Repensando a questão racial e a cultura negra com Tim Ingold


Resumo
O ensaio propõe repensarmos a questão racial e a noção de cultura negra a partir da abordagem antropológica ecológica de Tim Ingold (2000). Partindo das noções de habilidade (skill) e de um “organismo-pessoa” de Ingold, o ensaio propõe uma nova abordagem teórica para produção etnográfica e para compreensão das práticas culturais afro-brasileiras.

Palavras-chave: raça; cultura negra; habilidade; práticas culturais afro-brasileiras.


 A complexidade das relações raciais na sociedade brasileira foi construída com base no processo de escravização de africanos e de seus descendentes no Brasil – processo que, por sua vez, estava ancorado em determinada concepção de “raça” que colocava os sujeitos negros em condição de marginalizados. Esta mesma concepção de “raça” predominante no discurso político e acadêmico europeu da época concebia determinada perspectiva de humano e da condição de pessoa que excluía a diferença (no caso os negros africanos e seus descendentes) ao vetar sua inclusão em par de igualdades com os europeus na condição de humanidade. Assim, o racismo científico explicava as diferenças culturais como inferioridade racial (biológica). Porém, mesmo na contemporaneidade – quando os estudos genéticos já comprovam que não existem raças diferentes entre a humanidade, apenas a raça humana e, ainda, que pode haver mais diferenças genéticas entre dois brancos ou dois negros do que entre um negro e um branco – o termo “raça” ainda prevalece entranhado no tecido social e nas práticas racistas como marcador de inferioridades. Isto porque o racismo é aprendido no convívio diário social desde a primeira infância. Neste ensaio, procuro pensar o racismo que prevalece em nossa sociedade partindo de um diálogo com a antropologia. O diálogo com a antropologia não é casual aqui. A história da antropologia está indissociavelmente ligada à busca pelo conhecimento de nossa origem, isto é, das formas mais simples de organização social e de mentalidade até as formas mais complexas das nossas sociedades.
No século XIX, a etnologia se aderiu à teoria do monogenismo enquanto a antropologia física defendia o poligenismo. Foi nesse período que surgiram duas linhas de pensamento teórico entre os etnólogos acerca da origem do ser humano: o evolucionismo e o difusionismo. Como o evolucionismo foi a base para o surgimento do racismo científico, explicarei em linhas gerais qual era o seu argumento. O evolucionismo foi influenciado pela teoria da seleção natural de Charles Darwin que se consistia na tentativa de explicar a diversidade de espécies de seres vivos através da descendência com modificação. No entanto, a teoria de evolução empregada pelos etnólogos deve mais a outro autor, o sociólogo e filósofo Herbert Spencer, cujo conceito de evolução difere em importantes aspectos daquela perspectiva desenvolvida por Darwin. Mesmo assim, posteriormente, a abordagem spenceriana ficou conhecida como ‘darwinismo social’.
Os etnólogos evolucionistas consideravam a sociedade europeia da época como o apogeu do processo evolucionário. Portanto, este pensamento estava inserido em uma visão etnocêntrica que coloca a organização sócio-político-econômica europeia como grau máximo de civilização. Entretanto, mesmo considerando esse pressuposto, a antropologia cultural da época não se tornou uma pseudociência racista.
A tese evolucionista apoiava o princípio da unidade psíquica da humanidade de Adolf Bastian, e defendia a existência de apenas uma espécie humana idêntica inicial (monogenismo), que se desenvolve tanto em suas formas técnico-econômicas como nos seus aspectos sociais e culturais. A evolução ocorre em ritmos desiguais, de acordo com as populações e localizações geográficas, passando pelas mesmas etapas, para alcançar o nível final de "civilização". Assim, a proposição básica era de que o desenvolvimento humano seguiu estágios. Em cada etapa a experiência humana acumulava, levando a formação cultural cada vez mais avançada. Esta ideia - de que a experiência humana acumula - foi inspirada no raciocínio empírico de John Locke e outros filósofos do ‘empirismo’ do século XVIII.
