AS LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

As literaturas africanas de língua portuguesa como processo de luta no período colonial.



Resumo

Realiza breve análise das literaturas africanas de língua portuguesa no período colonial, como instrumento de luta e afirmação identitária, abordando as especificidades que a relação colonizador x colonizado acarretaram nas antigas colônias de Portugal: Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique.

Palavras-chave: Literaturas Africanas de Língua Portuguesa; Colonização; Relação colonizador x colonizado.

1 APRESENTAÇÃO

As literaturas africanas em língua portuguesa tiveram seu desenvolvimento a partir da segunda metade do século XIX, como não poderia deixar de ser, em se tratando de países africanos, dotados em sua maioria por culturas de tradição oral (embora não exclusivamente ). Diferentemente da produção colonial africana , as literaturas africanas adotam um ponto de vista do colonizado, “de dentro para fora”.

Marcadas pelo colonialismo português, os conflitos e relações que esta forma administrativa acarreta, foram com o passar do tempo, inspiração constante na literatura das então colônias de Portugal, atuais países de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Angola e Moçambique. Por ter sido, o fazer literário nestes países, muitas das vezes, formas de resistência e militância, serão exatamente estas nuances que marcam as relações colonizador x colonizado e as demais buscas de afirmação identitária que elas acarretam, brevemente abordadas neste trabalho, através de textos recolhidos dos 5 países africanos de língua portuguesa. A literatura então, passa a construir em forma de militância política, de denúncia, de busca de uma identidade, a ideologia para a independência e afirmação de identidades nestes países. Daí a sua importância.

O enfoque principal deste trabalho será para a lírica, não cabendo aqui transcrever, na íntegra, textos narrativos e nem do teatro. Porém, ao analisar a relação colonizador x colonizado e de afirmação identitária presente nos textos recolhidos, algumas referências a textos narrativos podem ocorrer ao longo do trabalho. Realizar-se-á uma apresentação geral da literatura de cada país antes da apresentação dos textos (ou trechos dos textos) recolhidos para cada um deles.

2 CABO VERDE

Tal como em Angola ou Moçambique, as primeiras manifestações literárias do arquipélago remontam aos meados do século XIX. E a primeira observação que nos ocorre fazer é a de que, ao contrário do que sucede naquelas duas áreas citadas (mais em Moçambique do que em Angola) a literatura escrita em Cabo Verde é assinada, na sua maioria esmagadora, por cabo-verdianos. (...). Em Cabo Verde só com o aparecimento da revista Claridade (1936), fundada e animada pelos poetas e romancistas Baltasar Lopes, Manuel Lopes e Jorge Barbosa, ocorreria a viragem definitiva da literatura cabo-verdiana. Podemos na verdade dizer que a literatura cabo-verdiana se divide em dois períodos fundamentais: antes e depois da Claridade. (FERREIRA, 1986, p. 125-126).

Por questão histórica, política, social, e literária, é que a partir do início da década de 30 (também por influências da literatura brasileira), ocorre uma tomada de consciência regional (nacional), muito precisa por parte dos escritores cabo-verdianos. Estes passam a preocuparem-se com a real significação das estruturas sociais cabo-verdianas. Apesar de ainda não ser uma clara postura anticolonial, era em modos de literatura, uma mudança no sentido de “manter as costas voltadas para os modelos temáticos europeus e os olhos, pela primeira vez, vigilantes e deslumbrados no chão crioulo”. (FERREIRA, 1986, p. 126). O poema “Itinerário de Pasárgada”, de Oswaldo Alcântara (que utilizava o pseudônimo Baltazar Lopes), ilustra, através de uma releitura de Manuel Bandeira, a íntima relação entre Cabo Verde e Brasil, que foi influenciadora desta busca pela identidade cabo-verdiana.

Saudade fina de Pasárgada...

Em Pasárgada eu saberia

onde é que Deus tinha depositado

o meu destino...

(...)

