Repensando a questão racial e a cultura negra com Tim Ingold
Resumo
O
ensaio propõe repensarmos a questão racial e a noção de cultura negra a partir
da abordagem antropológica ecológica de Tim Ingold (2000). Partindo das noções
de habilidade (skill) e de um “organismo-pessoa”
de Ingold, o ensaio propõe uma nova abordagem teórica para produção etnográfica
e para compreensão das práticas culturais afro-brasileiras.
Palavras-chave:
raça; cultura negra; habilidade; práticas culturais afro-brasileiras.
No século XIX, a etnologia se aderiu à teoria do monogenismo enquanto
a antropologia física defendia o poligenismo. Foi nesse período que surgiram duas
linhas de pensamento teórico entre os etnólogos acerca da origem do ser humano:
o evolucionismo e o difusionismo. Como o evolucionismo foi a base para o
surgimento do racismo científico, explicarei em linhas gerais qual era o seu
argumento. O evolucionismo foi influenciado pela teoria da seleção natural de
Charles Darwin que se consistia na tentativa de explicar a diversidade de
espécies de seres vivos através da descendência com modificação. No entanto, a
teoria de evolução empregada pelos etnólogos deve mais a outro autor, o
sociólogo e filósofo Herbert Spencer, cujo conceito de evolução difere em
importantes aspectos daquela perspectiva desenvolvida por Darwin. Mesmo assim,
posteriormente, a abordagem spenceriana ficou conhecida como ‘darwinismo
social’.
Os etnólogos evolucionistas consideravam a sociedade europeia da época
como o apogeu do processo evolucionário. Portanto, este pensamento estava
inserido em uma visão etnocêntrica que coloca a organização
sócio-político-econômica europeia como grau máximo de civilização. Entretanto,
mesmo considerando esse pressuposto, a antropologia cultural da época não se
tornou uma pseudociência racista.
A tese evolucionista apoiava o princípio da unidade psíquica da
humanidade de Adolf Bastian, e defendia a existência de apenas uma espécie
humana idêntica inicial (monogenismo), que se desenvolve tanto em suas formas
técnico-econômicas como nos seus aspectos sociais e culturais. A evolução
ocorre em ritmos desiguais, de acordo com as populações e localizações
geográficas, passando pelas mesmas etapas, para alcançar o nível final de
"civilização". Assim, a proposição básica era de que o
desenvolvimento humano seguiu estágios. Em cada etapa a experiência humana
acumulava, levando a formação cultural cada vez mais avançada. Esta ideia - de
que a experiência humana acumula - foi inspirada no raciocínio empírico de John
Locke e outros filósofos do ‘empirismo’ do século XVIII.
Dois argumentos davam suporte ao evolucionismo: movimento unilinear e
o determinismo tecnológico ou social. Segundo a tese evolucionista, haveria um
caminho só a ser trilhado por todas as sociedades, numa trajetória vista como
obrigatória, seguindo uma única linha ascendente, de estágios mais simples aos
mais complexos (do mais selvagem ao mais civilizado). O determinismo social e
cultural defende que o indivíduo é determinado pelo meio sócio-cultural, portanto
define o estágio de maior evolução de uma sociedade pelo grau de complexidade
de sua tecnologia; já o determinismo biológico defende que a biologia é que
determina o indivíduo, implicitamente sendo os sujeitos de pele mais alva, os
mais evoluídos. Os evolucionistas culturais clássicos não pregaram esta postura
abertamente, sendo os antropólogos físicos e os biólogos do século XIX os
maiores defensores desse racismo científico.
Não se pode generalizar e atribuir as características acima a todos os
autores que foram adeptos a essa corrente. Apesar da maioria dos pensadores
evolucionistas terem trabalhado em gabinetes, um dos mais conhecidos - Lewis H.
Morgan - realizou pesquisas com algumas tribos dos Estados Unidos. Morgan
compreendeu que grande parte da complexidade da cultura nativa americana em
pouco tempo seria destruída como consequência do fluxo de europeus, por isso
considerava tarefa crucial documentar a cultura tradicional e a vida social
desses nativos. Outros pensadores importantes para o evolucionismo cultural
são: Edward Burnett Tylor, considerado o pai do conceito moderno de cultura;
John Lubbock, primeiro a rejeitar a cronologia bíblica que dizia que o mundo
teria uns meros seis mil anos: introduziu os termos paleolítico e neolítico,
Velha e Nova Idades da pedra, hoje reconhecidas como períodos-chave do passado
pré-histórico.
