A APRENDIZAGEM DA/NA CAPOEIRA ANGOLA

 *Palestra apresentada no evento de relançamento do livro: “A capoeira da indústria do entretenimento: corpo, acrobacia e espetáculo para turista ver” de Acúrsio Esteves. Auditório da UNIME - Salvador, 15 de setembro de 2011, baseada nos resultados da pesquisa desenvolvida para o Mestrado em Lazer da Universidade Federal de Minas Gerais (2010).
Foto: Prof. Acúrsio Eteves


ABAIXO, SEGUE O ARTIGO-BASE DA PALESTRA QUE PROFERI  SOBRE APRENDIZAGEM DA/NA CAPOEIRA ANGOLA


Entre os estudos da aprendizagem no contexto da prática, ganhou destaque no cenário internacional a abordagem teórica de Lave e Wenger (1991). Numa perspectiva de fronteira entre a Antropologia e a Psicologia, o trabalho dos autores (Situated Learning: Legitimate Peripheral Participation, 1991) toma como foco o relacionamento entre aprendizagem e as situações sociais nas quais ocorre. Para a pesquisa que realizei, essa abordagem se mostrou particularmente importante por oferecer guia teórico à descrição e análise da aprendizagem da capoeira angola, tratando-a fora de um contexto de estruturação pedagógica. A pesquisa foi realizada para o Mestrado em Lazer da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da UFMG. Tratou-se de um estudo etnográfico das práticas de capoeira angola de um grupo de capoeira angola de Belo Horizonte (grupo “Eu Sou Angoleiro” – Mestre João Bosco), realizado a partir do trabalho de campo no período de maio a outubro de 2010.

