LEVANDO A SÉRIO A SERIEDADE HUMANA DA BRINCADEIRA
LEVANDO A SÉRIO A ‘SERIEDADE HUMANA DA BRINCADEIRA’: Victor Turner e a experiência no lazer
Resumo
Resumo
Propõe uma reflexão teórica enfocando o lazer como dimensão da cultura. Adota a perspectiva dos estudos antropológicos das formas expressivas, enfocando centralmente as noções de ritual, communitas, liminóide, drama social e performance adotadas pelo antropólogo Victor Turner, para elaborar uma reflexão sobre a experiência do lazer nas sociedades complexas.
Palavras-chave: Lazer, cultura, Victor Turner, experiência.
1 - O lazer como dimensão da cultura (?)
A palavra a lazer deriva do latim licere, ou seja, "ser lícito", "ser permitido” . As discussões sobre o lazer dividem-se em duas correntes distintas no que se refere à definição de seu surgimento. Conforme lembra Gomes, C., (2004), há autores que defendem a teoria da origem do lazer nas fases antigas de nossa história. A vida social dos filósofos gregos seria o ponto de partida para reflexões históricas sobre o lazer. O termo grego Skholé indicava um tempo desocupado, um tempo para si mesmo que gerava prazer intrínseco. Para Aristóteles o ‘lazer’ era um estado filosófico no qual se cultivava a mente por meio da música e da contemplação. Conforme argumenta De Grazia (1966), no período clássico o ‘lazer’ possuía, portanto, um valor positivo, já que indicava distinção social, liberdade, qualidade ética, relação com as artes liberais e busca do conhecimento. Outro autor que, embora apresente divergências em relação à De Grazia, segue a mesma perspectiva de origem do lazer é Frederic Munné (1980).
Embora apresentando um panorama histórico sobre o trabalho, Mills (1951) nos instiga a pensar sobre quais foram as perspectivas históricas ocidentais da situação de produtividade e de não produtividade na sociedade. Ele lembra que para os povos hebreus o trabalho era considerado uma labuta penosa a qual o homem estava condenado pelo pecado. Com o Rabinismo o trabalho era considerado um exercício útil, mas o Reino de Deus seria o do ócio abençoado. Ainda de acordo com o autor, em Santo Agostinho o trabalho era obrigatório para os monges, mas deveria ser alternado com a oração e realizado apenas o suficiente para satisfazer as necessidades da comunidade. Foi com Martinho Lutero que o trabalho passou a ser percebido como a base e a chave da vida. Assim, o ócio passou a ser uma evasão antinatural e perniciosa. A profissão tornou-se uma vocação e o trabalho era o caminho religioso para a salvação. Seguindo esta mesma noção, o Calvinismo enfatizou a predestinação e o pertencimento aos ‘eleitos’ de Deus colocando que não seria a contemplação, mas o trabalho obstinado, austero e incansável que aliviaria a culpa dos homens e os conduziria a uma vida santa e piedosa. Assim, as seitas protestantes encorajavam e justificavam o desenvolvimento social de um tipo de homem capaz de um trabalho incessante e metódico indo ao encontro dos interesses burgueses que o capitalismo moderno exigia de seus agentes. No Renascimento o trabalho era percebido a partir de um significado intrínseco, valorizando a técnica artesanal, manual e mental do processo do trabalho. Neste período a satisfação não decorria da renda, da salvação, do status ou do poder sobre outras pessoas, mas do processo técnico. Mills (1951) completa que atualmente nenhuma destas concepções possuiria influência forte sobre as massas, já que para a maioria o trabalho assume um caráter desagradável. Outros autores também discutiram a questão do trabalho na sociedade moderna e contemporânea em diferentes países e contextos: Thorstein Veblen (1965), David Riesman (1995) são dois exemplos. Os autores mostraram, a partir de abordagens diferentes, as conseqüências de uma sociedade que produz, a partir da ênfase no processo produtivo e no consumismo, sujeitos alienados, solitários e vazios. Embora não enfocando diretamente o lazer, estes pensadores levantaram questões que ajudam a pensá-lo na sociedade. Paul Lafargue (1980) com o seu Direito à Preguiça aponta, em tom de denúncia, as mazelas de uma sociedade construída sobre a égide do progresso, da técnica e do trabalho.
Do outro lado do debate sobre o lazer, estão os autores que consideram o surgimento deste como sendo a partir do advento da Revolução Industrial. O autor que mais influenciou diretamente a produção brasileira sobre o lazer a partir da década de 1970 se enquadra dentro desta perspectiva. Trata-se do sociólogo francês Joffre Dumazedier.
