta ao mundo”. A música continua, vindo, após as chulas, os corridos:
“Santo Antônio é protetor
Da barquinha de Noé (puxador)
Santo Antônio é protetor (côro)
Protetor dos capoeiras (puxador)
Santo Antônio é protetor” (puxador)
O jogo começa com uma saudação (movimento de capoeira) ao pé do berimbau realizada pelos 2 jogadores que estavam agachados esperando o momento de jogar. Os golpes, floreios, chamadas, defesas e movimentos no jogo de capoeira angola possuem uma linguagem específica desta forma de jogar capoeira, que é acionada a partir do toque Angola executado no berimbau, juntamente com os outros símbolos característicos do jogo de angola. No final do jogo, os dois jogadores se cumprimentam ao pé do berimbau e saem pela extremidade oposta à bateria na roda.
Este formato de roda de capoeira angola pode variar de grupo para grupo, ou mesmo em determinadas situações dentro do mesmo grupo. A questão que importa neste trabalho é mostrar como o toque de berimbau (no caso Angola), define a dinâmica de jogo e de comportamento na roda de capoeira.
Toque Santa Maria: tom tom tom tom tchi tchi tom tom tom tim tchi tchi tim tim tim tim tchi tchi tom tom tom tom.
Toque utilizado antigamente para jogo em que os capoeiristas manejavam uma navalha para ofender o adversário, que poderia ficar presa aos pés. Não foi encontrada referência sobre este tipo de jogo ser específico de alguma região do Brasil. Mas há referências indicadoras da navalha como parte dos utensílios dos capoeiras, principalmente no Rio de Janeiro, e de sua introdução na capoeira pelos portugueses. Porém, não há referência que indique como e quando o toque Santa Maria foi relacionado ao jogo com navalha. É provável que isso tenha ocorrido após a introdução do berimbau na roda e como forma de jogo de treinamento entre 2 capoeiras camaradas de uma mesma malta com o uso da navalha ou ainda como jogo em que um capoeira prestava contas a outro através do jogo de capoeira com navalha. Atualmente, o toque é executado principalmente em jogo de capoeira angola (executado pelo berimbau violinha e, algumas vezes, até mesmo pelo gunga) durante a roda ou em um momento específico quando um capoeirista jogando com outro “encena” simbolicamente um jogo com navalha.
O toque é desenvolvido de forma que o tocador realize uma escala sonora crescente, realizando a mesma escala sonora decrescente posteriormente. Há uma cantiga específica que define esta escala:
“Santa Maria Mãe de Deus
Cheguei na Igreja me confessei (puxador)
Santa Maria Mãe de Deus (côro)
Cheguei na Igreja me ajoelhei (puxador)
Santa Maria mãe de Deus” (puxador)
Toque Benguela: Tom tom Tom tim tchi tchi tom tim tim tchi tchi tom tim tim
Embora não seja exclusivo de Mestre Bimba (já que foi encontrado sendo executado por outros mestres antigos), este toque, no Grupo Bantus Capoeira, é utilizado para um jogo em que os jogadores devem possuir habilidade para deixar que os movimentos, golpes, floreios e defesas sejam fluentes, no sentido de mostrarem plasticidade, controle corporal, ritmo, cadência e integração (diálogo) ao executar o jogo.
Toque Jogo de Dentro: tchi tchi tom chi tim tom
Não foi encontrada referência da forma como o jogo deve ser executado com este toque. Mas tudo leva a crer, que o toque pede, como o próprio nome diz, um jogo em que os jogadores fiquem mais próximos, utilizando um espaço na roda menor e com movimentos mais fechados (mais defensivos).