Dois argumentos davam suporte ao evolucionismo: movimento unilinear e o determinismo tecnológico ou social. Segundo a tese evolucionista, haveria um caminho só a ser trilhado por todas as sociedades, numa trajetória vista como obrigatória, seguindo uma única linha ascendente, de estágios mais simples aos mais complexos (do mais selvagem ao mais civilizado). O determinismo social e cultural defende que o indivíduo é determinado pelo meio sócio-cultural, portanto define o estágio de maior evolução de uma sociedade pelo grau de complexidade de sua tecnologia; já o determinismo biológico defende que a biologia é que determina o indivíduo, implicitamente sendo os sujeitos de pele mais alva, os mais evoluídos. Os evolucionistas culturais clássicos não pregaram esta postura abertamente, sendo os antropólogos físicos e os biólogos do século XIX os maiores defensores desse racismo científico.
Não se pode generalizar e atribuir as características acima a todos os autores que foram adeptos a essa corrente. Apesar da maioria dos pensadores evolucionistas terem trabalhado em gabinetes, um dos mais conhecidos - Lewis H. Morgan - realizou pesquisas com algumas tribos dos Estados Unidos. Morgan compreendeu que grande parte da complexidade da cultura nativa americana em pouco tempo seria destruída como consequência do fluxo de europeus, por isso considerava tarefa crucial documentar a cultura tradicional e a vida social desses nativos. Outros pensadores importantes para o evolucionismo cultural são: Edward Burnett Tylor, considerado o pai do conceito moderno de cultura; John Lubbock, primeiro a rejeitar a cronologia bíblica que dizia que o mundo teria uns meros seis mil anos: introduziu os termos paleolítico e neolítico, Velha e Nova Idades da pedra, hoje reconhecidas como períodos-chave do passado pré-histórico.
O método científico usado na antropologia (etnologia) era a comparação de dados, retirados das sociedades e contextos sociais e classificados de acordo com o tipo (religioso, de parentesco, etc.) determinado pelo pesquisador. Os dados coletados lhe serviriam para comparar as sociedades entre si, fixando-as num estágio específico, inscrevendo estas experiências numa abordagem linear, diacrônica, de modo que todo costume representasse uma etapa numa escala evolutiva. Quando nos remetemos às bases do racismo científico, encontramos também na perspectiva antropológica comparativa de tipos humanos em suas diferentes características hereditárias o seu argumento principal para justificar a diferença em termos de uma “raça” melhor ou pior. Esta perspectiva potencializou e migrou para o nível social e cultural aquilo que a teoria eugenista de Francis Galton (1822-1911) propunha em nível biológico: o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou mentalmente. Em outras palavras, melhoramento genético. Esta concepção, em conjunto com a perspectiva antropológica comparativa de tipos humanos, culminou com uma ideologia da pureza racial – que muito contribuiu com o processo escravocrata no Brasil e com a própria formação da noção de povo brasileiro e, posteriormente, de uma nação mestiça possível. As teorias antropológicas evolucionistas e eugenistas se apresentavam posteriormente como principais influências, inclusive para os teóricos brasileiros, com perspectivas a favor (Nina Rodrigues ou Oliveira Vianna, por exemplo) ou tentativas teóricas propondo modelos alternativos possíveis, aparentemente contra o racismo (Gilberto Freyre, por exemplo).
Voltando à prevalência do racismo em nossa sociedade, pretendo demonstrar brevemente neste ensaio, o que, a meu ver, é um dos principais problemas que contribuem para esta prevalência: trata-se do fato de que, muitas vezes, quando há um debate intelectual ou político sobre a questão, eles giram em torno de possíveis soluções para o problema, mas partindo de uma discussão que já toma como dadas as noções de ‘sociedade’, ‘evolução’, ‘cultura’, ‘humano’. Isso não quer dizer que todas as discussões relacionadas ao tema deveriam ser relativizadas ao ponto de chegarmos a um niilismo. Isso significa que enquanto tomarmos os conceitos e perspectivas como “dados” de uma ideologia que foi a criadora do racismo para tentarmos solucioná-lo, sem antes olharmos para dentro das práticas sociais afro-descendentes ou afro-brasileiras e a maneira como as pessoas vão se constituindo e constituindo seus mundos nestas práticas, perderemos a chance de tentar compreender quais são as perspectivas e conceitos que de fato operam no cotidiano das pessoas e, a partir disto, que mundo estas pessoas constituem e como elas se constituem em suas relações. Daí a importância da abordagem antropológica que procura buscar conceber as questões da ‘diferença’ partindo de um diálogo com o ponto de vista retirado ‘de dentro’ da diferença. O que sugiro é que “ser negro” pode ir além de uma localização na escala evolutiva social ou biológica racista, sendo mais do que uma identidade social imposta ou conquistada a partir dos valores hegemônicos racistas, mas se tratar de uma maneira peculiar de existir no mundo e, ainda, que é nas suas práticas cotidianas que as pessoas vão se constituindo de maneira peculiar.