Na hora em que tudo morre,

esta saudade fina de Pasárgada

é um veneno gostoso dentro do meu coração.

(ALCÂNTARA, 1946, In: FERREIRA, 1986, p. 184).


Da mesma forma, o poema “Você, Brasil” de Jorge Barbosa, demonstra a identificação do sujeito poético com o Brasil:

Eu gosto de Você, Brasil,

Porque Você é parecido com a minha terra. (...)

É o seu povo que se parece com o meu,

É o seu falar português

Que se parece com o nosso, (...)

As nossas mornas, as nossas polcas, os nossos cantares,

Fazem lembrar as suas músicas,

Com igual simplicidade e igual emoção.

(BARBOSA, In: FERREIRA, 1986, p. 170).


O povo cabo-verdiano é bilíngüe: além do português, utilizam também o crioulo ou a língua cabo-verdiana, que, no quotidiano possui uma total implantação, que falece à língua portuguesa.

Vêm do século XIX, paralelamente às criações em língua portuguesa, as experiências literárias em crioulo, para não citarmos as de origem remota, de natureza popular, vinculadas através das mornas (a sua grande expressão artística), canções populares, as finançons (canções de batuque), dos curtiçans (canções ao desafio – ilha do Fogo). (FERREIRA, 1986, p. 126).

O cabo-verdiano também possui forte identificação com o mar (ilha) e com o deslocamento constante que esta situação geográfica ocasiona. Há também em Cabo Verde o chamado “vento leste”, que não permite o desenvolvimento da agricultura, levando o país a vivenciar períodos de secas que acabam por obrigar a saída (deslocamento) da ilha. A literatura de Cabo Verde aborda estas características do constante deslocamento, da natureza sob uma perspectiva problemática para a população.

Durante muito tempo a poesia cabo-verdiana evoluiu, em grande parte, sob a influência da poesia de Jorge Barbosa, embora tenha ocorrido um aprofundamento temático, estilístico e ideológico entre várias gerações. Após a independência, é criada a revista Raízes (1977), dirigida por Arnaldo França, sendo uma das suas principais características o amplo aproveitamento dos autores que vêm da Claridade, porém, quer em português ou em crioulo, juntam-se autores das novas gerações.

A referência geográfica forte (ilha), a posição de desejos, o diálogo com o projeto colonial português e com o cabo-verdiano, assim como a referência à tradição da morna (própria de Cabo Verde), são características da literatura cabo-verdiana encontradas no poema “Irmão” (1941) de Jorge Barbosa, nos seguintes versos:

Cruzaste Mares

na aventura da pesca da baleia,

nessas viagens para a América

de onde as vezes os navios não voltam mais.

(...)

Sob o calor infernal das fornalhas

alimentaste de carvão as caldeiras dos vapores,

em tempo de paz

em tempo de guerra.

E amaste com o ímpeto sensual da nossa gente

as mulheres nos países estrangeiros!

Em terra

Nestas pobres Ilhas nossas

És os homem da enxada (...)

A Morna...

Parece que é o eco em tua alma

Da voz do Mar (...)

(BARBOSA, In: FERREIRA, 1986, p. 166-167).

Da mesma forma, a afirmação da identidade cabo-verdiana cobrando uma solidariedade, é identificada nos versos de Ovídio Martins (1974) do poema “Flagelados do Vento-Leste”, “Somos os flagelados do vento-leste! / Os homens esqueceram-se de nos chamar irmãos / E as vozes solidárias que temos sempre escutado / São apenas as vozes do mar / que nos salgou o sangue / as vozes do vento / que nos entranhou o ritmo do equilíbrio (...)” (In: FERREIRA, 1986, p. 224-225).

A identificação com a tradição, o falar com a coletividade mostrando um caminho, o pulsar de uma nova atitude, são marcados nos versos de Corsino Fortes (1977) do poema “Hoje queria ser apenas tambor no coração do Imbondeiro”:

(...) Não cubram! Irmãos

O rosto do povo de Cazenga

Com o escudo vermelho do ódio

Com o verde escudo da angústia

É da árvore do Amor

Que se constrói

O caixão

(...)