4 CONCLUSÃO
O berimbau, símbolo da capoeira na atualidade, nem sempre foi parte dela. Somente a parir do século XX que ele passa a fazer parte da roda de capoeira como determinante, inclusive, da forma de jogo. Os toques de berimbau surgem a partir deste período. Possuem na sua nomenclatura (como no caso de Angola e Benguela) referências sobre a matriz africana influenciadora da capoeira, ou ainda (como Santa Maria e Jogo de Dentro) especificidades de certa maneira de jogar capoeira. Apesar das diferenças entre grupos e mestres, possuem características que determinam a forma de jogo na capoeira, sendo algumas destas características, consenso entre os capoeiristas.
Para compreendermos, atualmente, a dinâmica que rege os simbolismos presentes entre toques de berimbau e jogo de capoeira (ou até mesmo comportamentos na roda), é necessário compreender e pesquisar cada tipo de toque de berimbau, já que, como observado por Carybé, o berimbau é o mestre da roda.
REFERÊNCIAS
CARNEIRO, Édison. Capoeira. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1ª ed., 1975, Cadernos de Folclore, nº 1.
REGO, Waldeloir. Capoeira Angola: Ensaio Sócio-Etnográfico. Salvador: Ed. Itapuã, 1968.
Internet
http://pt.wikipedia.org/wiki/Capoeira
"A hora é essa
A hora é essa
Berimbau tocou
Na capoeira
Berimbau tocou
Eu vou jogar”
Foto: DEBRET. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Paris: Didot Firmin et Fréres, 1824.
Resumo
Realiza breve histórico do instrumento berimbau analisando sua presença dentro da capoeira, discorrendo sobre alguns tipos de toques de berimbau específicos no jogo da capoeira e alguns de seus elementos culturais: Santa Maria, Jogo de Dentro, Angola e Benguela.
Palavras-chaves: Capoeira; Berimbau; Toques; Santa Maria; Jogo de Dentro; Angola; Benguela.
1 BERIMBAU
A origem do nome berimbau ainda é controversa. O termo aparece nos primeiros lexicógrafos da língua portuguesa, como Bluteau e Moraes, sem a menor insinuação etimológica. A Real Academia Española na 12ª edição de seu dicionário, em 1884, registrou o verbete, que até hoje ainda permanece com proposição onomatopaica para a sua origem – “voz imitativa del sonido de este instrumento”. Cândido de Figueiredo recorre ao francês brimbale. Nascentes define-o, porém silencia quanto ao étmio. Proposições para a origem africana há de Leite de Vasconcelos, em artigo publicado na Revue Hispanique, onde apresenta o mandinga bilimbano. Renato Mendonça propõe o quimbundo mbirimbau, com a simplificação do grupo consoântico mb. Por fim, Carominas depois de achar que a origem é duvidosa, admite que talvez seja africana. Édison Carneiro (1975, p. 15), menciona que o vocábulo era conhecido, mas havia confusões, pois designava, em geral, um instrumento aerofone, presente em todos os continentes, trazido ao Brasil pelos portugueses – tratava-se do berimbau de boca. O Pequeno Dicionário de Aurélio Buarque de Holanda, reimpressão de 1968, ensina: “pequeno instrumento sonoro de ferro, que se toca segurando-o nos dentes e acionando a lingueta com o dedo indicador” (In: CARNEIRO, 1975, p.15). É difícil dizer exatamente como, quando e por que o apelativo de um instrumento aerofone acabou designando também um instrumento cordofone, tão diverso na sua estrutura e na sua função. Chamando-o de berimbau-de-barriga, os capoeiras o diferençavam e distinguiam do outro, de boca, e o descreviam melhor.
Entretanto, a alternativa preferida parecia ser gunga, forma assumida no Brasil pela palavra angolana hungu, em que o h aspirado, como no exemplo clássico Dahomé/Dagomé, se transformou em g. É como gunga que ao berimbau se referem, como já acontecia na ocasião, muitas chulas de capoeira. (CARNEIRO, 1975, p. 15-16).