Discutir a questão racial partindo, antes, da perspectiva do que é um ser humano, por exemplo, tomados de ‘dentro’ das práticas sociais dos sujeitos vítimas do racismo em nossa sociedade pode proporcionar outra maneira de abordagem das próprias políticas públicas e do debate intelectual sobre o racismo.
Esta postura teórico-metodológica é conhecida atualmente em antropologia como uma abordagem “simetrizante”. Isso significa buscar, no trabalho de campo e na análise dos dados, conceber os termos dos “nativos” de igual para igual aos do antropólogo, ou seja, enquanto conceitos (GOLDMAN, 2003). Buscar trazer à luz e respeitar as diferentes ontologias dos “povos do mundo”, em vez de reduzi-las a “invenções” e “imaginações” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002). Esta abertura epistemológica que visa aceitar a possibilidade e compreender a diferença ontológica não toma de antemão as dicotomias ocidentais como aquelas derivadas das separações natureza versus cultura; mente versus corpo; material versus imaterial; real versus imaginário para compreensão destes outros mundos possíveis. A meu ver, adotar esta perspectiva é abrir outra linha de raciocínio para pensarmos a questão racial em nossa sociedade.
Para exemplificar o que estou propondo, tomarei como ponto de partida para este ensaio, a noção de cultura como “habilidade” (skill) do antropólogo Tim Ingold. Mostrarei como uma abordagem que não pressupõe as dicotomias ocidentais como natureza versus cultura, por exemplo, pode ajudar a repensar também as práticas sociais afro-brasileiras ou afro-descendentes e, por conseguinte, a maneira de discutir as questões raciais partindo de outra concepção sobre como pessoas e mundos se constituem.   
Partindo de um compromisso vital com a sociedade caçadora coletora onde desenvolveu sua pesquisa de doutorado (o povo Skolt Saami, na Finlândia) Ingold (2000) faz questão de sugerir que percepções específicas das sociedades caçadoras coletoras também podem ser encontradas entre grupos e pessoas em nossa sociedade. Isto porque, a seu ver, ainda que a ciência ocidental insista em criar um mundo segmentado e dual (natureza/cultura, corpo/alma, selvagem/civilizado, mulher/homem, fantasia/inteligência), sempre será constrangida pelo retorno de “algo”. Conforme aponta Mafra (2010, p. 2), “o primado do ser sobre o conhecer; da ontologia sobre a epistemologia; da via sobre o pensamento, que está na fundação das sociedades caçadoras coletoras, deveria ser, segundo Ingold, o fundamento da toda a sociedade humana que queira sustentar um horizonte de recriação”. Assim, Ingold encaminha seu projeto de revisão das ciências a partir de sua subordinação a um conhecimento gerado no interior das sociedades caçadoras coletoras. “Resgatando termos que estão disponíveis (como prioridade ou como resíduo) em várias sociedades caçadoras coletoras e na sociedade ocidental para falar do vivido (linha, trilha, buscar caminho, movimento, habilidade, região), Ingold se propõe a reanimar o pensamento ocidental reinserindo o animado (ser vivo) na base da ciência (o que inclui a antropologia)” (MAFRA, 2010, p. 2).
Na avaliação de Ingold a ciência moderna não foi capaz de desenvolver um conhecimento sintonizado com o processo de vida. Como coloca Mafra (2010, p. 14), esta posição que poderia ser reconhecida como uma retomada da tese do “bom selvagem” ou em posição utópica e escapista diante das condições atuais de vida, é antes, como define Ingold, um projeto de revisão da antropologia como uma disciplina que colhe e ensina algo sobre o mundo em processo.        