Erguemos bem alto

O sangue do povo de Cazenga

A alvorada

que rebenta

No coração do Imbondeiro

(In: FERREIRA, 1986, p. 239-240).

Percebe-se assim, que a literatura cabo-verdiana pós Claridade, apesar de não se direcionar diretamente ao colonialismo e à sua denúncia, buscava, a partir da pressão que o colonialismo acarretava, afirmar a identidade do país, através da valorização das especificidades locais e do modo de vida do cabo-verdiano.

3 GUINÉ-BISSAU

Ao contrário de Cabo Verde, em Guiné-Bissau não há preocupação identitária com o mar, pois não se trata de uma ilha. A tradição oral em Guiné-Bissau também é diferente de Cabo Verde. A intimidade entre os dois países, porém, é muito grande, tanto que o PAIGC (partido político) lutou pela libertação dos dois países em conjunto, embora articulando formas diferentes para cada um. Além disso, a comunidade de cabo-verdianos na Guiné-Bissau é significativa, tendo sido esta ex-colônia portuguesa administrativamente vinculada a Cabo Verde até 1879.

Em Guiné-Bissau, “praticamente, até à independência nacional, não se ultrapassou a fase da literatura colonial. E esta mesma de reduzida extensão. (...) O regime colonial português pôde construir nessa antiga colônia os entraves suficientes ao desenvolvimento criativo”. (FERREIRA, 1986, p. 163).

Entre as várias etnias circula o crioulo (diferente do crioulo de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe), que tende cada vez mais a funcionar como autêntica língua de contato, tendo deixado, no entanto, o seu rastro apenas na literatura oral e em algumas canções de luta nos quadros do PAIGC.

Embora durante a guerra colonial, nas áreas libertadas pelo PAIGC, se tivesse procedido a uma aturada alfabetização, compreende-se que a juventude, essencialmente empenhada na luta de libertação nacional, ou então retraída a que vivia na capital, só agora encontre os meios necessários para se revelar no plano da criação e construir a autêntica literatura do seu país. (FERREIRA, 1986, p. 163).

Dessa forma, a literatura da Guiné-Bissau passa a dar visibilidade à pobreza destacando o problema da colonização portuguesa como principal responsável. Além desse fator, a etnicidade, a oralidade (crioulo) e o PAIGC fazem parte da identidade guineense.

A relação colonizado x colonizador, marcada pela tensão entre discursos e tensão entre estratégias do colonizador e resistência do colonizado, pode ser percebida nos versos de Vasco Cabral (1956), do poema Anti-delação:

A noite veio,

disfarçada em dia

e ofereceu-me a luz,

diáfana como a Aurora.

Mas eu disse que não.

(...)

Por fim veio Pilatos,

disfarçado em Cristo

e numa voz humana e doce


disse: 

mas conta a tua história...>

Mas eu disse que não,

que não, não, não!

E continuei um Homem!

E eles continuaram 

os abutres do medo e do silêncio.

(In: FERREIRA, 1986, p. 291)


Percebe-se também, nestes versos, uma perspectiva entre dois sujeitos (eu / eles) e humanística (marxista) – devido ao contato com a ex-URSS – que são marcos da produção literária da Guiné. 

4 SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE

A evolução de São Tomé e Príncipe teria sido paralela, em muitos pontos à de Cabo Verde. Mas nos meados do século XIX, implantando-se o sistema de da monocultura, a burguesia negra e mestiça vai ser substituída pelos monopólios portugueses e o seu processo social alterado e travada a miscigenação étnica e cultural. Mesmo assim, em grau relativo, patentes são os efeitos do contato de culturas traduzido em vários aspectos, sobrtudo ao nível das camadas da burguesia africana. A sua poesia, de um modo geral, exprime exatamente isso: por um lado, as marcas de uma mestiçagem; por outro lado, os profundos nexos que vinculam o homem de S. Tomé ao mundo genuinamente africano. (FERREIRA, 1986, p. 210).