“Panhe esse gunga
Me venda ou me dê
Esse gunga não é meu
Eu não posso vendê”
“Esse gunga é meu
Eu não dô a ninguém
Esse gunga é meu
Foi meu pai qui me deu”
Quanto ao instrumento em si, Waldeloir Rego (1968, p.73) diz que “não se pode precisar a sua verdadeira origem e por que vias entrou no Brasil”. Há registro deste instrumento em vários cantos do universo, inclusive na África, conforme observação e documentação de Hermenegildo Carlos de Brito Capello e Roberto Ivens, quando da viagem empreendida pelos territórios de Iaca e Benguela, durante os anos de 1877-1880. Por outro lado, Édison Carneiro diz que
(...) se podemos identificá-lo (o berimbau) com o humbo e o rucumbo, não há razões válidas para negar sua origem africana. (...) Não há a menor dúvida – trata-se de um instrumento originário de Angola. Em outros pontos da África Ocidental, encontram-se instrumentos musicais com a mesma estrutura básica do berimbau – corda, cabaça e arco – mas provém diretamente do humbo e do rucumbo de Angola aquela que agora acompanha o jogo da capoeira. (CARNEIRO, 1975, p.18).
Tem as mais variadas denominações levantadas por diversos pesquisadores: berimbau, urucungo, orucungo, oricungo, uricungo, rucungo, berimbau de barriga, gobo, marimbau, bucumbumba, gunga, macungo, matungo, rucumbo, nucumbo, humbo, burumbumba, rucumbo, humbo, hungu, lucungo, m’bolumbumba. Para Édson Carneiro (1975, p. 19), Humbo, rucumbo, hungu e lucungo, nas várias línguas que se falam em Angola, são os étimos de dois sinônimos de berimbau em uso no Brasil – gunga, na Bahia, e urucungo, na região centro-sul.
Outro aspecto levantado por estudiosos é o fato de que no lugar do arame atualmente utilizado, em outros tempos, tratava-se de uma corda feita de tripa, de algodão fabricado pelos povos em Angola, de cobre ou latão. Da mesma forma, a moeda utilizada pelos capoeiras para tocar o instrumento (dobrão) não era citada como instrumento para tocar o berimbau. Porém, a cabaça e o pedaço de pau onde o fio grosso era amarrado e uma cordinha que amarrava a cabaça ao pedaço de pau são sempre citados. A vareta ou a variante de tocar com os dedos também se encontra nas citações, assim como a observação de ter o berimbau sons parecidos com os de uma viola.
“Chora viola ê
Chora viola á
Chora viola chora viola viola”
De acordo com Rego,
O berimbau que hoje é divulgado e tocado em todo o território brasileiro é um arco feito de madeira específica, pois qualquer madeira não serve, ligado pelas duas pontas por um fio de aço, de vez que arame, além de partir rapidamente, não dá o som desejado. Numa das pontas há uma cabaça (Cucurbita lagenaria, Linneu) que não deve ser usada de modo algum verde, quanto mais seca melhor. Faz-se uma abertura na parte que se liga com o caule e parte inferior, dois furos, por onde deve passar um cordão para ligá-lo ao arco de madeira e ao fio de aço. Toma-se de um dobrão (moeda antiga), um pedacinho de pau, um caxixi e o instrumento está pronto para se tocar. (REGO, 1968, p. 72).
Outro aspecto interessante, que leva a crer na origem africana do berimbau (já que o grande contingente de escravos brasileiros era de africanos) é o observado por Édison Carneiro
A área antiga do berimbau (que ainda não tinha este nome) compreendia a Bahia, o Maranhão, Pernambuco e o Rio de Janeiro – cobria exatamente os quatro grandes centros nacionais de distribuição de escravos. (CARNEIRO, 1975, p. 17).
Mas desde quando o berimbau está associado à capoeira?