O método científico usado na antropologia (etnologia) era a comparação
de dados, retirados das sociedades e contextos sociais e classificados de
acordo com o tipo (religioso, de parentesco, etc.) determinado pelo
pesquisador. Os dados coletados lhe serviriam para comparar as sociedades entre
si, fixando-as num estágio específico, inscrevendo estas experiências numa
abordagem linear, diacrônica, de modo que todo costume representasse uma etapa
numa escala evolutiva. Quando nos remetemos às bases do racismo científico,
encontramos também na perspectiva antropológica comparativa de tipos humanos em
suas diferentes características hereditárias o seu argumento principal para justificar
a diferença em termos de uma “raça” melhor ou pior. Esta perspectiva
potencializou e migrou para o nível social e cultural aquilo que a teoria
eugenista de Francis Galton (1822-1911) propunha em nível biológico: o estudo
dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as
qualidades raciais das futuras gerações seja física ou mentalmente. Em outras palavras,
melhoramento genético. Esta concepção, em conjunto com a perspectiva
antropológica comparativa de tipos humanos, culminou com uma ideologia da
pureza racial – que muito contribuiu com o processo escravocrata no Brasil e
com a própria formação da noção de povo brasileiro e, posteriormente, de uma
nação mestiça possível. As teorias antropológicas evolucionistas e eugenistas
se apresentavam posteriormente como principais influências, inclusive para os
teóricos brasileiros, com perspectivas a favor (Nina Rodrigues ou Oliveira
Vianna, por exemplo) ou tentativas teóricas propondo modelos alternativos
possíveis, aparentemente contra o racismo (Gilberto Freyre, por exemplo).
Voltando à prevalência do racismo em nossa sociedade, pretendo
demonstrar brevemente neste ensaio, o que, a meu ver, é um dos principais
problemas que contribuem para esta prevalência: trata-se do fato de que, muitas
vezes, quando há um debate intelectual ou político sobre a questão, eles giram
em torno de possíveis soluções para o problema, mas partindo de uma discussão
que já toma como dadas as noções de ‘sociedade’, ‘evolução’, ‘cultura’,
‘humano’. Isso não quer dizer que todas as discussões relacionadas ao tema
deveriam ser relativizadas ao ponto de chegarmos a um niilismo. Isso significa
que enquanto tomarmos os conceitos e perspectivas como “dados” de uma ideologia
que foi a criadora do racismo para tentarmos solucioná-lo, sem antes olharmos
para dentro das práticas sociais afro-descendentes ou afro-brasileiras e a
maneira como as pessoas vão se constituindo e constituindo seus mundos nestas
práticas, perderemos a chance de tentar compreender quais são as perspectivas e
conceitos que de fato operam no cotidiano das pessoas e, a partir disto, que
mundo estas pessoas constituem e como elas se constituem em suas relações. Daí
a importância da abordagem antropológica que procura buscar conceber as
questões da ‘diferença’ partindo de um diálogo com o ponto de vista retirado
‘de dentro’ da diferença. O que sugiro é que “ser negro” pode ir além de uma
localização na escala evolutiva social ou biológica racista, sendo mais do que
uma identidade social imposta ou conquistada a partir dos valores hegemônicos
racistas, mas se tratar de uma maneira peculiar de existir no mundo e, ainda,
que é nas suas práticas cotidianas que as pessoas vão se constituindo de
maneira peculiar.
Discutir a questão racial partindo, antes, da perspectiva do que é um
ser humano, por exemplo, tomados de ‘dentro’ das práticas sociais dos sujeitos
vítimas do racismo em nossa sociedade pode proporcionar outra maneira de
abordagem das próprias políticas públicas e do debate intelectual sobre o
racismo.
Esta postura teórico-metodológica é conhecida atualmente em
antropologia como uma abordagem “simetrizante”. Isso significa buscar, no
trabalho de campo e na análise dos dados, conceber os termos dos “nativos” de
igual para igual aos do antropólogo, ou seja, enquanto conceitos (GOLDMAN,
2003). Buscar trazer à luz e respeitar as diferentes ontologias
dos “povos do mundo”, em vez de reduzi-las a “invenções” e “imaginações” (VIVEIROS
DE CASTRO, 2002). Esta
abertura epistemológica que visa aceitar a possibilidade e compreender a
diferença ontológica não toma de antemão as dicotomias ocidentais como aquelas
derivadas das separações natureza versus
cultura; mente versus corpo; material
versus imaterial; real versus imaginário para compreensão
destes outros mundos possíveis. A meu ver, adotar esta perspectiva é abrir outra
linha de raciocínio para pensarmos a questão racial em nossa sociedade.