Foi a partir da Idade Moderna que as discussões sobre o trabalho ganham um novo direcionamento. A Revolução Burguesa transforma a maneira de pensar o trabalho na sociedade, justamente porque é a partir de então que ele se torna o foco da produção de capital e lucro, ou seja, o centro dos interesses da classe burguesa dona dos meios de produção e do desenvolvimento do sistema capitalista. A obra do sociólogo francês Joffre Dumazedier enfatiza, a partir deste pressuposto, que o lazer só surgiria de fato neste período. Foi com este autor que os estudos sobre o lazer ganharam força no campo das Ciências Sociais. A partir de pesquisas empíricas desenvolvidas na França nas décadas de 1950 e 1960, Dumazedier formula proposições teóricas sobre o lazer. Sua obra Sociologia Empírica do Lazer (publicado originalmente em 1974) surge em um cenário em que a Sociologia do Trabalho (que ganhou força a partir da Segunda Guerra Mundial) era a ‘menina dos olhos’ da Sociologia. Neste sentido, é explícito na obra de Dumazedier argumentos que buscam consolidar a Sociologia do Lazer como campo de estudos legítimo na Sociologia. Assim, é marcante a oposição do binômio trabalho e obrigações cotidianas versus lazer na obra do autor, caracterizando o lazer, principalmente, em função do trabalho profissional na sociedade, bem como a perspectiva funcionalista do lazer. Para Dumazedier (1973), o lazer é compreendido como:
[...] um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se ou ainda para desenvolver sua formação desinteressada, sua participação social voluntária, ou sua livre capacidade criadora, após livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações profissionais, familiares e sociais. (DUMAZEDIER, 1973, p.34).
Por adotar um entendimento do lazer que o resume a um “conjunto de ocupações” este conceito é criticado por alguns autores. Conforme pensamento de Gomes, C., (2004), a sociedade não é composta por dimensões neutras, desconectadas e estanques. A autora lembra que “trabalho e lazer, apesar de possuírem características distintas, integram a mesma dinâmica social e estabelecem relações dialéticas”. Neste sentido, “lazer e trabalho não constituem pólos opostos, representando faces distintas de uma mesma moeda” (GOMES, C., 2004, p.121).
Por outro lado, autores como Renato Requixa (1977), Luiz Octavio Camargo (1986), Nelson Marcellino (1983) adotaram concepções de lazer seguindo a noção de Dumazedier, ou seja, o entendem como tempo residual do trabalho produtivo, pensando o lazer na sociedade em função da perspectiva que entende o trabalho como seu pressuposto definidor.
Os trabalhos de Marcellino vêm sendo consideravelmente citados nos estudos do lazer no Brasil e trouxeram contribuições importantes para a área. O autor entende o lazer como “a cultura – compreendida em seu sentido mais amplo – vivenciada (praticada e fruída) no ‘tempo disponível’” (MARCELLINO, 1987, p. 31). Assim, como lembra Gomes, C., (2004) o autor ampliou o conceito de lazer que havia enunciado anteriormente. Além disso, “ao redimensionar o lazer como cultura, esta compreensão supera o seu entendimento como mero ‘conjunto de ocupações’” (GOMES, C., 2004, p. 121). Por não aprofundar o seu entendimento do conceito de cultura, este autor foi alvo de críticas.
A autora Vânia Noronha Alves (2003) destaca que a associação do lazer com a cultura consolida a importância em aprofundarmos o conhecimento sobre esta última. Esta autora entende que o lazer é uma importante dimensão da cultura, assim como o trabalho, a educação, a família, dentre outros. Outra autora que adota a concepção de lazer como dimensão da cultura é Christianne Luce Gomes. Para a autora, “o lazer compreende [...] a vivência de inúmeras manifestações da cultura, tais como o jogo, a brincadeira, a festa, o passeio, a viagem, o esporte e também as formas de artes [...]” (GOMES, C., 2004, p.123). A autora também determina quatro elementos do lazer que são inter-relacionados:
Tempo, que corresponde ao usufruto do momento presente e não se limita aos períodos institucionalizados para o lazer (final de semana, férias, etc.); Espaço-lugar, que vai além do espaço físico por ser um ‘local’ do qual os sujeitos se apropriam no sentindo de transformá-lo em ponto de encontro (consigo, com o outro e com o mundo) e de convívio social para o lazer; Manifestações culturais, conteúdos vivenciados como fruição da cultura, seja como possibilidade de diversão, de descanso ou de desenvolvimento; ações, que são fundadas no lúdico – entendido como expressão humana de significados da/na cultura referenciada no brincar consigo, com o outro e com a realidade. (GOMES, C., 2004, p. 123).
