"Eu Sou Angoleiro": um laboratório da percepção
*Artigo apresentado na 3ª Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia (UNB) - Brasília - 29 de setembro a 1 de outubro de 2011.
Resumo
O artigo discute
a prática da capoeira angola como processo de habilitação que constitui as
pessoas e os ambientes aos quais estão engajadas. Para isto, foca a abordagem antropológica
desenvolvida por Tim Ingold (2000/2001), principalmente suas concepções de
habilidade e percepção em diálogo com estudos sobre cinestesia no âmbito da
dança contemporânea e com o trabalho de campo desenvolvido no grupo de capoeira
angola “Eu Sou Angoleiro” de Belo Horizonte, Minas Gerais, no período de maio a
outubro de 2010 – referente à pesquisa realizada para o Mestrado em Lazer da
Universidade Federal de Minas Gerais. A pesquisa concluiu que uma técnica
corporal não pode ser considerada apenas um meio para se chegar a um fim já que
se trata de um modo peculiar de constituição de pessoas em sua totalidade. Este
modo peculiar de técnica constitui, na prática cotidiana, o que os praticantes
de capoeira angola (angoleiros) concebem como tradição e trata-se de um
saber-fazer que tem o movimento como base de uma ontologia.
Palavras-chave: capoeira angola; habilidade;
movimento.
Abstract
The
article discusses the practice of capoeira angola as a process
of enskillment that constitute people
and environments to which they are engaged. For
that, focuses on the anthropological approach developed by
Tim Ingold (2000), especially their conceptions of skill
and perception in dialogue with studies
of kinesthesia in contemporary dance and
the fieldwork carried out in the group of capoeira
angola "Eu Sou Angoleiro" of Belo
Horizonte, Minas Gerais, in the period from May to
October 2010 - referring to research conducted for the Master
in Leisure at the Federal University of
Minas Gerais. The research concluded that a body technique cannot
be considered merely a means to an end, as it
is a specific way to constitute people in its
entirety. This so peculiar technique constitutes in everyday
practice which practitioners of capoeira angola (angoleiros) conceived as
tradition and it is a know-how that has the movement
as base of an ontology.
Keywords: Capoeira Angola; skill; movement.
INTRODUÇÃO
Este artigo mostra como os praticantes de capoeira
angola tratam a pessoa em sua totalidade como uma entidade em contínuo estado
de criação através da ação de outras pessoas, constituindo o ambiente. Para
isto, o artigo descreve como o organismo-pessoa angoleiro é formado e é feito por intervenção externa durante um
contínuo processo de habilitação
(INGOLD, 2000). Este ‘fazer’ inclui o tratamento do corpo através de diversas
técnicas: de movimentos corporais do jogo de capoeira angola; de execução dos
ritmos dos instrumentos musicais e de canto e suas relações com as letras das
cantigas; de atuação das entidades espirituais; os saberes do mestre de
capoeira angola, enfim, os fundamentos da
capoeira angola – o que os angoleiros concebem como tradição.
Através de uma análise destas técnicas de
constituição da pessoa no processo de aprendizagem da/na capoeira angola, o
artigo revela como o desenvolvimento físico, mental, espiritual e emocional
estão interligados no pensamento angoleiro,
constituindo suas habilidades ou as características do organismo-pessoa
(INGOLD, 2000). Esta perspectiva é constituída por meio das/nas práticas de
aprendizagem da capoeira angola. Em particular, o artigo mostra como na epistemologia
angoleira o conhecimento se acumula e
incorpora-se ao corpo ao longo da participação da/na prática da capoeira
angola, na medida em que este entra em contato controlado com aspectos do
ambiente e suas formas materiais, verbais, rítmicas e espirituais. Este
conhecimento incorporado é feito da relação entre o organismo da pessoa e suas
habilidades de afinação de seus movimentos (variações de sua posição) em
relação aos diversos constituintes do ambiente: dos corpos de outras pessoas,
das entidades espirituais (entendidas como pessoas, atuantes), dos instrumentos
musicais, do ritmo, das cantigas – de forma que seu organismo consiga captar a
‘vibração’ (velocidade, aceleração e deslocamento) destas diversas fontes
constituintes do ambiente, relacionando-se em um constante diálogo de
movimentações com elas.
As técnicas
de constituição do angoleiro,
portanto, vão constituindo cotidianamente pessoas capazes de perceber as
vibrações do/no ambiente e responderem a elas com um movimento de continuidade,
mantendo, portanto, uma atitude de manutenção de um constante fluxo dialógico como
um modo de existir no mundo. De fato, a epistemologia dos angoleiros estabelece uma série de relações entre matéria exterior
e certos tipos de técnicas, sua transformação em conhecimento no corpo e a
exteriorização deste conhecimento em ações importantes (como o jogo na roda de
capoeira, por exemplo), potencialmente sociais. Esta série de processos
inter-relacionados constituem o angoleiro.
A etnografia analisada neste artigo é um exercício
de interpretação. Neste trabalho, não afirmo nada além de algo do que absorvi
da ‘visão de mundo’ dos angoleiros durante os seis meses de inserção do grupo
de capoeira angola “Eu Sou Angoleiro” de Belo Horizonte / Minas Gerais (período
de maio a outubro de 2010) e muitas visitas em outros grupos de capoeira angola
e conversas com praticantes de capoeira angola ao longo dos meus oito anos de
prática de capoeira ‘contemporânea’. Assim, minha própria percepção do que
realmente vale para todos os angoleiros se manifesta de uma forma ou de outra.
Esta percepção está clara no termo ‘interpretação’, mas, ainda assim, baseia-se
em experiência incorporada com tudo isto. De maneira alguma esta postura deve
ser tomada como um desrespeito à diversidade de experiência ou opiniões entre
os angoleiros – que são muitas -, nem como uma negação da natureza solidamente
histórica de sua ordem social. Eu aceito como dado o fato de que esta
diversidade e historicidade existem – da mesma forma como o fazem movimentos
filosóficos maiores, baseados tanto em práticas cotidianas mundanas como em
rituais ou religiões.