A identidade santomense (santomensidade) é caracterizada pela insularidade – já que se tratam de ilhas -, pela etnicidade – marcada por uma forte tensão na questão racial -, oralidade – destacada pelo crioulo (forro) -, pela natureza – que, diferentemente de Cabo Verde que possui o vento leste, denota exuberância -, pela negritude / mestiçagem – abordada sob a perspectiva do trânsito de pessoas. Ao contrário de Cabo Verde, a mestiçagem é muito questionada em função do contato intelectual com os pensadores da Negritude (franceses e caribenhos) -, e pela tensão anti-colonial.

Os versos do poema Serões de São Tomé (1916) de Costa Alegre, abordam a perspectiva da relação colonial através da metáfora da mulher branca (colonizador) como fria em contrapartida com a mulher negra (colonizado):

Minha amante é escura noite,

Que me convida a dormir,

Quando os seus lábios descerra

Vejo os astros a luzir.

A neve que cai na serra

Esfria tudo em redor;

Quem se afoita a amar as brancas,

Se da neve têm a cor?

(In: FERREIRA, 1986, p. 433).


Da mesma forma, o mesmo poeta aborda o conflito da tensão anti-colonial no poema Aurora, metaforizando a figura do colonizador (Aurora) abordando a questão do conflito no verso final do poema:

Tu tens horror de mim, bem sei, Aurora,

T és dia, eu sou a noite espessa,

Onde eu acabo é que teu ser começa..

(...)

És a luz, eu sou a sombra pavorosa,

Eu sou a tua antítese frisante,

Mas não estranhes que te aspire formosa,

Do carvão sai o brilho do diamante.

(...)

Que me obriga a dizer-te !

(In: FERREIRA, 1986, p. 437).

O poeta Francisco José Terneiro, com o poema Exortação (1982), demonstra a face da Negritude presente na literatura santomense através de uma chamada para uma atitude em termos de Negritude, expressa pelos seguintes versos: “Negro! / Levanta os olhos prao sol rijo e ama tua mulher / na terra húmida e quente!” (In: FERREIRA, 1986, p. 447).

Finalmente, sobre a questão da relação colonizador x colonizado na literatura santomense, Alda do Espírito Santo com o poema Fevereiro (1970), aborda a esperança ao reverenciar uma perspectiva de futuro:

Silêncio na rua, silêncio nas almas

Um minuto de silêncio angustiado

Repicar de sinos na aurora dos tempos

Um silêncio reverente

Para a página do futuro

(In: FERREIRA, 1986, p. 465).


5 ANGOLA

É na segunda metade do século XIX que uma atividade literária e cultural intensas para a época acontece. 

E não deixa de ser curioso anotar que, já nesse período, (...), paralelamente àquilo que se vem designando por literatura colonial, encontramos obras de alguns autores que não poderão ser inscritas na genérica designação de literatura colonial: umas vezes serão portugueses profundamente radicados em África, quase todos eles jornalistas combativos e criadores literários, (...). Ou então serão mesmo autores africanos (...), a maioria militando (...) no jornalismo, em grande parte político e interveniente, não raro denunciador de prepotências e abusos da administração colonial ou de desmandos e repressões de setores políticos e econômicos. Nesse jornalismo intervêm não só brancos como negros e mestiços. (FERREIRA, 1986, p. 61).