De acordo com Carneiro (1975, p. 19), há notícia da capoeira desde a transferência da capital do país da Bahia para o Rio de Janeiro / (1763), mas, tratando-se de uma forma de luta pela liberdade, naquele período, não seria de se esperar a presença de instrumentos musicais. Estes só apareceriam mais tarde, quando os negros passaram a exercitar-se para embates futuros. Pertence certamente a esta fase a gravura “jogo de capoeira” de Rugendas, Viagem Pitoresca Através do Brasil, 1835 (Figura 1), devendo-se notar, porém, que o único instrumento musical à vista é um tambor, que um negro toca com as mãos, cavalgando-o.
Porém, ao analisarmos os ensinamentos de Mestre Pastinha – tendo, portanto, uma visão de dentro da capoeira encontramos a seguinte definição de berimbau: “O berimbau é música. É instrumento musical. (...) E na hora da dor ele deixa de ser instrumento e passa a ser uma foice de mão”. (In: Documentário desenvolvido pelo Grupo de Capoeira Angola Pelourinho – Angola A Capoeira Mãe – retirado da internet).
Como nota-se na citação, dentro da perspectiva de Mestre Pastinha, o fato de ser um instrumento musical não separa o berimbau de ser, também, uma arma de defesa pessoal dentro da luta. Portanto, talvez, a presença musical na capoeira e até mesmo do berimbau, não estaria necessariamente ligada ao momento histórico em que ela deixa de ser luta no espaço urbano (como no exemplo das maltas de capoeira no Rio de Janeiro, ou como defesa pessoal de escravos contra feitores nos mais diversos locais no Brasil, ou defesa dos capoeiras contra a polícia, posteriormente) para tornar-se jogo (ou esporte) a partir do momento em que a capoeira sai da ilegalidade no código penal brasileiro. Da mesma forma, se considerarmos a cosmovisão africana banto (influenciadora da capoeira), em que a música está intimamente ligada aos demais aspectos do ser humano e da vida comunitária (por exemplo: ao mesmo tempo em que se dança, se reverencia uma entidade religiosa; ao mesmo tempo em que se joga, se ensina aos mais novos da comunidade a vivência dentro da lógica social através do jogar e, ao jogar, reverencia-se anteriormente e posteriormente alguma entidade através da música e do ritual, o corpo é música, a música é corpo). Sendo assim, não se pode afirmar com precisão que a musicalidade na capoeira exista somente a partir do momento em que ela deixa de ser ilegal no Brasil (ou seja, a partir do século XX). É fato que não há registros da presença marcante (como o é atualmente) do berimbau na capoeira, antes do século XX. Mas também não se pode afirmar que a musicalidade não existia na capoeira antes deste período.
Ainda sobre a presença do berimbau na capoeira, cabem as observações de Rego (1968, p. 58) sobre a capoeira de Mestre Bimba , chamada de luta regional baiana (capoeira regional).
Mestre Bimba, por exemplo, não admite o berimbau no começo do aprendizado, isso só acontecendo na terceira fase, a que chama seqüência com berimbau, sem se falar nos discípulos já formados, que jogam durante um tempo enorme, usando todos os golpes necessários, sem que se ouça uma nota musical qualquer, partida de um dos instrumentos musicais da capoeira. (...) as escassas informações deixadas pelos cronistas e viajantes que por aqui passaram (...) quando se referem à capoeira, são unânimes em falar isoladamente do jogo sem o toque; ou do berimbau, hoje instrumento principal da capoeira, mas sem a ela referirem. (REGO, 1968, p. 58-59).
Tudo faz crer que o berimbau, primitivamente, era um instrumento solista – ou, para ser mais exato, uma viola africana. Ladislau Batalha viu nele algo como uma “guitarra” monocórdia, enquanto o major Dias de Carvalho, para quem os sons do berimbau lembravam os de uma viola, escreveu, decisivamente: “os luandas chamam-lhe violâm. Tocam-no quando passeiam e também quando estão deitados nas cubatas”. (In: CARNEIRO, 1975, p. 20). Por outro lado, Rego (1968, p. 71), explica que “o berimbau não existiu somente em função da capoeira, era usado pelos afro-brasileiros em suas festas e, sobretudo no samba de roda, como até hoje ainda se vê, se bem que muito raro”.