Este artigo também representa uma tentativa de
diálogo com a área da antropologia da técnica na medida em que aborda as
técnicas corporais da capoeira angola assumindo uma postura crítica em relação
a algumas suposições como a universalidade das diferenças entre natureza e
cultura, mente e corpo, corpo biológico e indivíduo social, artificial e
natural, sujeito e objeto, ideal e material. Sem ocupar-me explicitamente da
desconstrução das “dicotomias ocidentais” na parte principal deste artigo, a
interpretação etnográfica baseia-se implicitamente nesta postura.
A seção seguinte do artigo trata do relacionamento
entre conhecimento e técnica corporal no entendimento dos angoleiros em diálogo
com discussões sobre cinestesia no âmbito dos estudos sobre dança e das
concepções de habilidade e percepção do antropólogo Tim Ingold (2000, 2001). A
conclusão retorna aos pontos colocados nesta Introdução, sugerindo a
necessidade de compreender técnica corporal não apenas como um meio para se
chegar a um fim, mas sim como um modo ativo de construção de pessoas em sua
totalidade.
1. Habilidade e constituição da
pessoa na prática da/na capoeira angola
É no corpo angoleiro, um corpo definido por
fatores externos a ele, que os processos sociais e sobrenaturais se misturam,
sendo feitos por outros indivíduos em um fluxo contínuo que envolve,
principalmente, diversas técnicas corporais. A forma e a natureza do corpo são
determinadas, desde o início da prática da capoeira angola, por intervenções
externas. Os angoleiros vêem este fluxo
como parte das relações de aprendizagem e o desenvolvimento do angoleiro
depende dos laços com seus camaradas
no contexto das práticas de capoeira angola, principalmente no grupo de
capoeira angola em que esteja engajado. Neste processo, o aprendiz também
contribui constantemente para o desenvolvimento de outras pessoas e do ambiente
do grupo. Assim, as práticas de capoeira angola da Associação Cultural Eu Sou
Angoleiro (ACESA) eram, em sua maior parte, realizadas no espaço fechado – na
ACESA as pessoas se referem ao espaço como “casa”. Era justamente o
envolvimento direto, contínuo e, por vezes, compulsivo das pessoas na capoeira
angola que permitia que elas fossem incorporando a habilidade. Assim, a
experiência do e no grupo de capoeira angola era o que permitia a
aprendizagem e, portanto, a constituição do organismo-pessoa angoleiro.
Em estudo recente, Silva (2008, p.21) coloca
que “o universo da academia é, na atualidade, o local onde a capoeira é
majoritariamente praticada”. O autor aponta que antigamente a capoeira era mais
praticada “no espaço lúdico do fundo de quintal, da porta da rua ou da festa de
largo” (SILVA, 2008, p. 22). Também, Abreu (2003) e Soares (2002) apontam que
era a rua o principal local de prática da capoeira. Já Mestre Pastinha (In:
ABREU, 2009, p. 26) fala da fundação de sua academia em 1941 (e registro em
1952): “Botei carteira para os capoeiristas. Meus meninos são diplomados”.
Sobre o modelo de oitiva (maneira de ensinar a capoeira sem método ou pedagogia),
aponta Abreu (2003, p. 20) que “o lance inicial poderia surgir de uma situação
inesperada, própria do jogo. [...] A partir dele se desdobravam outras
situações inerentes ao jogo, que o aprendiz vivenciava orientado pelos ‘toques’
do mestre”.
Nas práticas de capoeira angola da ACESA -
observar, copiar e repetir insistentemente e lentamente os movimentos, gestos,
ritmos e demais ações dos veteranos - não eram atividades que se opunham ou
travavam a criatividade do aprendiz, mas sim atividades que facilitavam o
aprendizado das técnicas de capoeira angola. No grupo isto ficou claro,
principalmente durante os treinos em que as pessoas copiavam os movimentos e
comportamentos como forma de aprender a capoeira e que, nem por isso, estes
movimentos e comportamentos ficavam completamente idênticos aos copiados ou
eram entendidos como falta de criatividade do sujeito. Como me disse o treinel
Dimas (junho de 2010), “você está treinando comigo, mas o fundamento é do
Mestre João. Eu desenvolvo o treino buscando passar o que o mestre ensina; o
que ele mostra que é a capoeira angola. Mas, o que você vai fazer com isso, a
forma de você fazer é sua, como dizia Mestre Pastinha, cada um é cada um”.
Deste modo, a forma e a natureza do corpo são
determinadas, desde o início da participação da/na prática da capoeira angola, por
fatores externos a ele. Desde o início de sua participação no grupo de capoeira
angola, durante todas as práticas de aprendizado, o aprendiz é inserido em um
contexto em que operam diversas técnicas corporais. A seguir, mostro quais são
algumas destas técnicas a partir do processo de aprendizagem – portanto de
constituição - do angoleiro, apresentando as tarefas no grupo de capoeira
angola.
No grupo pesquisado era possível estar
engajado, além do mestre (veterano com maior legitimidade e saberes no grupo),
como aluno (novato), aluno antigo ou treinel – que também dava aulas no grupo –
(veteranos) ou espectador-participante. Isto significa que para ‘entrar’ no
grupo você teria que participar
das/nas atividades realizadas referentes à capoeira angola. Assim, embora
houvesse produção de outras práticas afins (dança-afro, samba-de-roda,
percussão, eventos, apresentações), a capoeira angola ocorria cotidianamente
sendo a prática constitutiva do angoleiro.
A centralidade da capoeira angola na ACESA pode ser percebida nos diferentes
usos e práticas que são produzidas nos espaços relacionados ao grupo (demais
frentes de trabalho da ACESA, eventos e apresentações): além dos treinos e
rodas de capoeira angola, percebe-se que as aulas de dança-afro, práticas de
percussão, samba-de-roda, eventos, relações com outros grupos e práticas de
matriz africana – partem da perspectiva de constituição das habilidades do angoleiro, ou seja, o aprendizado da capoeira angola (o tornar-se
um angoleiro) pressupunha envolver-se
com outras técnicas afins – que por sua vez, também eram produzidas pelo/no
grupo e que ajudavam no processo de habilitação
dos angoleiros.