A cultura é como um texto antigo, com “várias camadas de significados”, muitas “passagens obscuras”, vários sentidos implícitos e não revelados. Esta é a imagem cunhada por Clifford Geertz (1978) que se tornará persistente na antropologia moderna. “Quando Ingold ouve os nativos contarem suas histórias dificilmente lhe ocorre a imagem de um texto antigo. O contar histórias se parece mais, segundo ele, ao exercício de traçar uma linha: algo que não pede superfície, não indica verso nem reverso, que finaliza em crescendo.” (MAFRA, 2010, p. 3). As histórias dizem respeito a pessoas que interagem com o mundo que se oferece como textura dentro da qual a vida é vivida. A relação não se dá entre uma coisa e outra – uma pessoa “aqui” e um ambiente “lá”, uma pessoa “aqui” e outra pessoa “acolá”. Na trama das narrativas a história das pessoas se confunde com a história do lugar e com a textura do mundo. “Na síntese que Ingold nos oferece: o organismo é constituído em um campo relacional, formando uma rede de malha fina que constitui as pessoas (e não apenas que as sustenta)”. (MAFRA, 2010, p. 3) O diferencial, segundo Ingold, é que entre os povos caçadores coletores, aos quais se atribui o animismo, os organismos não são percebidos como unidades encapsuladas que criam ligações circundando as partes. Esta imagem faz parte da inversão moderna: a crença em uma fronteira entre o dentro e fora do organismo, cujo perímetro é circundado por um mundo – o ambiente – com o qual o organismo se relaciona de acordo com sua natureza. Há assim, uma diferença monumental entre ocupar o mundo como superfície ou substrato inerte e habitar o mundo relacionando-se com ele. Neste último sentido, é preciso levar em conta que as pessoas estão continuamente desenrolando suas vidas de dentro da própria vida e, neste mesmo desenrolar, continuamente tecem um mundo que nunca está pronto.
Muitas das práticas culturais afro-brasileiras contemporâneas possuem esta característica que desafia a todo instante esta “imagem de inversão moderna entre o dentro e o fora do organismo” que Ingold critica. Grupos de capoeira, maracatus, congadas, samba, reggae, funk, candomblés, dança-afro, entre outros, apontam para uma maneira de construção do ser humano por inteiro, como um “organismo-pessoa” habitando o mundo ao mesmo tempo em que vão contribuindo para sua constituição. É por isso que não há, por exemplo, capoeirista sem grupo de capoeira ou grupo de capoeira sem capoeirista e, também, que a prática da capoeira vai constituindo outra maneira de perceber que modifica a pessoa e o mundo dela. (LUCE, 2010).
Conforme aponta Mafra (2010, p. 5), para Ingold, o reconhecimento deste mundo compartilhado entre os seres vivos, algo mais abrangente e consistente que a “imposição arbitrária de um enquadramento de sentido sobre a realidade”, deve estar na base da boa reflexão antropológica. Com a noção de habilidade (skill), Ingold ajuda a desestabilizar uma ideia que permanecia implícita no trabalho de tradução cultural construtivista: conhecer uma cultura implica na descrição de normas e valores a partir da qual opera (sistema de símbolos para). Esta expectativa se apoia no pressuposto de que o conhecimento cultural se realiza majoritariamente por especulação, no compartilhamento de um sistema simbólico, que em geral, reflete um mundo “simbólico publicamente compartilhado” – em uma remissão à linguagem. É justamente sob este ponto de vista que as discussões sobre a “cultura negra” ou sobre os “valores simbólicos do ser negro” se embasam e que estou propondo repensarmos aqui.
Para Ingold (2001) a habilidade é o fundamento de todo o conhecimento desenvolvido na história de vida de uma pessoa e não é o resultado de uma transmissão de informação, mas uma redescoberta guiada. Fundamentado em Jean Lave (1988), Ingold afirma que os movimentos e seus ajustamentos às diferentes situações não são um dispositivo dentro da cabeça, mas referem-se à pessoa toda no mundo. Neste sentido e fundamentando-se em James Gibson (1979), Ingold (2001) conclui que a contribuição que cada geração dá para os seus sucessores equivale a uma “educação da atenção”, uma questão não de enculturação, mas sim de habilitação (enskillment). Assumir este ponto de vista sobre o conhecimento – que inclusive está mais próximo da própria maneira em que os sujeitos se relacionam nas práticas afro-brasileiras – pode ser uma nova maneira de partir para uma discussão sobre relações raciais, cultura negra ou constituição do ser negro.