Tomando estes quatro elementos como referência, a autora determina sua concepção de lazer como:
Uma dimensão da cultura constituída por meio da vivência lúdica de manifestações culturais em um tempo/espaço conquistado pelo sujeito ou grupo social, estabelecendo relações dialéticas com as necessidades, os deveres e as obrigações. (GOMES, C., 2004, p. 124).
Assim, “a cultura institui uma expressiva possibilidade para se conceber o lazer em nossa realidade histórico-social”. A autora afirma que “a cultura constitui um campo de produção humana em várias perspectivas, e o lazer representa uma de suas dimensões: que inclui a fruição de diversas manifestações culturais.” GOMES, C., (2004, p. 123).
As discussões sobre o lúdico no lazer também abordam sua relação com a cultura. Leila Pinto (1995) considera o lúdico como vivência privilegiada do lazer que materializa experiência cultural, movida pelos desejos de quem joga e coroada pelo prazer. Maurício Roberto da Silva destaca o caráter de transgressão e subversão da ordem que as ações lúdicas desenvolvem. Esta transgressão “deve ser compreendida como um caminho cultural e possibilidade real de construção de níveis mais avançados de fazer política, história e cultura.” (SILVA, 2001, p. 18). Porém, o autor pontua que além de conter a força transgressora, há no lúdico uma relação dialética entre consenso e conflito, dor e prazer, alienação e emancipação. Desta forma o lúdico teria um caráter liminar, seria, nos dizeres do antropólogo Victor Turner (1974) , pertencente à uma área de liminaridade. Vânia Noronha Alves (2003) considera o lúdico como uma dimensão humana que se expressa na cultura. Homens, mulheres e crianças interferem no meio e sofrem influências deste, o que permite a construção de uma “teia de ralações” em que sujeito e cultura são modificados. Para o autor José Alfredo Debortoli (2002) a ludicidade é uma das dimensões da linguagem humana. Para ele, a ludicidade é uma possibilidade e uma capacidade de se brincar com a realidade, ressignificando o mundo. Esta densidade contida na brincadeira foi abordada, conforme esclarece Dawsey (2005, p. 164), por Victor Turner em sua obra From Ritual to Theatre: the human seriousness of play (Do Ritual ao Teatro: a seriedade humana da brincadeira) em 1982. Levando a sério a “seriedade humana da brincadeira”, este autor desvia a atenção do antropólogo para os ‘ruídos’ e elementos estruturalmente ‘arredios’ da sociedade. É exatamente abordando este enfoque de Turner - ao desenvolver argumentos sobre a Antropologia da Experiência (1986) e, posteriormente, da Antropologia da Performance (1987) -, que pretendo mostrar, na segunda parte desta reflexão, como este autor oferece elementos que nos ajudam a compreender o lazer como dimensão da cultura nas sociedades complexas.
Outro autor que discute a ludicidade, a partir de sua teoria sobre os jogos, é Johan Huizinga, em sua obra Homo ludens (publicada originalmente em 1938). Para ele,
O jogo é fato mais antigo que a cultura, pois esta, mesmo em suas definições menos rigorosas, pressupõe sempre a sociedade humana; mas, os animais não esperaram que os homens os iniciassem na atividade lúdica. [...] Os animais brincam tal como os homens. [...] mesmo em suas formas mais simples, ao nível animal, o jogo é mais do que um fenômeno fisiológico ou um reflexo psicológico. [...] É uma função significante, isto é, encerra um determinado sentido. (HUIZINGA, 1980, p. 3-4).
Este autor coloca que o elemento lúdico da cultura se encontra em decadência desde o século XVIII, argumentando que a partir desta época o espírito lúdico foi perdendo espaço para o espírito profissional.