Os
treinos de percussão eram embutidos nas aulas de capoeira angola e dança-afro,
já que no espaço não havia som mecânico e, portanto, a sonorização dos treinos
era feita na hora pelos alunos novatos e veteranos que iam se revezando nas
atividades (execução de movimentos corporais, tocar instrumentos, cantar, etc.)
enquanto, neste processo, iam aprendendo as técnicas de afinação dos instrumentos
preparando-os para serem tocados, de tocar os instrumentos e de cantar as
músicas de capoeira.
Afinar um berimbau, por exemplo, ou seja, armá-lo, era uma tarefa que causava no
aprendiz, ao longo do tempo, alterações corporais visíveis como calos nas mãos
e nos joelhos (em função do contato da madeira e do arame do instrumento com a
pele) e invisíveis como um ouvido capaz de captar o som ideal que cada
instrumento deveria ter para estar ‘afinado’. Cada tipo de verga de biriba (a madeira da qual o berimbau é
feito) exige determinado tipo de cabaça
(a ‘caixa de ressonância’ do berimbau). Conforme conversa em abril de 2010 com
o treinel Serginho, uma verga de biriba
mais flexível (e, portanto, mais fácil de envergar) era boa para fazer um berimbau gunga (com som mais grave),
exigindo uma cabaça maior que casaria com o tipo de verga. Na ACESA,
as cabaças ficavam guardadas separadas das biribas e assim, o aluno chegava e
tinha que armar o berimbau e aprender a escolher qual cabaça seria ideal para
cada tipo de verga de biriba.
A técnica de afinação do berimbau era ensinada
através da ação de mostrar como
fazer, fazendo. Assim, os treinéis ou o mestre armavam o berimbau, e tocavam
mostrando o tipo de som que seria o ideal para que os alunos novatos pudessem
aprender como fazer e logo em seguida tentar. Então os alunos iam tentando várias
vezes até conseguirem deixar o instrumento armado no mínimo de uma forma que
pudesse ser tocado. Como deixar o berimbau completamente afinado não era tarefa
realizada com pouco tempo de prática, os veteranos diziam que ainda não estava
bom e mostravam executando o som ideal nos berimbaus afinados que eles armaram.
Durante esta etapa do treinamento, o aprendiz
também recebia instruções sobre a correta localização de cada instrumento na bateria. A bateria de uma roda de capoeira angola é formada por três berimbaus
com timbres diferentes: grave, médio e agudo (gunga, médio e violinha
ou roseira, respectivamente); dois
pandeiros; um atabaque; um agogô e um reco-reco. O berimbau gunga é quem define o tipo de jogo de
capoeira a ser executado, dependendo de qual toque for executado no
instrumento. A correta localização de cada instrumento na bateria é definida de
acordo com a linhagem de capoeira
angola de cada grupo. De acordo com o Mestre João (maio de 2010), linhagem era referente às práticas de
capoeira angola ancestrais que marcaram a aprendizagem do mestre e que são
passadas para as gerações seguintes nas práticas cotidianas do grupo. Assim, o
aprendiz era instruído a colocar cada instrumento no seu devido lugar na
bateria, de acordo com a linhagem do
grupo.
A execução dos instrumentos também respeitava
uma ordem correta, inclusive em relação ao tipo de cantiga a ser executada. Na
capoeira angola existem três tipos principais de cantigas: ladainhas, chulas e corridos. A ladainha
é uma saudação que termina com uma louvação do cantador. No momento de sua execução não há jogo de capoeira, ela é
feita para ser ouvida, conforme me ensinou o treinel Renato (junho 2010); a chula é uma espécie de diálogo de
pergunta e resposta do puxador do canto
(cantador) com o côro da roda.
Ainda não há jogo de capoeira durante sua execução; o corrido é formado por uma espécie de diálogo entre o cantador e o côro com frases curtas e durante sua execução já pode haver jogo de
capoeira. Cada tipo de cantiga também exige uma maneira correta de ser cantada
e um momento correto – definido em relação ao tipo de toque executado no
berimbau gunga e ao momento presente
da roda. A ladainha, por exemplo, geralmente abre (é executada no início) da
roda de capoeira angola. Na ACESA, primeiro toca-se o berimbau gunga, depois o berimbau médio e depois
o violinha e um pandeiro para que a ladainha seja cantada. Depois da ladainha -
na chula -, os demais instrumentos podem ser tocados também e o côro responde
ao cantador. Nos treinos de capoeira angola da ACESA a execução dos
instrumentos, sua localização, bem como a execução e treino de canto e toque de
instrumentos segue o mesmo padrão das rodas. Percebe-se, portanto, que a exteriorização do conhecimento se
dava por meio de ações importantes (como o jogo na roda de capoeira, por
exemplo), potencialmente sociais.
Tanto nas rodas quanto nos treinos, se não
houvesse pessoas suficientes no momento para comporem a bateria completa, os
instrumentos permaneciam no banco, ocupando seus lugares mesmo não sendo
executados. Os instrumentos devem ser cuidadosamente confeccionados, guardados
e manuseados. Eles possuem condição de agentes (pessoas) na capoeira angola,
são capazes de modificar o tipo de jogo de capoeira e de influenciar a energia
espiritual no ambiente. Por isto, mesmo que não haja ninguém para tocá-los,
devem permanecer na bateria em seus respectivos lugares. Na ACESA, as coisas
(no caso, os instrumentos), ontologicamente não estavam separadas dos conceitos
que se tinha delas: o objeto “berimbau-instrumento-material” não estava
separado do significado “berimbau-conceito-ideal”. Deste modo, o berimbau não
apenas representava uma
subjetividade, porque sendo sujeito e, portanto, atuante no ambiente ele era portador
de pessoalidade. Um ‘berimbau gunga’ na ACESA era diferente de outro, por
exemplo, não apenas materialmente, mas também subjetivamente, já que eram ‘sujeitos’
(agentes) diferentes. Quando alguém chegava a um treino ou roda da ACESA com um
berimbau que não era de lá, todos ficavam curiosos para conhecer o som do
berimbau, qual berimbau era aquele, o que ele fazia, perceber sua energia e
vibração (musical e espiritual) porque ele também participava das relações
atuando nas pessoas e, portanto, no mundo. Se o arame de um berimbau
arrebentasse durante a roda de capoeira era sinal de uma momentânea energia negativa operando no ambiente,
denunciada pelo berimbau. Assim, aprender a ser um angoleiro também era aprender a ser uma pessoa que lidava a todo o
tempo com algo similar a uma “alteridade das coisas” (HENARE; HOLBRAAD;
WASTELL, 2007), portanto, uma pessoa que pensava, sentia e agia através das
coisas que, por sua vez, eram possuidoras de subjetividades.