Ingold (2000) aponta que nos últimos anos a biologia neo-darwinista, a ciência cognitiva e a psicolinguística conspiraram para produzir uma abordagem extremamente poderosa para compreensão das relações entre evolução humana, tecnologia e linguagem e inteligência. Argumenta-se que as capacidades linguísticas e intelectuais, comum a todos os seres humanos, são construídas em propriedades embutidas da mente cuja arquitetura básica evoluiu através de um processo de variação sob seleção natural. Alguns tópicos remanescentes para debate questionam se as pressões seletivas que guiam a evolução dessas capacidades se instalam no domínio social de relações entre indivíduos da mesma espécie ou no domínio técnico de adaptação ao ambiente não-humano, e se, - ou até que ponto tanto na filogênese quanto na ontogênese – as capacidades técnicas são dissociadas das capacidades linguísticas. Ingold (2000) coloca que esta perspectiva é baseada em uma alegação ou afirmação para a supremacia da razão humana em que a inteligência é a faculdade da razão, a linguagem seu veículo e a tecnologia os meios pelos quais uma compreensão racional do mundo externo é voltada para constituir o benefício humano. Como alternativa Ingold (2000) propõe que não há nada como a tecnologia ou linguagem, ou a inteligência pelo menos nas sociedades pré-modernas ou não-ocidentais e sugere examinar a relação, na evolução humana, não entre tecnologia, linguagem e inteligência, mas entre artesanato, música e imaginação. Com isso o autor não quer sugerir que em outras sociedades as pessoas não fazem uso comum de ferramentas nas atividades diárias e que elas não se comprometam umas com as outras em idiomas verbais da fala, ou que estas e outras atividades não representam formas criativas de lidar no mundo. A preocupação do autor é chamar a atenção sobre o que significa dizer que o uso de ferramentas diário é uma instanciação comportamental da tecnologia, ou o diálogo falado é a instanciação da linguagem, ou que a atividade criativa é a instanciação da inteligência, mostrando que mesmo em nossa sociedade, na qual essas proposições formam uma parte da sabedoria recebida, elas não são imediatamente ou obviamente confirmadas na experiência. Neste ponto, poderíamos pensar com Ingold em uma nova perspectiva para abordar a ‘oralidade’, a ‘musicalidade’ e a ‘performance’ contidas nas práticas afro-brasileiras, por exemplo, com um novo argumento científico de embasamento destes tipos de conhecimento que não são aprendidos e executados a partir de uma concepção que separa mente e corpo, por exemplo. O que sugiro aqui é que tentemos discutir cultura negra ou relações raciais a partir da perspectiva que Ingold aponta para pensarmos os seres vivos e o mundo.
Desenvolvendo esta mesma crítica em relação às abordagens biológicas e construtivistas para explicação de nossa ontogênese, Ingold (2006), neste outro trabalho, começa seu argumento discorrendo sobre a seguinte questão: Quais são as diferenças entre a sociedade humana e as sociedades de outros animais? Ingold (2006) problematiza o dualismo sujeito-objeto presente nas perspectivas de biólogos e antropólogos ocidentais que pressupõe um domínio subjetivo referente à mente e ao significado e um domínio objetivo, composto por matéria e substância. Para o autor, muitos biólogos da corrente da ecologia evolucionária moderna assumem haver uma continuidade evolutiva própria à socialidade de não-humanos e humanos. Os padrões de comportamento entre indivíduos de uma mesma espécie são entendidos como a expressão fenotípica de disposições herdadas e geneticamente codificadas, estabelecidas no curso da filogenia evolucionária por meio do mecanismo de variação sob seleção natural. Assim, socialidade é tida como uma propriedade individual embutida, que é expressa apenas com a presença de outros indivíduos da mesma espécie. A sociedade não é entendida como externa ao animal e sim carregada por ele biologicamente por meio de seus gens. Os antropólogos sociais, por sua vez, rejeitam estes imperativos biológicos, principalmente relacionados aos seres humanos. Conforme aponta Ingold (2006), para eles, as relações sociais pressupõem a emergência de regras incorporadas no indivíduo a partir das instituições. Estas regras dependeriam de um modo humanamente distinto de reflexiva auto-consciência, que é tido como a pré-condição para a ‘cultura’ em seu sentido etnográfico abrangente. O fenômeno ‘sociocultural’ é tido, conforme aponta, por exemplo o modelo de Sahlins (1976), como composto e organizado por significado simbólico. Deste modo, a essência da socialidade não está em interação padronizada, mas em sua constituição dentro de uma mistura de símbolos significantes.