Das fontes citadas, apenas Manuel Querino o dá como acompanhamento musical da capoeira – e não do treinamento, digamos, de profissionais, mas de amadores. Fazia o ritmo para o brinquedo, antecessor da vadiação atual. É de supor que somente no século XX, e na Bahia, o berimbau se tenha incorporado ao jogo de Angola, de maneira insubstituível, dominante e caracterizadora. Foi, a partir de então, provavelmente, que o instrumento se fez mais comprido, que o arame substituiu de vez a corda de fio ou de tripa e que o berimbau se enriqueceu com o caxixi e a moeda de cobre, dobrão, 40 réis ou dois vinténs do tempo do Império, com que o conhecemos agora. (CARNEIRO, 1975, p. 20).
2 TOCOU
De acordo com Rego (1968, p. 58) não há documentação fidedigna que afirme taxativamente que no princípio, no jogo da capoeira só havia golpes. Entretanto, a presença marcante do berimbau também não existia, consequentemente os toques teriam vindo depois e se adaptado aos golpes. Para Rego (1968, p. 59), há no acompanhamento musical, toques que se poderia chamar de gerais, porque são comuns a todos os capoeiras, os quais são executados ao lado de outros que são particulares de determinada academia ou mestre de capoeira. Também acontece, e não raro, um mesmo toque, apenas com denominação diferente entre os capoeiras. Para que se tenha uma idéia, Rego (1968, p. 59) recolhe o nome dos toques de alguns capoeiras, que na época atuavam na Bahia. Segue citação dos mestres onde a presença dos toques Jogo de Dentro, Angola, Benguela e Santa Maria estão presentes, já que este trabalho é especificamente sobre estes toques.
Mestre Bimba (Manoel dos Reis Machado): Benguela e Santa Maria;
Canjiquinha (Washington Bruno da Silva): Angola (há, também neste mestre, outros toques chamados de Angola em Gêge e Angolinha), Santa Maria, Jogo de Dentro;
Pastinha (Vicente Ferreira Pastinha): Angola, Santa Maria;
Gato (José Gabriel Goes): Angola (com o variante Angolinha), Jogo de Dentro, Benguela (com o variante Benguela sustenida), Santa Maria (com o variante Santa Maria Dobrada);
Waldemar (Waldemar da Paixão): Benguela, Santa Maria, Angolinha (o nome do toque é Angolinha e não Angola);
Bigodinho (Francisco de Assis): Jogo de Dentro, Angola (há também Angolinha), Santa Maria;
Arnol (Arnol Conceição): Angola (há também Angolinha), Jogo de Dentro;
Traíra (João Ramos do Nascimento): Santa Maria (com o variante Santa Maria Regional), Angola (com os variantes Angola Dobrada, Angola Pequena e Angolinha), Jogo de Dentro.
Percebe-se que alguns toques ocorrem com freqüência para vários mestres. Os toques divergentes raramente constituem um toque totalmente diferente dos demais. Via de regra, é um já existente, apenas com outro rótulo ou então uma ligeira inovação, introduzida pelo tocador, fazendo com que se dê um nome novo.
A denominação de alguns toques da capoeira está ligada a determinados povos ou regiões africanas pura e simplesmente pelo nome, ou são toques litúrgicos ou profanos de que a capoeira se valeu, como Benguela, Angola, Ijexá e Gêge-ketu. (REGO, 1968, p. 63).