Para tornar-se um bom cantador o aprendiz
tinha que treinar sua voz durante a execução da bateria, cantando e respondendo
ao côro com um timbre de voz adequado
e afinado de acordo com os instrumentos além de possuir um vasto repertório de
cantigas de capoeira angola. Neste processo contribuía também, em tempo real,
com a aprendizagem dos demais participantes que iam afinando suas percepções em
relação à forma ideal de cantar e aprendendo o repertório de cantigas. A
participação em rodas e eventos de capoeira de outros grupos, bem como o
contato com discos e vídeos de músicas de capoeira ou livros com as letras das
cantigas também influía na constituição da habilidade de cantador, já que
contribuíam com a ampliação do repertório de cantigas e com a “educação da
atenção” (cf. INGOLD, 2001) do aprendiz em relação à forma ideal de execução
das cantigas.
Na parte do treino relacionada à execução dos
movimentos corporais da capoeira angola, o processo de ensino também era
baseado na ação de mostrar. Este tipo de aprendizagem pela ação de mostrar foi
abordado por Ingold (2001). Para ele, o processo de aprendizado por
“redescobrimento dirigido” é realizado mais corretamente através da ação de mostrar. Mostrar alguma coisa a alguém,
conforme coloca o autor, é fazer esta coisa se tornar presente para esta
pessoa, de modo que ela possa apreendê-la diretamente, seja olhando, ouvindo ou
sentindo. Neste caso, o papel do tutor é criar situações nas quais o iniciante
é instruído a cuidar especialmente deste ou daquele aspecto do que pode ser
visto, tocado ou ouvido, para poder assim ‘pegar o jeito’ da coisa. Aprender
neste sentido é equivalente ao que o autor, citando uma frase de James Gibson
(1979) chama de “educação da atenção”. Assim, os sentidos dos angoleiros eram
constituídos biologicamente e cognitivamente na execução das técnicas da
capoeira angola. A ênfase
em um ‘saber’ que não se opunha a um ‘fazer’ era marcante neste sentido.
Os
intervalos entre um movimento corporal e outro eram feitos com o movimento de dar a volta ao mundo, ou seja, até mesmo
o momento de pausa (intervalo) durante o jogo de capoeira angola era marcado
pelo ato de fazer um movimento. A pausa era um movimento, neste sentido.
Os tipos de movimento corporal do jogo de
capoeira angola eram fundamentalmente quatro, realizados a partir do movimento
de gingar: esquivas (saídas), ataques (entradas), chamadas (pausa) e floreios.
Na ACESA, o espaço era preparado para a capoeira acontecer de uma maneira
específica e tinha apenas cerca de uns 45 metros quadrados, assim, todos os
movimentos corporais feitos durantes os treinos e rodas eram sempre realizados
com uma proximidade física muito grande entre as pessoas, ainda mais se o
espaço estivesse cheio. Isto causava certo incômodo nos novatos durante os
jogos de capoeira porque a capoeira angola é um jogo em que não há contato
físico constante e intenso entre os jogadores. Do ponto de vista do movimento
corporal, a capoeira angola é um jogo de ‘entradas e saídas’ no/do espaço
ocupado pelo corpo do oponente a partir de golpes desequilibrantes,
impactantes, movimentos feitos para tomar com o corpo o espaço ocupado pelo
oponente ou conduzir a movimentação dele. Assim, trata-se de um jogo
fundamentado em uma movimentação constante. Mesmo nos momentos de pausa no jogo
(por exemplo, nas chamadas), os
jogadores não ficam nunca completamente imóveis. Conforme ensinou Mestre João
(julho de 2010), “a imobilidade é o fim do jogo de capoeira”. Como, para os
angoleiros, o jogo de capoeira é o “jogo da vida”, a imobilidade é o fim da
própria vida. Assim, as técnicas corporais iam dando relevância, na medida em
que constituíam os organismos-pessoas, às infinitesimais mudanças que operam no
próprio processo da vida em si.
Para o treino havia um roteiro escrito pelo
Mestre João que servia de referência para os treineis. Apesar disto, nem todos seguiam o roteiro exatamente como
estava escrito – o que não era necessariamente um problema, desde que os fundamentos da capoeira angola praticada
pelo grupo fossem mantidos durante a realização do treino. Em geral, os treinos
sempre começavam com a prática da percussão (ritmo) nos instrumentos da bateria
e canto, seguida da prática de movimentos corporais (golpes, esquivas,
movimentações em dupla e individual, e jogos de capoeira angola) e terminavam
com um momento de orações e informes. Uma parte dos treinos era em
silêncio. O restante dos treinos era feito com o som dos instrumentos da
bateria e/ou cantigas de capoeira sendo executados na hora por ao menos um dos
participantes do treino – que ia revezando as atividades com outros
participantes ao longo do treino. As técnicas de execução dos instrumentos
também iam constituindo os corpos – criando bolhas nos dedos, calos nas mãos,
fortalecimento de articulações e músculos e afinando os sentidos.
No espaço também não havia espelhos nas
paredes. Em conversa realizada com o treinel Dimas (setembro de 2010),
perguntei por que não havia espelhos nas paredes da ACESA como acontece com
outras academias de capoeira regional e dança. Ele me respondeu que “os
espelhos nas paredes atrapalham a percebermos o nosso corpo e as outras pessoas.
Você tem que aprender a fazer os movimentos de capoeira a partir da relação com
os outros, não apenas focando visualmente a si mesmo. É um jeito que o corpo dá
que você percebe”.