Para exemplificar o que estou propondo, tomarei como ponto de partida
para este ensaio, a noção de cultura como “habilidade” (skill) do antropólogo Tim Ingold. Mostrarei como uma abordagem que
não pressupõe as dicotomias ocidentais como natureza versus cultura, por exemplo, pode ajudar a repensar também as
práticas sociais afro-brasileiras ou afro-descendentes e, por conseguinte, a
maneira de discutir as questões raciais partindo de outra concepção sobre como pessoas
e mundos se constituem.
Partindo de um
compromisso vital com a sociedade caçadora coletora onde desenvolveu sua
pesquisa de doutorado (o povo Skolt Saami, na Finlândia) Ingold (2000) faz
questão de sugerir que percepções específicas das sociedades caçadoras
coletoras também podem ser encontradas entre grupos e pessoas em nossa
sociedade. Isto porque, a seu ver, ainda que a ciência ocidental insista em
criar um mundo segmentado e dual (natureza/cultura, corpo/alma,
selvagem/civilizado, mulher/homem, fantasia/inteligência), sempre será
constrangida pelo retorno de “algo”. Conforme aponta Mafra (2010, p. 2), “o
primado do ser sobre o conhecer; da ontologia sobre a epistemologia; da via
sobre o pensamento, que está na fundação das sociedades caçadoras coletoras,
deveria ser, segundo Ingold, o fundamento da toda a sociedade humana que queira
sustentar um horizonte de recriação”. Assim, Ingold encaminha seu projeto de
revisão das ciências a partir de sua subordinação a um conhecimento gerado no
interior das sociedades caçadoras coletoras. “Resgatando termos que estão
disponíveis (como prioridade ou como resíduo) em várias sociedades caçadoras
coletoras e na sociedade ocidental para falar do vivido (linha, trilha, buscar
caminho, movimento, habilidade, região), Ingold se propõe a reanimar o
pensamento ocidental reinserindo o animado (ser vivo) na base da ciência (o que
inclui a antropologia)” (MAFRA, 2010, p. 2).
Na avaliação de Ingold
a ciência moderna não foi capaz de desenvolver um conhecimento sintonizado com
o processo de vida. Como coloca Mafra (2010, p. 14), esta posição que poderia
ser reconhecida como uma retomada da tese do “bom selvagem” ou em posição
utópica e escapista diante das condições atuais de vida, é antes, como define
Ingold, um projeto de revisão da antropologia como uma disciplina que colhe e
ensina algo sobre o mundo em processo.
A cultura é como um
texto antigo, com “várias camadas de significados”, muitas “passagens
obscuras”, vários sentidos implícitos e não revelados. Esta é a imagem cunhada
por Clifford Geertz (1978) que se tornará persistente na antropologia moderna.
“Quando Ingold ouve os nativos contarem suas histórias dificilmente lhe ocorre
a imagem de um texto antigo. O contar histórias se parece mais, segundo ele, ao
exercício de traçar uma linha: algo que não pede superfície, não indica verso
nem reverso, que finaliza em crescendo.” (MAFRA, 2010, p. 3). As histórias dizem
respeito a pessoas que interagem com o mundo que se oferece como textura dentro
da qual a vida é vivida. A relação não se dá entre uma coisa e outra – uma
pessoa “aqui” e um ambiente “lá”, uma pessoa “aqui” e outra pessoa “acolá”. Na
trama das narrativas a história das pessoas se confunde com a história do lugar
e com a textura do mundo. “Na síntese que Ingold nos oferece: o organismo é
constituído em um campo relacional, formando uma rede de malha fina que
constitui as pessoas (e não apenas que as sustenta)”. (MAFRA, 2010, p. 3) O
diferencial, segundo Ingold, é que entre os povos caçadores coletores, aos
quais se atribui o animismo, os organismos não são percebidos como unidades
encapsuladas que criam ligações circundando as partes. Esta imagem faz parte da
inversão moderna: a crença em uma fronteira entre o dentro e fora do organismo,
cujo perímetro é circundado por um mundo – o ambiente – com o qual o organismo
se relaciona de acordo com sua natureza. Há assim, uma diferença monumental
entre ocupar o mundo como superfície ou substrato inerte e habitar o mundo
relacionando-se com ele. Neste último sentido, é preciso levar em conta que as
pessoas estão continuamente desenrolando suas vidas de dentro da própria vida
e, neste mesmo desenrolar, continuamente tecem um mundo que nunca está pronto.
Muitas das práticas
culturais afro-brasileiras contemporâneas possuem esta característica que
desafia a todo instante esta “imagem de inversão moderna entre o dentro e o
fora do organismo” que Ingold critica. Grupos de capoeira, maracatus, congadas,
samba, reggae, funk, candomblés, dança-afro, entre outros, apontam para uma
maneira de construção do ser humano por inteiro, como um “organismo-pessoa”
habitando o mundo ao mesmo tempo em que vão contribuindo para sua constituição.