A partir do início do século XX, como lembra Ferreira (1986, p.61), cria-se um vazio na atividade literária angolana, que se prolonga por longos anos, ocorrendo majoritariamente produções de literatura colonial. A partir de 1935, porém, a linha africana é reintegrada a partir de António de Assis Júnior com seu romance “O segredo da morta”. Caberia ao romanista Castro Soromenho dar à literatura angolana uma estatura de indiscutível qualidade e radicação social e humana, perfeitamente representativa de uma situação colonial concreta, denunciando a violência e a humilhação a que estavam sujeitos negros e mestiços, mas nos quais residia já uma força potencialmente eufórica. Com o Movimento dos Jovens Intelectuais de Angola (1948), surge uma nova fase da literatura angolana. O lema “Vamos Descobrir Angola!” é adotado responsabilizando a reconversão cultural e política do país. Surge o termo “angolanidade” para exprimir essa preocupação estético-social de fidelidade à mãe-África. Várias publicações surgem mostrando, entre outros, uma ruptura e estruturação lingüística que perpassa pelo português falado nos muceques (ghettos da cidade de Luanda) e integração do quimbundo. Como lembra Ferreira (1986, p. 62), é nas páginas destas publicações e noutras como “Mensagem” (1949-1965), órgão da Casa dos Estudantes do Império (Lisboa), tornada num importante núcleo, cultural e político, de estudantes e intelectuais africanos de Portugal, que, através da poesia, do conto, do ensaio e da crítica, os jovens escritores africanos, com predominância para os angolanos, vão corporizando a decisão anteriormente assumida de criar, de vez, uma literatura verdadeiramente nacional. De resto, ao longo de todo este percurso houve sempre um esforço no sentido de ser mantida íntima ligação entre os intelectuais africanos progressistas vivendo em Portugal e os que permaneciam em África. Esta ligação culminou com a primeira manifestação pública na divulgação da poesia africana de expressão portuguesa, lançada fora de circuitos mais ou menos privados. 

Na década de 60, período violento da guerra colonial, a repressão cultural fazia-se sentir a todos os níveis. Escritores presos, outros exilados, outros participando na luta armada, alguns em Portugal, muitos outros silenciados pela ameaça ou pelo medo. E uma censura feroz, perversa e eficaz. (FERREIRA, 1986, p. 62).

Porém, mesmo nesse período, registra-se a publicação de alguns livros de poesia. No início da década de 70 pareceu querer reanimar-se, embora timidamente, a atividade literária em Angola, abrindo-se certas possibilidades editoriais a partir de iniciativas individuais ou em grupo, que entre outros, alargaram o espaço poético angolano. Nesse cenário a ação literária e cultural do M.P.L.A. (Movimento Popular de Libertação de Angola) foi muito importante durante a luta de libertação nacional. 

Apenas no período de descolonização (a partir de abril de 1974), criaram-se as condições para a construção de uma cultura desalienada, abrindo largas perspectivas editoriais, não apenas em relação a autores já conhecidos como à revelação de vários outros.

O poema “Partida para o Contrato”, de Agostinho Neto (1985, p. 11), reflete o questionamento sobre até quando as desigualdades causadas pelo sistema colonial durariam em Angola, sob uma perspectiva de chamada para a atitude: 

“O rosto retrata a alma 

Amarfanhada pelo sofrimento

Nesta hora de pranto 

Vespertina e ensangüentada

Manuel

O seu amor

Partiu para S. Tomé 

Para lá do mar

Até quando?”

Da mesma forma, no poema “Quitandeira” do mesmo autor (op. cit. p. 23), há a descrição da situação em que a quitandeira se enxerga, como alguém que não vale nada – realidade vivenciada perante o sistema:

“A quitanda.

Muito sol

E a quitandeira à sombra 

Da mulemba.

(...)

A quitandeira 

Que vende fruta

Vende-se.

Aí vão as laranjas 

Como eu me ofereci ao álcool

Para me anestesiar

E me entreguei às religiões

Para me insensibilizar

E me atordoei para viver.

Tudo tenho dado.

(...)

Talvez vendendo-me

Eu me possua.

- Compra laranjas!”

As perspectivas de Agostinho Neto, tanto em sua poesia quanto na narrativa, apontam para uma crença de que o projeto intelectual em Angola só seria plenamente realizado em gerações futuras. 