Mais uma vez, buscando dissolver o dualismo que perpassa ambas as versões sobre o ser humano, Ingold propõe que levemos a sério o que outros povos (bem como o que uma persistente contra-corrente dentro da filosofia ocidental) têm tentado nos contar. Isso significa considerar que os seres humanos não são indivíduos isolados que interagem com seu entorno. Pelo contrário, os seres humanos são pessoas no mundo de envolvimento intersubjetivo e significativo com outras pessoas, são também seres sociais. Assim, o que estes outros povos sugerem não é uma construção do mundo alternativa, mas a possibilidade de um modo de apreensão do mundo diverso daquele que há na noção de construção. Ingold (1996) rejeita a idéia de que o nível deste envolvimento seja ele chamado de social ou cultural pode ser separado de, e colocado hierarquicamente acima do nível em que seres humanos, como organismos, se relacionam com outros componentes não-humanos de seu ambiente. Para o autor, a única maneira em que este tipo de separação pode ser estabelecida é desenhando uma linha entre humanidade e o resto do reino animal fundada em uma noção de exclusividade humana essencialmente cartesiana e que não pode se sustentar. Ingold refere-se a esta idéia do ser humano como composto por três partes complementares (corpo, mente e cultura) como a “tese da complementariedade” baseada nesta aliança intelectual entre os paradigmas teóricos do neo-darwinismo na biologia, ciência cognitiva na psicologia e teoria cultural na antropologia. Para sustentar seu argumento alternativo a esta perspectiva Ingold (2000) fundamenta-se em três linhas de criticismo, vindas respectivamente da biologia desenvolvimental, psicologia ecológica e teoria antropológica da prática através de um foco unitário no organismo como um todo – pessoa, constituindo um processo de crescimento e desenvolvimento dentro de um ambiente e contribuindo através da sua presença e atividade com o desenvolvimento de outros. Neste sentido, a percepção não consiste, notadamente, na modelagem cultural de experiências recebidas pelo corpo, mas sim em um engajamento ativo e exploratório da pessoa inteira, corpo e mente indissolúveis, em um ambiente ricamente estruturado. Habilidades de ação e aquelas de percepção emergem dentro de um processo de desenvolvimento do organismo-pessoa.
Ingold (2006) pontua que a oposição entre os domínios social e biológico da existência e relação humanas deve ser repensada. A tese da construção cultural implica que atrás das concepções dos povos existe um mundo físico (natureza) dentro do qual os seres humanos figuram como meros organismos. Há um domínio de ‘realmente biológico’, relações biológicas (a serem estudadas pelos biólogos) distinto daquele domínio de relações biológicas ‘culturalmente perceptíveis’ (a ser estudado pelos antropólogos sociais). Nesta concepção, os tipos genéticos referem-se, e podem apenas referir-se, a aquelas afinidades atribuídas aos indivíduos em virtude de sua constituição endógena antes de sua entrada em qualquer relacionamento. Relações de tipo são vistas como inscritas na forma cultural que é imposta na substância geneticamente pré-constituída dos organismos humanos. Para Ingold (2006), genética tem a ver mais com coeficientes quantitativos relacionados, não com as dinâmicas qualitativas de relações e, de qualquer modo, cada um deve ser ligado como causa, condição ou consequência de outro, eles não são a mesma coisa. De acordo com o autor, encontraremos suporte a esta conclusão nas idéias de muitas pessoas não-ocidentais, que simplesmente não reconhecem nada comparável com a distinção social/biológico como é articulada no discurso do ocidente. Para eles, os seres humanos não são entidades de duas partes – metade organismo e metade pessoa – mas um único, incorporado e indivisível centro de ação e percepção, um organismo-pessoa, que nem simplesmente cresce por sua própria conta e nem é feito como um artefato, mas é ao invés disso, crescente através das contribuições ativas de muitas pessoas, incluindo aquelas que são designadas como ‘pais’. Perspectiva parecida, encontramos em um terreiro de candomblé, por exemplo, em suas múltiplas relações entre humanos e não-humanos e entre as pessoas do terreiro. Por isso, Ingold (2006) coloca que é uma ilusão supor que o aporte ocidental e não-ocidental podem ser comparados no mesmo nivelamento, como alternativas de construção da realidade, já que a primazia ontológica da perspectiva ocidental – a natureza e cultura como algo dado – está implícita no próprio projeto que definem estas ‘culturas’ como objetos de comparação de antemão.