É por isso que não há, por exemplo, capoeirista sem grupo de capoeira ou grupo
de capoeira sem capoeirista e, também, que a prática da capoeira vai
constituindo outra maneira de perceber que modifica a pessoa e o mundo dela.
(LUCE, 2010).
Conforme aponta Mafra
(2010, p. 5), para Ingold, o reconhecimento deste mundo compartilhado entre os
seres vivos, algo mais abrangente e consistente que a “imposição arbitrária de
um enquadramento de sentido sobre a realidade”, deve estar na base da boa
reflexão antropológica. Com a noção de habilidade (skill), Ingold ajuda a desestabilizar uma ideia que permanecia
implícita no trabalho de tradução cultural construtivista: conhecer uma cultura
implica na descrição de normas e valores a partir da qual opera (sistema de
símbolos para). Esta expectativa se apoia no pressuposto de que o conhecimento
cultural se realiza majoritariamente por especulação, no compartilhamento de um
sistema simbólico, que em geral, reflete um mundo “simbólico publicamente
compartilhado” – em uma remissão à linguagem. É justamente sob este ponto de
vista que as discussões sobre a “cultura negra” ou sobre os “valores simbólicos
do ser negro” se embasam e que estou propondo repensarmos aqui.
Para Ingold (2001) a
habilidade é o fundamento de todo o conhecimento desenvolvido na história de
vida de uma pessoa e não é o resultado de uma transmissão de informação, mas
uma redescoberta guiada. Fundamentado em Jean Lave (1988), Ingold afirma que os
movimentos e seus ajustamentos às diferentes situações não são um dispositivo
dentro da cabeça, mas referem-se à pessoa toda no mundo. Neste sentido e
fundamentando-se em James Gibson (1979), Ingold (2001) conclui que a
contribuição que cada geração dá para os seus sucessores equivale a uma
“educação da atenção”, uma questão não de enculturação, mas sim de habilitação
(enskillment). Assumir este ponto de
vista sobre o conhecimento – que inclusive está mais próximo da própria maneira
em que os sujeitos se relacionam nas práticas afro-brasileiras – pode ser uma nova
maneira de partir para uma discussão sobre relações raciais, cultura negra ou
constituição do ser negro.
Ingold (2000) aponta
que nos últimos anos a biologia neo-darwinista, a ciência cognitiva e a
psicolinguística conspiraram para produzir uma abordagem extremamente poderosa
para compreensão das relações entre evolução humana, tecnologia e linguagem e
inteligência. Argumenta-se que as capacidades linguísticas e intelectuais,
comum a todos os seres humanos, são construídas em propriedades embutidas da
mente cuja arquitetura básica evoluiu através de um processo de variação sob
seleção natural. Alguns tópicos remanescentes para debate questionam se as
pressões seletivas que guiam a evolução dessas capacidades se instalam no
domínio social de relações entre indivíduos da mesma espécie ou no domínio
técnico de adaptação ao ambiente não-humano, e se, - ou até que ponto tanto na
filogênese quanto na ontogênese – as capacidades técnicas são dissociadas das
capacidades linguísticas. Ingold (2000) coloca que esta perspectiva é baseada
em uma alegação ou afirmação para a supremacia da razão humana em que a
inteligência é a faculdade da razão, a linguagem seu veículo e a tecnologia os
meios pelos quais uma compreensão racional do mundo externo é voltada para constituir
o benefício humano. Como alternativa Ingold (2000) propõe que não há nada como
a tecnologia ou linguagem, ou a inteligência pelo menos nas sociedades
pré-modernas ou não-ocidentais e sugere examinar a relação, na evolução humana,
não entre tecnologia, linguagem e inteligência, mas entre artesanato, música e
imaginação. Com isso o autor não quer sugerir que em outras sociedades as
pessoas não fazem uso comum de ferramentas nas atividades diárias e que elas
não se comprometam umas com as outras em idiomas verbais da fala, ou que estas
e outras atividades não representam formas criativas de lidar no mundo. A
preocupação do autor é chamar a atenção sobre o que significa dizer que o uso
de ferramentas diário é uma instanciação comportamental da tecnologia, ou o
diálogo falado é a instanciação da linguagem, ou que a atividade criativa é a
instanciação da inteligência, mostrando que mesmo em nossa sociedade, na qual
essas proposições formam uma parte da sabedoria recebida, elas não são
imediatamente ou obviamente confirmadas na experiência. Neste ponto, poderíamos
pensar com Ingold em uma nova perspectiva para abordar a ‘oralidade’, a
‘musicalidade’ e a ‘performance’ contidas nas práticas afro-brasileiras, por
exemplo, com um novo argumento científico de embasamento destes tipos de
conhecimento que não são aprendidos e executados a partir de uma concepção que
separa mente e corpo, por exemplo. O que sugiro aqui é que tentemos discutir
cultura negra ou relações raciais a partir da perspectiva que Ingold aponta para
pensarmos os seres vivos e o mundo.