Tratando desta espécie de “sentido do
movimento” que Dimas aponta em seu relato, o inglês Charles Scott Sherrington,
um dos pais fundadores da neurofisiologia, reúne sobre o termo “propriocepção”,
o conjunto dos comportamentos perceptivos que concorrem para este sexto sentido
que hoje recebe o nome de “cinestesia”. Conforme aponta Suquet (2008), em sua
concepção, ele trança informações de ordem não apenas articular e muscular, mas
também táctil e visual, e todos esses parâmetros são constantemente modulados
por uma motilidade menos perceptível, a do sistema neurovegetativo que regula
os ritmos fisiológicos profundos: respiração, fluxo sanguíneo, etc. Este
território da mobilidade, consciente e inconsciente, do corpo humano se abriu
para as explorações dos bailarinos no limiar do século XX. Genevieve Stebbins (década
de 1890) e o continuum do ser vivo
expresso pelos movimentos de queda e elevação em espiral, a exploração da
percepção táctil de Steve Paxton (década de 1960) e sua “contact-improvisation”, são exemplos da exploração cinestésica no
âmbito da dança. Trago aqui esta referência à dança porque ela oferece uma
maneira de falar sobre a relação entre movimento corporal e percepção que ajuda
a explicar o que, de maneira similar, permeia as técnicas corporais na capoeira
angola e seu compartilhamento. Anne Suquet (2008) aponta que se o bailarino se
inventa dançando, se não cessa de fabricar sua própria matéria, trabalha também
o espectador para sentir o corpo. Também no compartilhamento das técnicas
corporais na capoeira angola o angoleiro vai se re-inventando a todo instante. “A informação visual gera, no
observador, uma experiência cinestésica (sensação interna dos movimentos do
próprio corpo) imediata, e as modificações e as intensidades do espaço corporal
do bailarino encontram assim sua ressonância no corpo do espectador” (GODARD apud SUQUET, 2008). A autora mostra que
esta noção é tanto mais apta a explicar a percepção do corpo dançante quando se
sabe que as neurociências atuais começam a admitir a existência de “neurônios-espelho”
– olhando ou efetuando movimentos corporais, as estruturas cerebrais
solicitadas são parcialmente as mesmas. Enfim, imaginar o movimento ou
preparar-se para executá-lo produz efeitos comparáveis ao nível do sistema
nervoso. Nas técnicas corporais da capoeira angola esta perspectiva fica
evidente no modo de observar o outro fazendo o movimento como forma de
aprendizagem da técnica e da espécie de ‘diálogo’ que ocorre entre as diversas
pessoas envolvidas na prática (instrumentos, entidades espirituais, jogadores
de capoeira, espectadores).
No grupo, a capoeira angola era percebida como
o jogo da vida. Após um dos treinos
da ACESA dos quais participei houve um momento de conversa sobre o que eram os fundamentos da capoeira angola. Os angoleiros
disseram que os fundamentos eram a
base de referência sobre como as coisas deveriam ser feitas na prática da
capoeira angola, na organização do grupo e na vida do angoleiro. Estas maneiras de saber-fazer as coisas, portanto estas técnicas
peculiares, também diziam muitas coisas sobre o que era o angoleiro como
pessoa, como ele deveria se relacionar e existir no mundo. Aprender os
fundamentos da capoeira angola na prática era, conforme os angoleiros, um
processo que não tinha fim. Os fundamentos também constituíam o que era
concebido como tradição. Neste
sentido, tradição era a bagagem de saber-fazer as coisas como elas deveriam ser
feitas, enfim, ser habilitado (como organismo-pessoa) a praticar a capoeira de
maneira específica. O processo de habilitar-se era contínuo. Portanto, a
tradição era renovada, constituída no próprio processo de vida do angoleiro, nos movimentos que marcam a
prática cotidiana da capoeira angola, na constituição das habilidades, de modo
que a habilitação na capoeira angola é, portanto, o jogo da vida, o processo da
vida em si.
Nesse contexto as noções de identidade e de
corporeidade como caminhando juntas também ganha força, ou seja, as técnicas da
capoeira angola como constitutivas de algo parecido com o que, por exemplo, Vargas
(2001) – embora estudando um contexto diverso - chamou de “corpos subjetivados”
ou “sujeitos incorporados”.
Um bom angoleiro (um capoeirista mandigueiro) era aquele que, entre
outras características, possuía a capacidade de combinar elementos tradicionais
com novas e desafiadoras maneiras no seu
jogo de capoeira e na sua maneira de existir como pessoa no mundo. Portanto,
foi notável no grupo pesquisado que a prática da capoeira angola desenvolvia,
também, uma espécie de concepção de “criatividade e improvisação cultural” do
tipo da que sugere Ingold e Hallam (2007), ou seja, que não pressupunha uma
oposição entre tradição e modernidade e que era percebida, vivenciada e
estabelecida no/pelo sujeito no seu processo de engajamento nas práticas de aprendizagem
do grupo de capoeira angola.
Passarei, em seguida, a analisar aspectos específicos
das práticas de aprendizagem da capoeira angola na ACESA que revelam a relação
entre técnica corporal e constituição do organismo-pessoa.
O “jogo de poder” era freqüente e aprender a
jogá-lo fazia parte do processo de engajamento do sujeito no grupo. Além disso,
nota-se que este “jogo de poder” ocorria, principalmente, durante o próprio
jogo de capoeira, inclusive durante a execução dos instrumentos da bateria (seja
nos treinos ou rodas) - ou estava diretamente relacionado ao jogo de capoeira
onde havia momentos em que o sujeito aprendia também o que podia ou não podia
fazer com seu corpo e com quem podia ou não podia fazer. Assim, o corpo era,
também, durante o jogo de capoeira, instrumento de obtenção de legitimidade no
grupo.
Isso não quer dizer que em todo jogo de
capoeira que ocorresse houvesse sempre um “jogo de poder”, mas sim que durante
os jogos de poder (mais visíveis principalmente durante os jogos de capoeira) o
corpo participava intensamente no processo de definição do que podia ou não ser
feito e de quem/com quem podia ou não podia fazer. Deste modo, o treino
corporal (docilização do corpo – em que a pessoa também aprende novas
habilidades corporais) não era antítese de agência
no grupo e sim facilitador de obtenção desta agência[1]
e, portanto, de legitimidade.