A partir da citação de Rego, pode-se inferir também, que a denominação de alguns toques referentes a regiões africanas (Angola, Benguela), foi adotada como forma de reafirmação cultural do afro-brasileiro com sua matriz africana, em um período em que a luta pela liberdade social e de expressão cultural do afro-descendente no Brasil estava tomando cada vez mais força. Quanto ao toque Jogo de Dentro, Rego faz a seguinte observação:
O capoeirista Canjiquinha tem um toque com a denominação de muzenza, que não é senão o toque jogo de dentro. Na Bahia, muzenza é o nome que se dá à noviça nos candomblés de nação Angola. Quando ela aparece em público para dar o nome de seu orixá (deus), canta-se uma cantiga de saída de muzenza, onde ela vem dançando uma coreografia ligeiramente curvada. Com base nessa coreografia, a malícia popular resolveu caricaturar a dança, aumentando a curvatura do corpo, dando a impressão que se vai ficar de quatro pés. Com isso se vê, constantemente, a brincadeira entre dois homens, quando um pede qualquer coisa ao outro, então o que não quer dar responde: - “só dançando muzenza...”, isto é, só ficando em posição de quatro pés, para ser possuído sexualmente. Indaguei de Canjiquinha por que deu o nome de muzenza ao toque jogo de dentro, respondeu-me que apenas por deboche. (REGO, 1968, p. 64).
Não foi encontrada na pesquisa realizada nenhuma referência ao porque do nome Jogo de Dentro, assim como ao toque Santa Maria. Para o toque Benguela, há referência da variante na nomenclatura para Banguela.
3 NA CAPOEIRA
Cada toque de berimbau na roda de capoeira, possui um significado, uma simbologia e código que, na atualidade, determina a forma de jogar a capoeira e também o comportamento do côro (voz) na roda. Por exemplo, os toques de nome Angola e Benguela, possuem denominação que também indica uma forma específica de jogar a capoeira na roda. A figura de Carybé – 1975 - (Figura 2), demonstra como o berimbau, dentro desta perspectiva, passa a ser o mestre da roda, já que de acordo com o toque executado, a forma de jogar será determinada.
“Cada mestre é um estilo. A capoeira é uma só e quem comanda o jogo é o berimbau com os mesmos toques e cantigas”.
Percebe-se que nesta perspectiva, há certo padrão de toques de berimbau, definidor de certo modo de jogar (e de se comportar na roda). A capoeira passa a ter na musicalidade fonte de sua essência, já que esta define a forma de jogar a capoeira e os demais códigos na roda.
Para efeito explicativo, será explicado como este código entre toque e jogo é desenvolvido no Grupo Bantus Capoeira de Belo Horizonte – Minas Gerais (Mestre Pintor), que segue, basicamente, a simbologia do jogo de capoeira angola desenvolvido por Mestre João Pequeno (aluno de Mestre Pastinha – Bahia), apesar de algumas modificações, e referências da capoeira regional (no caso do toque Benguela) que é desenvolvido pelo Grupo Bantus Capoeira, fundamentado (apesar de algumas diferenças) no jogo de benguela de Mestre Bimba.
Assim, definem-se como efeito explicativo os seguintes sons básicos do berimbau:
Tchi – quando o dobrão encosta levemente no arame (som “arranhado”), cabaça encostada na barriga, vareta bate no arame em um ponto imaginário um pouco acima do dobrão.
Chi – quando o dobrão encosta levemente no arame quando ele está ainda vibrando.
Tim – quando o dobrão pressiona o arame com firmeza, cabaça não encosta na barriga, vareta bate no arame em um ponto imaginário acima do dobrão.
Tom – quando o dobrão não encosta no arame, cabaça fica desencostada da barriga, vareta bate em um ponto imaginário abaixo do dobrão.
Toque Angola: tchi tchi tom chi tim
Usado para jogo de capoeira angola (toque realizado pelo berimbau mais grave – gunga). Durante a execução do toque, no início da roda (ou quando a bateria pára de tocar para recomeçar a tocar durante o jogo ou entre um jogo e outro) canta-se a ladainha. Neste momento não deve haver jogo (os jogadores e os demais presentes na roda precisam ouvir a ladainha inteira e aguardar a indicação do tocador de gunga para o início do jogo ou esperar a chula começar para poder jogar). Este toque pode, ainda, ser realizado como base pelo berimbau gunga no decorrer da roda inteira de capoeira angola, servindo, após a ladainha, de acompanhamento para as chulas e corridos (cantigas) durante o jogo. Na ladainha não há côro, o côro começa a participar a partir da chula. As pessoas na roda devem ficar assentadas e não há palmas como acompanhamento da música.