Desenvolvendo esta
mesma crítica em relação às abordagens biológicas e construtivistas para
explicação de nossa ontogênese, Ingold (2006), neste outro trabalho, começa seu
argumento discorrendo sobre a seguinte questão: Quais são as diferenças entre a
sociedade humana e as sociedades de outros animais? Ingold (2006) problematiza
o dualismo sujeito-objeto presente nas perspectivas de biólogos e antropólogos
ocidentais que pressupõe um domínio subjetivo referente à mente e ao
significado e um domínio objetivo, composto por matéria e substância. Para o
autor, muitos biólogos da corrente da ecologia evolucionária moderna assumem
haver uma continuidade evolutiva própria à socialidade de não-humanos e
humanos. Os padrões de comportamento entre indivíduos de uma mesma espécie são
entendidos como a expressão fenotípica de disposições herdadas e geneticamente
codificadas, estabelecidas no curso da filogenia evolucionária por meio do
mecanismo de variação sob seleção natural. Assim, socialidade é tida como uma
propriedade individual embutida, que é expressa apenas com a presença de outros
indivíduos da mesma espécie. A sociedade não é entendida como externa ao animal
e sim carregada por ele biologicamente por meio de seus gens. Os antropólogos
sociais, por sua vez, rejeitam estes imperativos biológicos, principalmente
relacionados aos seres humanos. Conforme aponta Ingold (2006), para eles, as
relações sociais pressupõem a emergência de regras incorporadas no indivíduo a
partir das instituições. Estas regras dependeriam de um modo humanamente
distinto de reflexiva auto-consciência, que é tido como a pré-condição para a
‘cultura’ em seu sentido etnográfico abrangente. O fenômeno ‘sociocultural’ é
tido, conforme aponta, por exemplo o modelo de Sahlins (1976), como composto e
organizado por significado simbólico. Deste modo, a essência da socialidade não
está em interação padronizada, mas em sua constituição dentro de uma mistura de
símbolos significantes.
Mais uma vez, buscando
dissolver o dualismo que perpassa ambas as versões sobre o ser humano, Ingold
propõe que levemos a sério o que outros povos (bem como o que uma persistente
contra-corrente dentro da filosofia ocidental) têm tentado nos contar. Isso
significa considerar que os seres humanos não são indivíduos isolados que
interagem com seu entorno. Pelo contrário, os seres humanos são pessoas no
mundo de envolvimento intersubjetivo e significativo com outras pessoas, são
também seres sociais. Assim, o que estes outros povos sugerem não é uma
construção do mundo alternativa, mas a possibilidade de um modo de apreensão do
mundo diverso daquele que há na noção de construção. Ingold (1996) rejeita a
idéia de que o nível deste envolvimento seja ele chamado de social ou cultural
pode ser separado de, e colocado hierarquicamente acima do nível em que seres
humanos, como organismos, se relacionam com outros componentes não-humanos de
seu ambiente. Para o autor, a única maneira em que este tipo de separação pode
ser estabelecida é desenhando uma linha entre humanidade e o resto do reino
animal fundada em uma noção de exclusividade humana essencialmente cartesiana e
que não pode se sustentar. Ingold refere-se a esta idéia do ser humano como
composto por três partes complementares (corpo, mente e cultura) como a “tese
da complementariedade” baseada nesta aliança intelectual entre os paradigmas
teóricos do neo-darwinismo na biologia, ciência cognitiva na psicologia e
teoria cultural na antropologia. Para sustentar seu argumento alternativo a esta
perspectiva Ingold (2000) fundamenta-se em três linhas de criticismo, vindas
respectivamente da biologia desenvolvimental, psicologia ecológica e teoria
antropológica da prática através de um foco unitário no organismo como um todo
– pessoa, constituindo um processo de crescimento e desenvolvimento dentro de
um ambiente e contribuindo através da sua presença e atividade com o
desenvolvimento de outros. Neste sentido, a percepção não consiste,
notadamente, na modelagem cultural de experiências recebidas pelo corpo, mas
sim em um engajamento ativo e exploratório da pessoa inteira, corpo e mente
indissolúveis, em um ambiente ricamente estruturado. Habilidades de ação e
aquelas de percepção emergem dentro de um processo de desenvolvimento do
organismo-pessoa.