Por outro lado, podia haver um sujeito que
necessariamente não estivesse jogando capoeira ou que não estivesse jogando
eficientemente (no sentido de técnica como apenas um meio para se chegar a um
fim), como um mestre idoso fisicamente debilitado, por exemplo, mas que por
participar de outras práticas do grupo ou por sua legitimidade no “mundo da
capoeiragem”[2] era
legitimado pelo/no grupo. Isto mostrava que “participar” e “habilidade” não
queria dizer necessariamente estar jogando capoeira; que técnica não era
compreendida apenas como um meio para se chegar a um fim; que a participação se
estendia para outras práticas relacionadas, mas que ultrapassavam o espaço
físico do grupo.
Durante os treinos e rodas de capoeira angola
do grupo as pessoas relutavam em dizer verbalmente o que era para ser feito
corporalmente e havia poucas conversas verbais entre os participantes. A
comunicação era realizada por meio das cantigas de capoeira ou através dos
gestos, envolvendo, portanto, a corporeidade e a musicalidade. As técnicas de
comunicação, portanto, proporcionavam o desenvolvimento da percepção corporal e
musical das pessoas envolvidas na prática de maneira peculiar, já que se
referiam ao aprendizado dos gestos certos e do significado das cantigas de
capoeira.
A noção moderna de corpo-objeto possibilitou a
idéia de si, sendo o corpo fator de individuação. Isso significa que temos um
corpo, mas quando falamos que somos um corpo estamos fazendo outra passagem;
neste ponto nosso corpo se confunde com nossa pessoa. Ele se converte na nossa
forma de estar no mundo. Deste modo, é notável que por meio das técnicas que
permeavam a prática da capoeira angola os veteranos iam educando a atenção dos
iniciantes também em relação à sua percepção de um corpo como sua forma de
estar no mundo. E, por isto, estas técnicas iam, portanto, modificando a
maneira do sujeito existir no mundo.
No treino de capoeira angola houve um momento
de fazer movimentos com o corpo e o mestre (julho de 2010) pediu que cada vez
um fosse à frente da bateria e fizesse “mandingas,
gingando, soltando o corpo”, enquanto o restante tentava acompanhar imitando os
movimentos. Mandingas são técnicas de
movimentação do corpo que podem revelar a malícia, a destreza, a cordialidade,
a vivacidade, a energia e a força ancestral atuante de cada angoleiro. É
notável, ainda, a relação de mandinga
com algo imaterial, da ordem do não-humano, espiritual, uma espécie de
habilidade em relacionar-se com o aspecto espiritual atuante no corpo. Mestre
João também me disse, em outro momento (agosto de 2010), que nosso corpo é
possuidor de um saber.
Portanto, o corpo biológico não era percebido
apenas como ‘carne’ separada do ‘self’ (da mente) e do ‘espírito’. Pelo
contrário, ‘carne’, ‘self’ e ‘espírito’ estavam entrelaçados e, deste modo,
fazer um movimento corporal também era fazer um movimento mental e espiritual e
vice-versa. Assim, o angoleiro é um corpo que não se percebe como descolado do
que consideramos subjetividade. O corpo é o angoleiro sob esta perspectiva. Se
a percepção – órgãos dos sentidos e cognição - do angoleiro vai sendo constituída
por meio das técnicas na prática da capoeira angola, a relação com o ambiente
também vai ficando diversa, já que a pessoa começa a perceber coisas que não
percebia antes e, assim, vai modificando sua maneira de relacionar-se com o
ambiente. Isto foi notável nas relações das pessoas ao longo de seu processo de
engajamento no grupo com as entidades
espirituais percebidas como atuantes no ambiente, com as fotos dos
‘ancestrais’ da capoeira angola nas paredes do espaço do grupo – possuidoras de
uma vibração energética, o uso de
adereços relacionados com as entidades
espirituais, a busca por determinado tipo de alimentação e estilo de vida
mais condicente com este outro mundo que a prática da capoeira angola ia
possibilitando perceber. Já que o que se faz no corpo biológico é também algo
que se faz na mente e no espírito as pessoas começam a constituir outros tipos
de relações com aquilo que vibra em
uma intensidade relacionada àquilo que sua percepção consegue captar. Deste
modo, o mundo também não é apenas percebido, mas vai sendo constituído.
Outro ponto observado foi referente à ênfase
em uma corporeidade negra. No grupo
pesquisado esta forma de percepção do mundo, que não separa objetividade de
subjetividade, material de imaterial é caracterizada como referente a uma corporeidade
afro-descendente ou negra. Portanto,
a perspectiva étnico-racial não era concebida apenas como aspectos biológicos
do organismo ou simbólicos da cultura, mas sim a um tipo de experiência
peculiar (negra) da pessoa
compreendida em sua totalidade e que constitui um mundo.
Ao participar realizando uma tarefa com o
corpo como cantar, sambar ou tocar um instrumento a pessoa ia sendo constituída
em sua totalidade (biologicamente e subjetivamente) e ia constituindo o
ambiente. Daí a importância e a ênfase dos treinéis na participação (executando
tarefas no treino) até mesmo de visitantes.
A relação com a espiritualidade e com o ritual
não é aspecto exclusivo nas práticas de aprendizagem da capoeira angola da
ACESA. Mestre Decânio (1996) coloca que o capoeirista, como todos os demais
participantes de uma roda de capoeira está encerrado em um “campo energético”,
com o qual interage e, portanto, sujeito a todos os seus fatores em atividade.
Para o autor, o silêncio verbal e a paz ambiental, bem como o ritmo dos
instrumentos durante o jogo, propiciam o desenvolvimento do “transe capoeirano”
e, portanto, “o desenrolar do jogo de capoeira”.
No grupo pesquisado espiritualidade era categoria referente a uma energia específica que era desenvolvida no/pelo o angoleiro. Era
concebida, portanto, como incorporada. Esta energia
relacionava-se às entidades espirituais
- que estavam em constante relação com os sujeitos, objetos e o ambiente e com
os comportamentos dos angoleiros, visíveis principalmente durante o jogo de
capoeira angola. A capacidade de perceber a intensidade das vibrações espirituais era constituída também
por meio das técnicas corporais do jogo de capoeira angola e da afinação da
percepção por meio das técnicas de execução dos instrumentos. Assim, deixar o corpo falar durante o jogo, sem
ficar, portanto, racionalizando (mentalmente) demais os movimentos era técnica
que facilitava a atuação em tempo real, da energia
espiritual. Como durante o jogo de capoeira angola o corpo está em processo
de afinar-se com a música sendo executada pela bateria e côro, a atuação dos instrumentos também era fator que aumentava a energia espiritual na roda.