Exemplo: O berimbau gunga começa a tocar o toque Angola. Ao seu lado direito, o berimbau médio toca São Bento Pequeno; ao lado direito do médio, o berimbau violinha toca São Bento Pequeno (pode ter variações, como tocar Santa Maria, e mais liberdade de improvisos); Pode ocorrer também, do berimbau gunga tocar São Bento Pequeno. Nesse caso, quem toca Angola é o berimbau médio, enquanto o violinha continua no improviso. Ao lado esquerdo do tocador de berimbau gunga fica o atabaque, que não é tocado durante a ladainha. Ao lado direito do berimbau violinha, fica o pandeiro (há variação entre usar 1 pandeiro ou 2 pandeiros – quando são 2, ficam os dois pandeiros um ao lado do outro). Os pandeiros tocam junto com os berimbaus durante a ladainha. Ao lado esquerdo do atabaque fica o reco-reco e ao lado esquerdo do reco-reco fica o agogô. Estes dois últimos também só são tocados após a ladainha. As pessoas na roda ficam assentadas em círculo que tem como ponto inicial as extremidades da bateria (no caso, o agogô e o pandeiro que está ao lado direito do violinha). Ou seja, na circunferência, o ponto inicial é a bateria. Os dois jogadores (um em cada lado da bateria) ficam agachados aguardando o momento de início da ladinha (que pode ser cantada por alguém da bateria ou por um dos jogadores agachados ao pé da bateria). Canta-se a ladainha:
“Refletiu a luz divina
Em todo seu esplendor
Vem do reino de Oxalá
Onde há paz e amor
Luz que refletiu na terra
Luz que refletiu no mar
Luz que vem lá da Aruanda
Capoeira iluminar
Camaradinho...”
Nesse momento o atabaque, reco-reco e agogô começam a tocar e o côro, juntamente com todos (exceto o puxador da chula ) se prepara para responder as chulas:
“Iê viva meu Deus (puxador)
Iê viva meu Deus camará (côro)
Iê viva meu Mestre (puxador)
Iê viva meu Mestre camará (côro)
Iê dá volta ao mundo (puxador)
Iê dá volta ao mundo câmara” (côro)
Nesse momento o tocador de gunga faz um sinal (abaixa levemente o berimbau) que indica a permissão para iniciar o jogo dos dois jogadores agachados às extremidades da bateria. Há quem diga que o jogo pode ser iniciado após a chula que diz “iê dá a volta ao mundo”. A música continua, vindo, após as chulas, os corridos:
“Santo Antônio é protetor
Da barquinha de Noé (puxador)
Santo Antônio é protetor (côro)
Protetor dos capoeiras (puxador)
Santo Antônio é protetor” (puxador)
O jogo começa com uma saudação (movimento de capoeira) ao pé do berimbau realizada pelos 2 jogadores que estavam agachados esperando o momento de jogar. Os golpes, floreios, chamadas, defesas e movimentos no jogo de capoeira angola possuem uma linguagem específica desta forma de jogar capoeira, que é acionada a partir do toque Angola executado no berimbau, juntamente com os outros símbolos característicos do jogo de angola. No final do jogo, os dois jogadores se cumprimentam ao pé do berimbau e saem pela extremidade oposta à bateria na roda.
Este formato de roda de capoeira angola pode variar de grupo para grupo, ou mesmo em determinadas situações dentro do mesmo grupo. A questão que importa neste trabalho é mostrar como o toque de berimbau (no caso Angola), define a dinâmica de jogo e de comportamento na roda de capoeira.