Ingold (2006) pontua
que a oposição entre os domínios social e biológico da existência e relação
humanas deve ser repensada. A tese da construção cultural implica que atrás das
concepções dos povos existe um mundo físico (natureza) dentro do qual os seres humanos
figuram como meros organismos. Há um domínio de ‘realmente biológico’, relações
biológicas (a serem estudadas pelos biólogos) distinto daquele domínio de
relações biológicas ‘culturalmente perceptíveis’ (a ser estudado pelos
antropólogos sociais). Nesta concepção, os tipos genéticos referem-se, e podem
apenas referir-se, a aquelas afinidades atribuídas aos indivíduos em virtude de
sua constituição endógena antes de sua entrada em qualquer relacionamento.
Relações de tipo são vistas como inscritas na forma cultural que é imposta na
substância geneticamente pré-constituída dos organismos humanos. Para Ingold
(2006), genética tem a ver mais com coeficientes quantitativos relacionados,
não com as dinâmicas qualitativas de relações e, de qualquer modo, cada um deve
ser ligado como causa, condição ou consequência de outro, eles não são a mesma
coisa. De acordo com o autor, encontraremos suporte a esta conclusão nas idéias
de muitas pessoas não-ocidentais, que simplesmente não reconhecem nada
comparável com a distinção social/biológico como é articulada no discurso do
ocidente. Para eles, os seres humanos não são entidades de duas partes – metade
organismo e metade pessoa – mas um único, incorporado e indivisível centro de
ação e percepção, um organismo-pessoa, que nem simplesmente cresce por sua
própria conta e nem é feito como um artefato, mas é ao invés disso, crescente
através das contribuições ativas de muitas pessoas, incluindo aquelas que são
designadas como ‘pais’. Perspectiva parecida, encontramos em um terreiro de
candomblé, por exemplo, em suas múltiplas relações entre humanos e não-humanos
e entre as pessoas do terreiro. Por isso, Ingold (2006) coloca que é uma ilusão
supor que o aporte ocidental e não-ocidental podem ser comparados no mesmo
nivelamento, como alternativas de construção da realidade, já que a primazia
ontológica da perspectiva ocidental – a natureza e cultura como algo dado –
está implícita no próprio projeto que definem estas ‘culturas’ como objetos de
comparação de antemão.
Outra separação que
este aporte ocidental define é aquela entre o ‘self’ e o ser social, entre a
substância da experiência e a forma cultural que é definida sobre ela. Esta
separação fornece o fundamento ontológico para o projeto antropológico de
comparar alternativas de construção cultural da realidade psicológica (ocidente
e não-ocidente). Mais uma vez o suposto produto de uma construção cultural
reaparece como uma pré-condição. Com a noção de pessoa-agindo esta dicotomia
entre a biologia do organismo humano e a psicologia do self pode ser
abandonada. A pessoa, insiste Ingold (2006), é ambas as coisas (organismo e
self). Nesta mesma linha de raciocínio, porém pensando sobre o desenvolvimento
do significado, Robertson (2006) coloca que o significado é feito dentro/com o
corpo em sua progressão desde o nascimento até a morte. A mistura social em que
o indivíduo participa e faz significado está em constante fluxo: subjetivamente
no processo de transformar cérebros em mentes dentro/por meio dos corpos
mutáveis e objetivamente no processo em que significados são percebidos
coletivamente como história. Robertson (2006) conclui que isso implica em
reconhecer que ontogenia é um processo genuinamente histórico.
Com seu argumento,
Ingold (2006) não quer negar a existência do gene, ou sua importância como um
regulador dos processos psicológicos e de desenvolvimento. Longe de servir como
veículos de injetar significado dentro do mundo orgânico, os genes tomam seus
significados das propriedades relacionais deste mundo. Neste sentido, Ingold
(2006) coloca que a forma orgânica não é revelada ou expressa, mas originada
dentro de processos de desenvolvimento e cada sistema de desenvolvimento é
constituído como o nexo de relações entre muitos reatores ambos no/por meio do
organismo (incluindo o genoma) dentro de aspectos relevantes de seu ambiente. A
ligação entre organismo e ambiente é, em si mesma, uma propriedade de um
processo de desenvolvimento que perpassa essa ligação. Assim, conclui Ingold
(2006), o desenvolvimento do organismo é também o desenvolvimento de um
ambiente para aquele organismo. A presença e contribuição de outros indivíduos
da mesma espécie são vitais para o desenvolvimento ontogenético normal em ambos
os períodos do ciclo de vida – pré e pós-natal. Deste modo, o processo social
de tornar-se uma pessoa, o desenvolvimento destes poderes de consciência,
consciência de si e intencionalidade em que cada um de nós pode participar com
um ativo e responsivo papel de modelar nossas vidas e a de outros são partes de
um processo biológico de tornar-se um organismo. Este processo não pára em
algum ponto arbitrário em que supomos ter atingido a maturidade. Pelo
contrário, ele é carregado através do curso da vida, ou seja, ele é a vida em
si. Meu argumento é que se as práticas constituem os “organismos-pessoas” e o
mundo, as práticas afro-brasileiras constituem “organismos-pessoas” peculiares,
uma maneira diversa de existir no mundo.