Percebe-se,
portanto, que a relação com a vibração energética das entidades espirituais é
algo que tem entrelaçados o corpo do angoleiro (os órgãos dos sentidos), a
energia espiritual e a atuação dos instrumentos musicais. Isto não quer dizer
que entidades espirituais e seres humanos eram percebidos como iguais. O ser
humano vai se transformando no contato com as entidades espirituais, mas não se
transforma nelas já que há a necessidade delas para a permanência desta
transformação.
Para preparar o espaço para os treinos e rodas
de capoeira angola os alunos chegavam um pouco antes do horário previsto para o
início, providenciando a limpeza do chão e arrumação do banco da bateria,
enquanto outros afinavam os instrumentos musicais que iriam ser usados,
acendiam a vela para a estátua de São Jorge, defumavam o ambiente e regavam as
plantas do terraço. Assim, tanto a decoração do espaço da ACESA – o que incluia
o local destinado para pendurar os berimbaus, pintura nas paredes (cores),
quadros com fotos de renomados mestres (os quais valorizavam a linhagem, referindo-se à história e às
pessoas legitimadas como guardiãs da tradição na capoeira angola) – bem como o
uso do uniforme, a movimentação corporal, a musicalidade não constituíam apenas
as diversas “linguagens” (ou o “universo simbólico”) na capoeira angola, mas
sim entravam no processo relacional que ia transformando as percepções,
constituindo assim as pessoas e outra realidade.
Nas rodas, o jogo de capoeira angola não acontecia sem a presença da
bateria (com os angoleiros tocando e cantando) e nos treinos eram raros os
momentos em que não havia algum instrumento sendo executado ou alguém ao menos
cantando as cantigas. O que se tocava e cantava, bem como a técnica de tocar e
cantar e o momento de fazê-lo eram pontos fundamentais para que um bom jogo de
capoeira pudesse acontecer. Era marcante no aprendizado a ênfase em perceber o
andamento adequado do ritmo dos instrumentos percussivos, bem como a
intensidade de tocar cada um para que, no conjunto, a musicalidade ficasse
harmônica, ou seja, para que houvesse uma simetrização nas intensidades e na
cadência rítmica de um instrumento em relação ao outro. O ato de cantar também
deveria seguir esta harmonia a partir da percepção do tom e timbre de voz a ser
executado no canto. Esta harmonia estava relacionada diretamente com uma boa vibração energética na capoeira angola
e, portanto, também afectava as
pessoas e constituía o ambiente. Mas o angoleiro veterano (mais hábil em
perceber a harmonia rítmica ideal) conseguia cantar uma ladainha, por exemplo, brincando com a métrica do ritmo, ou seja,
improvisando ritmicamente, mesmo que cantasse uma música antiga, já conhecida
pelos angoleiros. Do mesmo modo, conseguia improvisar na execução dos
instrumentos sem deixar que eles saíssem da harmonia simetrizante em relação
aos outros – um exemplo, portanto, de que o angoleiro habilidoso possui uma
percepção ‘afinada‘, capaz de encontrar a frequência de vibração necessária
para realizar a tarefa.
Era marcante a
ligação direta entre musicalidade e espiritualidade na capoeira angola do grupo
e que um tipo de ‘sujeito’ (agente) podia atuar no outro e vice-versa, ou seja,
os instrumentos como ‘agentes musicais sendo tocados pelos ‘agentes
espirituais’ e os agentes espirituais que são ‘tocados’ pelos instrumentos.
Deste modo, os instrumentos também participavam do processo relacional de
constituição dos angoleiros no grupo de capoeira angola pesquisado e ter
cuidado com eles, saber manuseá-los e construí-los eram técnicas constitutivas
do angoleiro.
Ao estudar a
musicalidade na capoeira, Stotz (2010, p.140) mostrou que a música também é um
importante elemento para ajudar a aliviar “as dores do espírito e treinar o
corpo”. O autor aponta que “por meio do ritmo criado por instrumentos de
percussão se desenvolve um eficaz senso inato de coordenação e noção de tempo (timing)
no praticante” (Idem). Na capoeira angola as técnicas corporais são
relacionadas diretamente ao tipo de ritmo dos instrumentos sendo executado na
bateria, principalmente ao tipo de toque executado pelo berimbau gunga (que define a maneira de jogar
capoeira).
A aprendizagem da
capoeira angola não era um processo que tinha como ser finalizado, a pessoa
nunca parava de aprender novas habilidades, estava sempre na encruzilhada de
diversas técnicas que permeavam o aprendizado da capoeira angola. Assim, como os
angoleiros da ACESA disseram (outubro de 2010) “aprender a capoeira angola não
tem fim, é também aprender a viver”. E este processo inclui, também, a fruição
das emoções. O prazer, a dor, a alegria, as frustações, os medos, a coragem, o
ciúme, o altruísmo, o afeto, a fraqueza, a vaidade, a humildade, a timidez, a
extroversão, a iniciativa, se constituíam marcando os corpos e sendo marcados
nos corpos das pessoas, por meio de movimentos (do corpo, dos sentidos, da
percepção): rabos-de-arraia, bananeiras, aús, meia-lua, chapas, cabeçadas,
saudações, chamadas, ladainhas, corridos, chulas, ritmos de instrumentos,
silêncios, olhares, energias, sorrisos, cheiros, gostos e outras sensações. O
movimento de corpos, emoções, pensamentos e vibrações espirituais marcava as
práticas de capoeira angola, mas não como algo estanque, que transitava por
estas instâncias como se elas estivessem separadas, mas sim como uma espécie de
encruzilhada: o movimento era onde
todas as instâncias constitutivas do angoleiro e do mundo se encontravam
formando uma coisa só. É por isto que, conforme me explicou um de meus
interlocutores em campo (maio de 2010), “a ginga
é o movimento básico do jogo de capoeira angola e ela é o movimento de estar em
movimento sem sair do lugar e é por meio dela que você conhece o angoleiro”. É
por isto também que na roda de capoeira se dá
a volta ao mundo, por meio da realização de um movimento corporal. Mestre
João me disse (setembro de 2010) que “o angoleiro nunca deve ficar totalmente
parado, que até quando você acha que ele está parado, ele está em movimento
porque a vida é movimento e a capoeira angola é vida”. Neste sentido, a vida é
movimento, mesmo que você não saia do lugar, as mudanças são infinitesimais.