Toque Santa Maria: tom tom tom tom tchi tchi tom tom tom tim tchi tchi tim tim tim tim tchi tchi tom tom tom tom.
Toque utilizado antigamente para jogo em que os capoeiristas manejavam uma navalha para ofender o adversário, que poderia ficar presa aos pés. Não foi encontrada referência sobre este tipo de jogo ser específico de alguma região do Brasil. Mas há referências indicadoras da navalha como parte dos utensílios dos capoeiras, principalmente no Rio de Janeiro, e de sua introdução na capoeira pelos portugueses. Porém, não há referência que indique como e quando o toque Santa Maria foi relacionado ao jogo com navalha. É provável que isso tenha ocorrido após a introdução do berimbau na roda e como forma de jogo de treinamento entre 2 capoeiras camaradas de uma mesma malta com o uso da navalha ou ainda como jogo em que um capoeira prestava contas a outro através do jogo de capoeira com navalha. Atualmente, o toque é executado principalmente em jogo de capoeira angola (executado pelo berimbau violinha e, algumas vezes, até mesmo pelo gunga) durante a roda ou em um momento específico quando um capoeirista jogando com outro “encena” simbolicamente um jogo com navalha.
O toque é desenvolvido de forma que o tocador realize uma escala sonora crescente, realizando a mesma escala sonora decrescente posteriormente. Há uma cantiga específica que define esta escala:
“Santa Maria Mãe de Deus
Cheguei na Igreja me confessei (puxador)
Santa Maria Mãe de Deus (côro)
Cheguei na Igreja me ajoelhei (puxador)
Santa Maria mãe de Deus” (puxador)
Toque Benguela: Tom tom Tom tim tchi tchi tom tim tim tchi tchi tom tim tim
Embora não seja exclusivo de Mestre Bimba (já que foi encontrado sendo executado por outros mestres antigos), este toque, no Grupo Bantus Capoeira, é utilizado para um jogo em que os jogadores devem possuir habilidade para deixar que os movimentos, golpes, floreios e defesas sejam fluentes, no sentido de mostrarem plasticidade, controle corporal, ritmo, cadência e integração (diálogo) ao executar o jogo.
Toque Jogo de Dentro: tchi tchi tom chi tim tom
Não foi encontrada referência da forma como o jogo deve ser executado com este toque. Mas tudo leva a crer, que o toque pede, como o próprio nome diz, um jogo em que os jogadores fiquem mais próximos, utilizando um espaço na roda menor e com movimentos mais fechados (mais defensivos).
4 CONCLUSÃO
O berimbau, símbolo da capoeira na atualidade, nem sempre foi parte dela. Somente a parir do século XX que ele passa a fazer parte da roda de capoeira como determinante, inclusive, da forma de jogo. Os toques de berimbau surgem a partir deste período. Possuem na sua nomenclatura (como no caso de Angola e Benguela) referências sobre a matriz africana influenciadora da capoeira, ou ainda (como Santa Maria e Jogo de Dentro) especificidades de certa maneira de jogar capoeira. Apesar das diferenças entre grupos e mestres, possuem características que determinam a forma de jogo na capoeira, sendo algumas destas características, consenso entre os capoeiristas.
Para compreendermos, atualmente, a dinâmica que rege os simbolismos presentes entre toques de berimbau e jogo de capoeira (ou até mesmo comportamentos na roda), é necessário compreender e pesquisar cada tipo de toque de berimbau, já que, como observado por Carybé, o berimbau é o mestre da roda.
REFERÊNCIAS
CARNEIRO, Édison. Capoeira. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1ª ed., 1975, Cadernos de Folclore, nº 1.
REGO, Waldeloir. Capoeira Angola: Ensaio Sócio-Etnográfico. Salvador: Ed. Itapuã, 1968.
Internet
http://pt.wikipedia.org/wiki/Capoeira
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