Neste sentido, Ingold
(2006) coloca que as crianças não nascem com um programa inato para assimilar
diversas habilidades (andar, falar, etc). Falar, andar de bicicleta são
habilidades incorporadas, não a saída de um sistema internalizado de regras
mentais e representações. Aquelas diferenças tidas pelo discurso ocidental como
culturais, como a habilidade de falar uma língua ao invés de outra surgem –
assim como a pessoalidade surge – dentro do processo de desenvolvimento do
organismo humano em seu ambiente. Deste modo, são em si mesmas biológicas.
Pessoas que falam inglês são biologicamente distintas de pessoas que falam
japonês não porque elas possuem genes diferentes, mas porque elas se engajaram
em diferentes processos de desenvolvimento e, consequentemente, incorporaram
diferentes habilidades.
Se tornar-se uma pessoa
é algo integral ao tornar-se um organismo, então nós podemos considerar o
desenvolvimento da pessoa como um processo de socialização. Para Ingold (2006),
socialidade é uma qualidade constitutiva das relações. É nas/por meio das
relações que as pessoas se constituem no curso da vida social. O autor sugere
pensarmos nas relações sociais como formando um campo topologicamente contínuo
através do tempo. Relações vinculam séries de interações através do tempo entre
as mesmas pessoas. A essência da relação é o movimento temporal que liga interações
sucessivas como momentos de um único processo. Tempo, então, é intrínseco às
relações. A relação entre relações sociais e consciência deve ser entendida em
termos de causa e efeito. Conforme aponta Ingold (2006) esta concepção da
socialidade e a teoria da percepção direta em que ela é fundada sugere que é
possível para pessoas se engajarem com outras nos termos de uma experiência
perceptual prioritária à objetificação desta experiência em termos de
representações coletivas codificadas na linguagem e validadas por acordo
verbal. Assim, na vida social apenas pessoas agem. Noções coletivas como
culturas e sociedades não agem. Concluindo seu argumento Ingold (2006) mostra
que uma das implicações evolucionárias de sua perspectiva é que a evolução da
socialidade está amarrada com a evolução da consciência. Se ser uma pessoa é um
aspecto de ser um organismo, se a vida social é integrada à vida orgânica e se
as diferenças culturais são elas mesmas biológicas, então, certamente a
história é parte e parcela do processo de evolução. Assim, conclui o autor,
finalmente podemos encontrar espaço para a agência na teoria da evolução.
Se, por evolução nós
quisermos significar diferenciação e mudança ao longo do tempo nas formas e
capacidades dos organismos, então nós devemos certamente concordar que
habilidades do tipo das que Ingold concebe – como sendo propriedades biológicas
dos organismos – devem estar envolvidas. Para o autor, não podemos, entretanto,
atribuir esta evolução às mudanças nas frequências de genes. Ingold coloca que
ninguém vai sugerir seriamente que pessoas com diferentes bagagens de
experiências andem de formas diferentes ou falem diferentes línguas por causa
de diferenças em suas configurações genéticas. Mas, também não faz sentido,
como Ingold coloca, supor que estas diferenças são devidas a algo mais, chamado
cultura, inscrita sobre um substrato biológico generalizado. Andar e falar não
são nem operações de uma mente impregnada pela cultura, nem um corpo desenhado
pela seleção natural. Ingold aponta que elas são, ao invés disso,
empreendimentos desenvolvimentais do organismo-pessoa por inteiro, corpo e
mente, posicionado dentro de um ambiente. E para darmos conta destes
empreendimentos o que precisamos é nada menos que uma nova abordagem para
compreendermos evolução, uma perspectiva que propõe explorar não a variação e
seleção de atributos intergeracionalmente transmitidos, mas as dinâmicas de
própria-organização (self-organization) e potenciais de geração de formas dos
campos relacionais.
Ingold não nega que
mudanças cumulativas têm seu lugar na evolução ao longo de sucessivas gerações
numa população, nas frequências nas quais genes particulares são representados.