Outra separação que este aporte ocidental define é aquela entre o ‘self’ e o ser social, entre a substância da experiência e a forma cultural que é definida sobre ela. Esta separação fornece o fundamento ontológico para o projeto antropológico de comparar alternativas de construção cultural da realidade psicológica (ocidente e não-ocidente). Mais uma vez o suposto produto de uma construção cultural reaparece como uma pré-condição. Com a noção de pessoa-agindo esta dicotomia entre a biologia do organismo humano e a psicologia do self pode ser abandonada. A pessoa, insiste Ingold (2006), é ambas as coisas (organismo e self). Nesta mesma linha de raciocínio, porém pensando sobre o desenvolvimento do significado, Robertson (2006) coloca que o significado é feito dentro/com o corpo em sua progressão desde o nascimento até a morte. A mistura social em que o indivíduo participa e faz significado está em constante fluxo: subjetivamente no processo de transformar cérebros em mentes dentro/por meio dos corpos mutáveis e objetivamente no processo em que significados são percebidos coletivamente como história. Robertson (2006) conclui que isso implica em reconhecer que ontogenia é um processo genuinamente histórico.
Com seu argumento, Ingold (2006) não quer negar a existência do gene, ou sua importância como um regulador dos processos psicológicos e de desenvolvimento. Longe de servir como veículos de injetar significado dentro do mundo orgânico, os genes tomam seus significados das propriedades relacionais deste mundo. Neste sentido, Ingold (2006) coloca que a forma orgânica não é revelada ou expressa, mas originada dentro de processos de desenvolvimento e cada sistema de desenvolvimento é constituído como o nexo de relações entre muitos reatores ambos no/por meio do organismo (incluindo o genoma) dentro de aspectos relevantes de seu ambiente. A ligação entre organismo e ambiente é, em si mesma, uma propriedade de um processo de desenvolvimento que perpassa essa ligação. Assim, conclui Ingold (2006), o desenvolvimento do organismo é também o desenvolvimento de um ambiente para aquele organismo. A presença e contribuição de outros indivíduos da mesma espécie são vitais para o desenvolvimento ontogenético normal em ambos os períodos do ciclo de vida – pré e pós-natal. Deste modo, o processo social de tornar-se uma pessoa, o desenvolvimento destes poderes de consciência, consciência de si e intencionalidade em que cada um de nós pode participar com um ativo e responsivo papel de modelar nossas vidas e a de outros são partes de um processo biológico de tornar-se um organismo. Este processo não pára em algum ponto arbitrário em que supomos ter atingido a maturidade. Pelo contrário, ele é carregado através do curso da vida, ou seja, ele é a vida em si. Meu argumento é que se as práticas constituem os “organismos-pessoas” e o mundo, as práticas afro-brasileiras constituem “organismos-pessoas” peculiares, uma maneira diversa de existir no mundo.
Neste sentido, Ingold (2006) coloca que as crianças não nascem com um programa inato para assimilar diversas habilidades (andar, falar, etc). Falar, andar de bicicleta são habilidades incorporadas, não a saída de um sistema internalizado de regras mentais e representações. Aquelas diferenças tidas pelo discurso ocidental como culturais, como a habilidade de falar uma língua ao invés de outra surgem – assim como a pessoalidade surge – dentro do processo de desenvolvimento do organismo humano em seu ambiente. Deste modo, são em si mesmas biológicas. Pessoas que falam inglês são biologicamente distintas de pessoas que falam japonês não porque elas possuem genes diferentes, mas porque elas se engajaram em diferentes processos de desenvolvimento e, consequentemente, incorporaram diferentes habilidades.
Se tornar-se uma pessoa é algo integral ao tornar-se um organismo, então nós podemos considerar o desenvolvimento da pessoa como um processo de socialização. Para Ingold (2006), socialidade é uma qualidade constitutiva das relações. É nas/por meio das relações que as pessoas se constituem no curso da vida social. O autor sugere pensarmos nas relações sociais como formando um campo topologicamente contínuo através do tempo. Relações vinculam séries de interações através do tempo entre as mesmas pessoas. A essência da relação é o movimento temporal que liga interações sucessivas como momentos de um único processo. Tempo, então, é intrínseco às relações. A relação entre relações sociais e consciência deve ser entendida em termos de causa e efeito. Conforme aponta Ingold (2006) esta concepção da socialidade e a teoria da percepção direta em que ela é fundada sugere que é possível para pessoas se engajarem com outras nos termos de uma experiência perceptual prioritária à objetificação desta experiência em termos de representações coletivas codificadas na linguagem e validadas por acordo verbal. Assim, na vida social apenas pessoas agem. Noções coletivas como culturas e sociedades não agem. Concluindo seu argumento Ingold (2006) mostra que uma das implicações evolucionárias de sua perspectiva é que a evolução da socialidade está amarrada com a evolução da consciência. Se ser uma pessoa é um aspecto de ser um organismo, se a vida social é integrada à vida orgânica e se as diferenças culturais são elas mesmas biológicas, então, certamente a história é parte e parcela do processo de evolução. Assim, conclui o autor, finalmente podemos encontrar espaço para a agência na teoria da evolução.