Conforme destaca GOMES, C., (2004, p. 143) “as práticas culturais não são lúdicas em si. É a interação do sujeito com a experiência vivida que possibilita o desabrochar da ludicidade”. Assim, a autora define o lúdico como:
Expressão humana de significados da/na cultura referenciada no brincar consigo, com o outro e com o contexto. Por essa razão, o lúdico reflete as tradições, os valores, os costumes e as contradições presentes em nossa sociedade. Assim, é construído culturalmente e cerceado por vários fatores: normas políticas e sociais, princípios morais, regras educacionais, condições concretas de existência. Enquanto expressão de significados que tem o brincar como referência, o lúdico representa uma oportunidade de (re) organizar a vivência e (re) elaborar valores, os quais se comprometem com um determinado projeto de sociedade. (GOMES, C., 2004, p. 144).
Outro autor que aborda a relação entre lúdico e lazer é Antonio Carlos Bramante. Para ele, “o lazer se traduz por uma dimensão privilegiada da expressão humana dentro de um tempo conquistado, materializada através de uma experiência pessoal criativa, de prazer e que não se repete no tempo/espaço, cujo eixo principal é a ludicidade.” (BRAMANTE, 1998, p.9). Ainda sob a perspectiva deste autor, Gomes, C. (2004, p. 122) coloca que “a ludicidade, compreendida como eixo principal da experiência de lazer é, segundo Bramante, uma das poucas unanimidades entre os estudiosos que teorizam sobre o tema”.
Esta é, pois, uma referência marcante da discussão conceitual do lazer no contexto brasileiro, pois, em outros países, nem sempre verificamos o mesmo encaminhamento. No Brasil, mesmo com as particularidades que distinguem cada pesquisador, a presença do lúdico pode ser constatada na abordagem de vários autores que enunciaram concepções de lazer. (GOMES, C., 2004, p.122)
É exatamente nesta perspectiva de lazer e ludicidade como dimensões da cultura que pretendo me ater por um momento, antes de continuar esta reflexão. O que implica compreender o lazer como dimensão da cultura? Como o conceito de cultura está sendo adotado nesta perspectiva?
Buscando elucidar esta questão, Gomes e Faria (2005) colocam que:
[...] implica observar que não se pode concebê-lo na sua especificidade abstrata, o que quer dizer que seu entendimento não é estabelecido em si mesmo, ou de forma isolada, nessa ou naquela atividade, mas como um componente da cultura historicamente situado. [...] qualquer relação interpessoal é informada e influenciada pelo ambiente material e pelo sistema simbólico implicados na cultura. [...] O segundo aspecto é que compreender o lazer como dimensão da cultura significa entendê-lo como inserido numa dinâmica cultural complexa. [...] é fundamental, pois, situá-lo no contexto da dinâmica sociocultural, com suas contradições. (GOMES, A.; FARIA, 2005, p. 50-53).
Ao abordar o sistema simbólico implicado na cultura, pecebe-se a ifluência antropológica na perspectiva de cultura que determina a fala das autoras. “Ao considerar a centralidade do significado na experiência humana, assumimos a cultura como a dimensão específica da nossa espécie” (GOMES, A.; FARIA, 2005, p. 20). As autoras utilizam o conceito do antropólogo Marshall Shailns (1997) para definir cultura:
Organização da experiência e da ação humanas por meios simbólicos. As pessoas, relações e coisas que povoam a existência humana manifestam-se essencialmente como valores e significados – significados que não podem ser determinados a partir de propriedades biológicas ou físicas. (SAHLINS, 1997, p.41).
Outro antropólogo que discutiu a noção de cultura como ação simbólica, como prática social na qual o significado é central, foi Clifford Geertz (1979). Para ele a cultura seria como um texto, cheio de significados a serem desvendados e intepretados a partir de uma etnografia – método que caracteriza a investigação antropológica - densa, em que o antropólogo fosse capaz de decifrar o que estava submerso nas entrelinhas das relações sociais. Assim, a cultura seria um mapa simbólico, uma rede de significados que orientam as interpretações e ações dos sujeitos sobre a prórpia ação e na relação com os outros. A cultura seria então “uma hierarquia estratificada de estruturas significantes em termos das quais a ação social é produzida, percebida e interpretada, e que torna possível a sua própria existência” (GEERTZ, 1979, p. 15).
As tensões inerentes à definição do conceito de cultura foram retomadas por Kuper (2002), que faz uma análise da obra de alguns autores, entre eles Shalins e Geertz, como referências no panorama da antropologia contemporânea. A tensão que caracteriza o conceito de cultura é analisada por Kuper, retomando suas origens na gênese do aparecimento da noção de cultura nas ciências sociais, gênese que nos leva ao debate franco-alemão entre a noção de civilização – de onde a dimensão agregadora e universalizantedo conceito - e a Kultur alemã –, que coloca em evidência a especificidade e a centralidade de cada configuração cultural local. Essa tensão vai se repropor em toda a evolução da antropologia, e mesmo das ciências sociais, passando por momentos de maior domínio de uma ou outra posição, sem que se chegue a uma síntese conclusiva. (GOMES, A; FARIA, 2005, p. 21).