Partindo da lírica para a narrativa, textos do período colonial, como “Nga Muturi” (1882) de Alfredo Troni – revolucionário na época por colocar uma mulher como personagem principal, utilizando um modelo formal europeu literário, mas com roupagem angolana (com marcas locais muito fortes), também devem ser levantados como parte da busca por uma identidade angolana na literatura. “A Morte da Chota” de Castro Soromenho também aponta a condição da mulher de submissão, permeado por referências da tradição oral como forma de identidade do projeto literário angolano (até a década de 1980). “Vovô Bartolomeu” de Antônio Jacinto aponta as referências à tradição através da imagem do corpo sempre muito presente (dança, ritmo), marcado pela alternância de registro de escrita (português padrão e português marcado por uma fala local), reproduzindo o discurso geral pessimista e propondo no final uma crítica a isso. 

O resultado desse projeto literário (fazer poético) em Angola foi a luta armada (guerrilha), literalmente. 

6 MOÇAMBIQUE

As pesquisas sobre a literatura moçambicana do século XIX ainda é incipiente, em relação às pesquisas do mesmo período para a literatura angolana. No entanto, “não será arriscar demasiado dizer que a atividade cultural de Moçambique naquele período deve ter sido sobretudo orientada para o jornalismo”. (FERREIRA, 1986, p. 177). Houve, ainda de acordo com Ferreira (1986, p. 177), jornalistas que desempenharam um papel importante na luta contra o obscurantismo político e cultural, não obstante as dificuldades de toda a ordem que houveram de tornear para que sua intervenção se mantivesse digna e inteira. 

Somente na década de 30, surge o nome de Rui de Noronha (1909-1943) e com ele são dados os primeiros passos para a criação de uma literatura moçambicana. A partir de 1955 ocorre o surto de uma atividade cultural com uma feição que apontava às raízes da vida moçambicana. “Mas é com msaho (1952), revista que se publicou apenas um número, (...), que se dá pelo sinal organizado e coletivo da instauração de uma poesia (literatura) de raiz autóctone”. (FERREIRA, 1986, p. 178). Porém, como lembra Ferreira (1986, p. 178), o verdadeiro vôo na violenta e complexa realidade moçambicana, ao sopro e ao rigor de uma visão concretamente nacional, é desencadeado no discurso poético de Noêmia de Sousa, a partir de 1949. 

Na área da narrativa, embora mais escassa, o primeiro nome que se impõe é o de João Dias, que relativamente cedo introduz no discurso narrativo o sofrimento do homem negro no mundo colonizado. 

Chamemos, no entanto, a atenção para o fato de na poesia de Moçambique, e não só na poesia como também na ficção, ser possível, (...) apartar duas linhas perfeitamente definidas, como que confrontando-se (às vezes conjugando-se) a todo momento: a de compromisso total com o real moçambicano e a de compromisso com esse mesmo real; ou, se não, sem que ele seja a tônica do discurso. (...) A intenção do autor angolano, por sistema, seja negro, mestiço ou branco, foi a de grudar-se, tanto quanto possível, ao universo não de uma camada européia mas da vasta área tecida pelo fundo africano, marcado por situações decorrentes do sistema colonial. Tal fato resulta da miscigenação étnica e cultural ter sido mais intensa em Angola (...) criando-se ali uma maior permeabilidade entre camadas sociais paralelas, embora constituídas por elementos de cor diferente. Não foi exatamente assim em Moçambique, dado que ali os compartimentos raciais eram mais rígidos e os grupos representativos da expressão estético-literária numericamente mais equilibrados, ou com predominância para o grupo europeizado, tendia a ser reabsorvido pela maioria que é aquela que está sintonizada com as aspirações coletivas. (FERREIRA, 1986, p. 178).