Se, por evolução nós quisermos significar diferenciação e mudança ao longo do tempo nas formas e capacidades dos organismos, então nós devemos certamente concordar que habilidades do tipo das que Ingold concebe – como sendo propriedades biológicas dos organismos – devem estar envolvidas. Para o autor, não podemos, entretanto, atribuir esta evolução às mudanças nas frequências de genes. Ingold coloca que ninguém vai sugerir seriamente que pessoas com diferentes bagagens de experiências andem de formas diferentes ou falem diferentes línguas por causa de diferenças em suas configurações genéticas. Mas, também não faz sentido, como Ingold coloca, supor que estas diferenças são devidas a algo mais, chamado cultura, inscrita sobre um substrato biológico generalizado. Andar e falar não são nem operações de uma mente impregnada pela cultura, nem um corpo desenhado pela seleção natural. Ingold aponta que elas são, ao invés disso, empreendimentos desenvolvimentais do organismo-pessoa por inteiro, corpo e mente, posicionado dentro de um ambiente. E para darmos conta destes empreendimentos o que precisamos é nada menos que uma nova abordagem para compreendermos evolução, uma perspectiva que propõe explorar não a variação e seleção de atributos intergeracionalmente transmitidos, mas as dinâmicas de própria-organização (self-organization) e potenciais de geração de formas dos campos relacionais.
Ingold não nega que mudanças cumulativas têm seu lugar na evolução ao longo de sucessivas gerações numa população, nas frequências nas quais genes particulares são representados. Nem nega que estas mudanças podem ser explicadas, em última instância, pela lógica da seleção natural. O que Ingold nega, entretanto, é a existência de links entre mudanças na frequência de genes por um lado e mudanças nas formas e capacidades dos organismos por outro, que seja independente das dinâmicas de desenvolvimento. Na biologia evolucionária ortodoxa este link é estabelecido no conceito de genótipo. Ingold coloca que se removermos este conceito afastaremos a pedra fundadora na qual todo o edifício da teoria neo-darwinista se colapsa. Para Ingold seleção natural deve ocorrer dentro da evolução, mas não a explica. Apenas indo além da teoria da evolução sob seleção natural e considerando as propriedades de dinâmicas de organização-própria (self-organisation) de sistemas desenvolvimentais é que podemos esperar descobrir, para o processo evolucionário, as possíveis consequências destas mudanças que podem ser explicadas pela seleção natural.
É notável a mudança de perspectiva que a concepção do autor faz sobre a teoria da evolução. Pensar em um “organismo-pessoa” habitando um mundo e na cultura como habilidade que é transmitida dentro dos campos de prática permite falarmos de outra maneira sobre cultura negra e relações raciais. Permite, ainda, inferirmos que as práticas afro-brasileiras vão constituindo outras percepções do/no mundo, ou seja, vão constituindo as “pessoas-negras-afro-brasileiras-afro-descendentes” – como algo que vai além da cor da pele, configurando outras maneiras de existir. Nestas maneiras, as dicotomias ocidentais baseadas na separação entre natureza e cultura, corpo e mente, pessoas e coisas não são suficientes como fundamentos para a noção de pessoa. Além disso, podemos pensar as práticas afro-brasileiras não apenas como representação cultural do povo afro-brasileiro, mas sim como um processo de construção de pessoas negras ou afro-brasileiras – não apenas como símbolo identitário, mas como forma de existir, de “haver” no mundo que também se constitui nesse processo. A pesquisa etnográfica passa a ser, então, primordial para compreendermos como este processo ocorre e quais são suas peculiaridades em cada contexto.


REFERÊNCIAS
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