E neste movimento, a
intensidade é aspecto relevante. Saber fazer o movimento (corporal e, portanto,
como ser vivente) com mais firmeza ou leveza em determinados momentos, com mais
precisão e intencionalidade em outros ou com mais expressividade em outros é uma
habilidade que caracteriza o bom angoleiro. Também se relaciona com a
constituição do mundo da capoeira angola: Quando alguém fazia um movimento
muito brusco ou desajeitado nos treinos, o treinel mostrava fazendo o que devia
ser feito com mais calma ou atenção. Daí a importância da musicalidade neste
processo, pois era o ritmo dos instrumentos da bateria o que mais ajudava na afinação
da percepção, já que influía diretamente na movimentação do jogo, portanto, na
própria vida, no mundo dos angoleiros.
A interlocução com
práticas afins ajudava no processo de afinar a percepção do angoleiro de modo
que ele se tornasse apto a perceber os aspectos importantes relacionados à
prática da capoeira angola. Entre estes aspectos, o principal era a percepção
do movimento, mesmo que sem sair do lugar fisicamente, mesmo que nos momentos
de pausa e silêncio. Portanto, movimento corporal concebido não apenas como
gestos sem sentido, mas como interseção, na prática, de todas as instâncias
(biológica, emocional, mental, espiritual) constitutivas do angoleiro e do
mundo.
A constituição do
angoleiro também se relacionava com um hábito
cortês – uma habilidade que a pessoa ia constituindo e ajudava a constituir
em que operava uma lógica prática de uma individualidade que não era antítese
de coletividade. Assim, aprender capoeira angola no grupo era também aprender
no corpo, valores. O grau de habilitação do aprendiz era percebido, também, na
sua maneira de jogar capoeira angola com os outros e se comportar durante as práticas
de aprendizagem da capoeira, ou seja, se ele sabia o momento certo de começar o
jogo na roda, seu cuidado em permitir que o ‘oponente’ também participasse do
‘diálogo’ durante o jogo e não ficasse apenas querendo entrar no oponente, fazendo jogo
duro o tempo todo, o cuidado de saber cantar e tocar no momento certo para
não ‘atropelar’ ninguém que estivesse cantando e tocando ou a receptividade e
consideração com os convidados das rodas e eventos.
Era marcante a
perspectiva de um coletivo (angoleiros), mas sem que isto significasse a anulação
da individualidade de cada um. Cada pessoa neste sentido possui suas
peculiaridades que não são opostas ou anuladas no coletivo, pelo contrário,
participam no processo de constituição de novas habilidades na prática da
capoeira angola, intrínseca às suas técnicas. Nesse sentido, um movimento no
jogo de capoeira angola nunca era idêntico a outro, e o papel do jogador era
promover na ação o encontro dos instrumentos, de seu corpo, de suas emoções, da
energia espiritual e das outras pessoas em circunstâncias sempre únicas, ou
seja, era perceber (e, portanto, tornar-se) a encruzilhada de diversos aspectos,
o movimento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A etnografia sugere que pesquisas sobre técnica corporal
devem dar atenção especial às questões de consciência e conhecimento, como
estas derivam física e socialmente, constituindo o ambiente, e como sua
manipulação depende da relação entre diversos aspectos normalmente invisíveis
do corpo concebido como mais ou menos material. Através de um amplo processo de
“educação da atenção” (INGOLD, 2001) ou participação envolvendo repetições,
orientação e experimentações constantes de praticantes experientes, aprendizes
vão constituindo a habilidade com uma espécie de "ajustamento rítmico
da percepção e da ação” (INGOLD, 2001, p.135).
Quando trata da constituição do “organismo-pessoa”
como a constituição de habilidades, Ingold (2000) refere-se a um processo de
engajamento no mundo que chama de habitar
o mundo. O que a etnografia permitiu
perceber foi que o movimento era a base de uma ontologia que constituía o mundo.
O tornar-se angoleiro é o processo
infinito de tornar-se a encruzilhada, portanto, algo da ordem do ontos e
não da episteme e era processo intrínseco às técnicas.
A prática da capoeira angola constitui habilidades
de tipo similar ao das que fala Ingold (2000) já que constituem as pessoas em
sua totalidade, produzindo, portanto, percepções (biologicamente e
semanticamente).
A habilidade de jogar capoeira angola não pode ser
considerada apenas como uma técnica do corpo no sentido de realização de gestos
codificados em vista de uma eficácia prática ou simbólica imposta pela
sociedade conforme propôs Marcel Mauss (1935). Assim, não pode ser apenas
considerada um meio para se chegar a um fim, ou seja, técnica como função de
racionalização (cognitiva) do movimento do corpo compreendido como separado dos
processos cognitivos (da mente). Não há na constituição da habilidade técnica
para a prática da capoeira angola, uma separação entre o que é sentido pelo
corpo (sensualmente) e o que é significado pela mente (semanticamente). Como a
etnografia mostrou, a habilidade constitui a pessoa em sua totalidade
(biologicamente e subjetivamente), bem como constitui o ambiente. Deste modo,
podemos conceber o grupo de capoeira angola como um laboratório da percepção em
que os angoleiros vão constituindo
outra forma de perceber e, portanto, de existir. Esta maneira de existir, como
vimos, é fundamentada no movimento. O grupo de capoeira angola pode ser
concebido, deste modo, como produtor e produto de um tipo de ontologia do
movimento.
Compreender o processo de engajamento nas práticas
cotidianas do grupo de capoeira angola Eu
Sou Angoleiro e, portanto, como ocorreu o aprendizado da capoeira angola,
foi também compreender um modo particular de construção de pessoas peculiares –
os angoleiros.
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