A tradição oral, abordada pelo projeto da literatura moçambicana, pode ser observada no poema “Karingana ua karingana” de José Craveirinha. O título representa uma expressão similar ao “era uma vez” brasileiro, utilizado pela oralidade na contação de estórias, por exemplo. Já o poema “Grito Negro”, do mesmo autor, marca a opressão do negro pelo sistema colonial, principalmente através da metáfora do carvão apresentada nos seguintes versos:

Eu sou carvão!

Tenho que arder

E queimar tudo com o fogo da minha combustão.

Sim!

Eu serei teu carvão

Patrão!
(In: APOSTILA DE CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS,2005).

A marca da tradição como forma de busca identitária e da abordagem da exclusão pelo sistema colonial são marcas da literatura moçambicana em diversos autores. 

7 CONCLUSÃO
As literaturas africanas de língua portuguesa foram instrumentos de busca de afirmação identitária, de denúncia de exclusão causada pelo sistema colonial. Cada uma a sua maneira, buscou uma forma de abordar a relação tensa entre colonizador x colonizado: em Cabo Verde buscava-se, a partir da pressão que o colonialismo acarretava, afirmar a identidade do país, através da valorização das especificidades locais e do modo de vida do cabo-verdiano; a literatura de Guiné-Bissau abordava a pobreza, responsabilizando a colonização portuguesa, marcando a etnicidade, a oralidade (crioulo) e a influência do PAIGC; em São Tomé e Príncipe, a mestiçagem é muito questionada, marcando ainda a tensão anti-colonial; o projeto literário em Angola foi a luta armada (guerrilha), literalmente; em Moçambique, a oralidade é a marca do projeto literário.

Este trabalho, através de trechos retirados de textos dos autores de cada país, procurou demonstrar como eles abordaram a questão da colonização portuguesa e seus impactos na sociedade de cada região, buscando, cada um à sua maneira e dentro do projeto literário de cada país, denunciar as mazelas da colonização e reestruturar a identidade local. A literatura foi, portanto, instrumento de luta nesse processo.

REFERÊNCIAS
APOSTILA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS, Literaturas Africanas de língua portuguesa: textos fundadores. 2005, Contagem: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. 
FERREIRA, Manuel. Literaturas africanas de expressão portuguesa. São Paulo: Ática, 1986.
LEITE, Ana Mafalda. A modalização épica nas literaturas africanas. Lisboa: Veja, 1995.
NETO, Agostinho. Sagrada Esperança. São Paulo: Ática, 1985. 
SANTILLI, Maria Aparecida. Estórias Africanas – história e antologia. São Paulo: Ática, 1985.













Comentários

  1. Olá Patricia, tudo bem?
    Trabalho para uma editora e gostaria de pedir sua autorização para publicarmos um trecho desse seu texto em um livro didático. Você poderia por favor entrar em contato comigo pelo email mayara.ribeiro@ftd.com.br?
    Muito obrigada!

    ResponderExcluir
  2. Oi Mayara, tudo bem? Vi sua postagem agora. Enviarei o email! Obrigada!

    ResponderExcluir
  3. Bom dia. Estou produzindo um material didático para o Pde-Paraná, curso de formação para professores, minha temática é Oralidade: A literatura africana dos países de língua portuguesa e a voz negra na formação de declamadores/leitores. Peço autorização para utilizar seu texto como anexo da minha produção como material complementar para os professores e alunos conhecer um pouco mais da literatura Africana.

    ResponderExcluir
  4. Olá Paula! Muito legal a temática do curso que vocês estão desenvolvendo! Fico muito contente em ter um texto como referência para o material que você está preparando para o curso. Fique à vontade para utilizar o texto do blog. Peço a gentileza apenas que indique os créditos do texto (meu nome completo, data da publicação do texto aqui no Blog e link para acesso ao texto no blog também). Muito obrigada! Abraço!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

SOBRE O MACULELÊ

SOBRE AS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA NO BRASIL

SOBRE MESTRE BIMBA E A LUTA REGIONAL BAIANA (CAPOEIRA REGIONAL)