Nem nega que estas mudanças podem ser explicadas, em última instância, pela
lógica da seleção natural. O que Ingold nega, entretanto, é a existência de links entre mudanças na frequência de
genes por um lado e mudanças nas formas e capacidades dos organismos por outro,
que seja independente das dinâmicas de desenvolvimento. Na biologia evolucionária
ortodoxa este link é estabelecido no
conceito de genótipo. Ingold coloca que se removermos este conceito afastaremos
a pedra fundadora na qual todo o edifício da teoria neo-darwinista se colapsa.
Para Ingold seleção natural deve ocorrer dentro da evolução, mas não a explica.
Apenas indo além da teoria da evolução sob seleção natural e considerando as
propriedades de dinâmicas de organização-própria (self-organisation) de
sistemas desenvolvimentais é que podemos esperar descobrir, para o processo evolucionário,
as possíveis consequências destas mudanças que podem ser explicadas pela
seleção natural.
É notável a mudança de perspectiva que a concepção do autor faz sobre
a teoria da evolução. Pensar em um “organismo-pessoa” habitando um mundo e na
cultura como habilidade que é transmitida dentro dos campos de prática permite
falarmos de outra maneira sobre cultura negra e relações raciais. Permite,
ainda, inferirmos que as práticas afro-brasileiras vão constituindo outras
percepções do/no mundo, ou seja, vão constituindo as
“pessoas-negras-afro-brasileiras-afro-descendentes” – como algo que vai além da
cor da pele, configurando outras maneiras de existir. Nestas maneiras, as
dicotomias ocidentais baseadas na separação entre natureza e cultura, corpo e
mente, pessoas e coisas não são suficientes como fundamentos para a noção de
pessoa. Além disso, podemos pensar as práticas afro-brasileiras não apenas como
representação cultural do povo afro-brasileiro, mas sim como um processo de
construção de pessoas negras ou afro-brasileiras – não apenas como símbolo
identitário, mas como forma de existir, de “haver” no mundo que também se
constitui nesse processo. A pesquisa etnográfica passa a ser, então, primordial
para compreendermos como este processo ocorre e quais são suas peculiaridades
em cada contexto.
REFERÊNCIAS
ERIKSEN, Thomas .H;
NIELSEN, Finn S. História da
Antropologia. Petrópolis:
Vozes, 2007.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas.
Rio de Janeiro: LTC, 1978.
GIBSON, J. J. The
ecological approach to visual perception. Boston: Houghton Mifflin, 1979.
GOLDMAN,
M. Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos: etnografia, antropologia e
política em Ilhéus, Bahia. Revista de
Antropologia. São Paulo, v. 46, n.2, p.446-476, 2003.
INGOLD, Tim. The
Perception of the Environment. Essays in livelihood, dwelling and skill. London:
Routledge, 2000.
INGOLD, T. From the transmission of representations
to the education of attention. In. H. Whitehouse (ed.), The debated mind:
evolutionary psychology versus ethnography. Oxford: Berg, 2001, p. 113-153.
INGOLD,
Timothy. Key debates in Anthropology:
1990 debate human worlds are culturally constructed. London and New
York: Routledge, 1996.
INGOLD, T. Becoming persons: consciousness and
sociality in human evolution. In. MOORE, H.; SANDERS, T. (Orgs.). Antropology in Theory: issues in
epistemology. 2006.
JACKSON, M. Things
as they are: new directions in phenomenological anthropology. Bloomington and
Indianapolis: Indiana University Press, 1996.
LAVE, J. Cognition in practice: mind,
mathematics and culture in everyday life. Cambridge: Cambridge University
Press, 1988.
LUCE, Patrícia C. Eu Sou Angoleiro: a aprendizagem da/na
capoeira angola e suas relações com o lazer. 2010. 119f. Dissertação (mestrado)
– Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional – Universidade
Federal de Minas Gerais, Mestrado em Lazer. Belo Horizonte.
MAFRA, Clara. Transe,
criatividade e colonização política. Mesa:
Corpo, paisagem e percepção na experiência religiosa. 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, 2010.
ROBERTSON, A. F. The development of meaning: ontogeny and culture. In.
MOORE, H.; SANDERS, T. (Orgs.). Antropology
in Theory: issues in epistemology. 2006.
SAHLINS, M. Culture
and practical reason. Chicago: University of Chicago Press, 1976.
VIVEIROS DE CASTRO. Eduardo.
Perspectivismo e multinaturalismo na América Indígena. In. A Inconstância da Alma Selvagem: Cosac Naify, 2002, p.345-399.
Comentários
Postar um comentário