A tensão sobre o conceito de cultura na contemporaneidade, surge, influenciada pelo momento atual de saturação e quebra de paradigmas , sob um novo olhar, delineado por uma ‘ciência metalinguística’, que ao se refazer, se questiona. Percebe-se atualmente na antropologia e nas ciências sociais em geral, um novo movimento que indaga, de forma diferenciada, a concepção de cultura e de sociedade que foi adotada desde Émile Durkheim (1858-1917) na Sociologia e Eduard Burnett Tylor (1832-1917) na Antropologia. Não é objetivo deste artigo deslocar o foco para este debate, portanto, apenas como forma de arranhar a superfície de um tema que exige um maior aprofundamento para ser discutido, citarei como um resumido exemplo, o panorama desta discussão na antropologia. Nela, este questionamento configura-se, por um lado, a partir da perspectiva do filósofo francês Bruno Latur - propondo que o ator social é formado na própria rede por todos os agentes: objetos e seres vivos em geral - que foi retomada na perspectiva do antropólogo Timothy Ingold e, por outro lado, a partir dos estudos da etnologia indígena e seus desdobramentos para compreensão da etnografia . Embora partindo de concepções diferentes (os estudos em laboratório e as questões surgidas das etnografias feitas nas pesquisas com os indígenas), o ponto central da discussão é o mesmo: a separação entre natureza e cultura, homem e natureza, corpo e mente – que o desenvolvimento da ciência ocidental levou ao extremo – é repensada e reformulada. Seriam todos conceitos historicamente construídos com o advento da ciência ocidental e, portanto, limitados à perpectiva do humano que ela adotou. O debate aponta, entre outras questões, que não seriam só os seres humanos que estariam contidos no social. Os objetos e a natureza seriam, também, parte do social, eles possuiriam agência. Posto que cultura é um conceito historicamente e socialmente construído, ele na verdade estaria inserido em algo mais amplo ao invés de ser ‘este todo complexo’ até então correntemente adotado nas ciências sociais.
Refletindo sobre este debate atual nas ciências sociais, penso que novos desafios se colocam no campo dos estudos do lazer. Se os objetos, assim como os seres humanos, também possuiriam agência, sendo, portanto, parte do social, como lidar com esta questão nas atividades de lazer que a todo momento interagem com equipamentos de lazer? Entendendo que o corpo é matéria e pensando que o humano ultrapassaria as divisões entre natureza e cultura, entre corpo e mente, então o corpo possuiria, também, agência? Ou em outros termos, o corpo possuiria um ‘saber?’ São questões que poderiam ser colocadas como tentativa de ‘deslocamento do olhar’ nos estudos do lazer.
Como não é este meu objetivo aqui, retornarei à reflexão sobre a perspectiva do lazer enquanto dimensão da cultura, como compreendem os autores citados anteriormente. Conforme demonstrado, a relação lazer e cultura, lazer e experiência/vivência é recorrente nas discussões sobre o lazer. Assim, penso ser oportuno abordar o ‘desvio do olhar’ proposto na antropologia de Victor Turner quando desenvolveu argumentos sobre a teoria da antropologia da experiência e da performance realizando uma reflexão sobre este ‘desvio’ para os estudos do lazer. Portanto, discutirei agora a perspectiva do lazer à luz dos estudos antropológicos das formas expressivas, enfocando centralmente as noções de ritual, communitas, liminóide, drama social e performance adotadas pelo antropólogo Victor Turner, principalmente a partir de alguns de seus textos publicados na década de 1980. Utilizarei, também, trabalhos dos atropólogos John Dawsey (2005) e Rubens Alves da Silva (2005) que enfocam as obras de Turner .
2 - Experimentando o lazer
(A DISCUSSÃO DESTE TEXTO CONTINUA NO POST INTITULADO "EXPERIÊNCIAS, PERFORMANCE E PRÁTICAS DE APRENDIZAGEM: TEMAS PARA PENSAR O LAZER DE FORMA NÃO FRAGMENTADA" DE JUNHO DE 2010 NESTE BLOG, CONSULTE!).
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