Juntamente com o autor Etienne Wenger, Lave (1991) elege o aprendizado como um aspecto de troca de participação em ‘comunidades de prática’ em todo lugar. Isto significa dizer que onde quer que as pessoas se engajem por períodos de tempo substanciais, dia após dia, fazendo coisas em que suas atividades são interdependentes, o aprendizado é parte da sua troca de participação nos intercâmbios das práticas. Esta perspectiva evidencia a ação como inseparável da vida da comunidade que a desenvolve, tornando possível ligar os indivíduos às comunidades e o cognitivo ao social. A aprendizagem é, pois, constitutiva das experiências na e da prática social. Está ligada, portanto, ao centro da produção, reprodução, transformação e mudança da ordem sociocultural. A prática social é tomada, desse modo, como contexto de aprendizagem. Sendo assim, quem você é toma forma crucialmente e fundamentalmente pelo o que você sabe.  O que você sabe, deve ser entendido aqui mais como ‘o fazer’ do que como tendo algum ‘conhecimento’ (no sentido de adquirir ou acumular informação). ‘Saber’ é uma relação entre comunidades de prática, participação na prática e geração de identidades como parte do tornar-se membro da prática que acontece. Este ‘tornar-se membro’ da comunidade de prática é mediado pelo mecanismo que Wenger; Lave (1991) chamam de participação periférica legitimada (Legitimate Peripheral Participation - LPP) que significa que os novatos tornam-se membros experientes e veteranos participando, gradualmente, das atividades mais simples até as mais complexas, chegando ao ponto em que sua participação vai ficando mais central no funcionamento da comunidade de prática.
Seguindo esta concepção dos autores, podemos dizer que o grupo de capoeira angola pesquisado pôde ser compreendido como uma “comunidade de prática” de capoeira angola em que o mecanismo de “participação periférica legitimada” pôde ser adotado para ajudar a explicar como se deu o aprendizado, já que os aprendizes iam participando, gradualmente das atividades do grupo sendo ‘supervisionados’ pelos veteranos que mostravam os aspectos importantes que deviam ser considerados para que o aprendiz fosse se constituindo como um angoleiro no grupo, na medida em que também constituía o próprio grupo neste processo. Para que ocorresse o aprendizado, o engajamento do aprendiz no grupo (baseado na sua participação no cotidiano do grupo) era imprescindível. Assim, percebemos que a aprendizagem é situada no contexto do grupo de capoeira angola e na participação dos sujeitos no cotidiano do grupo.
Como se aprende capoeira angola? O que torna o aprendizado/transmissão/difusão da capoeira angola (portanto, da cultura) possível?
Apesar da diversidade das pessoas, o cotidiano do grupo de capoeira angola “Eu Sou Angoleiro” não permitia compreendê-lo como um contexto onde imperava separação e diferenças. O grupo era dinâmico e, se o lugar (matriz do grupo) era fixo, as pessoas que o freqüentavam possuíam perfis diversificados e interagiam em outros lugares referentes às práticas que ocorriam no grupo também. Jovens, crianças, adultos, idosos, homens e mulheres deste grupo se misturam no espaço da ACESA, mas também nas rodas de capoeira em outros espaços (“filiais”) do grupo e de outros grupos de capoeira angola, bem como em eventos e rodas de capoeira angola e de outras manifestações de matriz africana (congado, candomblé, umbanda, dança-afro, maracatus, etc.). Desse modo, a trama cotidiana desembocava em interesses diferentes, mas também em interesses comuns. Observando o cotidiano do grupo era possível perceber as práticas centrais que produziam sociabilidades. A capoeira angola era uma delas, tendo centralidade no cotidiano dos integrantes do grupo. Assim, embora houvesse produção de demais práticas afins (dança-afro, samba-de-roda, percussão, eventos, apresentações), a capoeira angola ocorria cotidianamente sendo interesse comum de todos os integrantes.
Outro ponto percebido foi que as práticas de capoeira angola da ACESA eram, em sua maior parte, realizadas no espaço fechado (“academia” – na ACESA as pessoas se referem ao espaço como “casa”).
Mesmo os treinos e rodas de capoeira angola ocorrendo em espaço fechado e, muitas vezes, a partir de séries repetitivas de golpes e movimentos (treinos), ficou claro no grupo pesquisado que isto não era sinônimo de falta de criatividade, falta de imprevisibilidade ou de ausência de aprendizado. Pelo contrário, o incentivo à repetição dos movimentos durante os treinos (a partir da tentativa de ir copiando lentamente e silenciosamente a execução dos movimentos enquanto for vendo a demonstração dos veteranos), bem como à participação nas rodas do grupo (em que todos os participantes eram incentivados a jogar capoeira, cantar e tocar instrumentos a partir da observação/execução das atividades no momento), revelava uma perspectiva que não opunha tradição e inovação (ou convenção e criação de inovação).
Nas práticas de capoeira angola da ACESA - observar, copiar e repetir insistentemente e lentamente os movimentos, gestos, ritmos e demais ações dos veteranos - não eram atividades que se opunham ou “travavam” a criatividade do aprendiz, mas sim atividades que facilitavam o aprendizado da capoeira angola. Assim, copiar ou imitar não era um simples e mecânico processo de replicação, mas vinculava um complexo e progressivo alinhamento de observação de um modelo com a ação no mundo. Este alinhamento repousava no trabalho da improvisação. É por isto que existia criatividade até mesmo e especialmente na manutenção de uma estabelecida tradição. Nesse sentido, a continuidade da tradição é devida não a uma inércia passiva, mas sim à sua ativa regeneração. No grupo de capoeira angola pesquisado isto ficou claro, principalmente durante os treinos em que as pessoas copiavam os movimentos e comportamentos como forma de aprender a capoeira e que, nem por isso, estes movimentos e comportamentos ficavam completamente idênticos aos copiados. Nos fundamentos mais tradicionais da capoeira angola (relacionados, por exemplo, aos tipos de toques de berimbau para cada forma de jogar ou à maneira de executar certos golpes) houve, constantemente, uma re-atualização da tradição – os toques de berimbau, mesmo parecendo ser idênticos, apresentavam alterações ou sofriam influências do executor durante sua execução em função mesmo do momento de execução – que apresentava situações imprevisíveis e, portanto, exigia improvisação.
Outro ponto observado nas práticas de capoeira angola da ACESA, diz respeito à perspectiva que não contrapõe passado, presente e futuro, mas, pelo contrário, que os entrecruzam em um mesmo plano, ou seja, não há uma perspectiva linear de tempo. Isto pôde ser percebido, por exemplo, no respeito dos capoeiristas com as pessoas mais velhas, portanto, o passado não é visto como “o novo que caducou”. Durante um dos eventos do grupo em que participei, um mestre convidado (Mestre Índio) enfatizou, durante uma ‘roda de conversas’ sobre a capoeira angola, que o angoleiro é como um arqueólogo – sempre em busca de “tesouros antigos” -, disse, ainda, que o bom angoleiro “gosta das coisas velhas”.
Um bom angoleiro (um capoeirista “mandigueiro”) era aquele que, entre outras características, possuía a capacidade de combinar elementos tradicionais com novas e desafiadoras maneiras no seu jogo de capoeira e na sua maneira de existir como pessoa no mundo. Portanto, foi notável no grupo pesquisado que a prática da capoeira angola desenvolvia, também, uma concepção de “criatividade e improvisação cultural” que não pressupunha uma oposição entre tradição e modernidade e que era percebida, vivenciada e estabelecida no/pelo sujeito no seu processo de engajamento nas práticas de aprendizagem do grupo de capoeira angola.
Os treinos semanais eram ministrados pelos alunos veteranos (treinéis) do grupo que se disponibilizavam gratuitamente para esta função e que iam se revezando ao longo dos meses de acordo com a disponibilidade de cada um. Aos sábados os treinos de capoeira angola eram com o Mestre João e a roda também era coordenada por ele. Além de treinos de capoeira angola, na matriz do grupo ocorriam as aulas e ensaios de dança-afro da “Companhia Primitiva de Arte Negra” – formada pelos angoleiros e dançarinos da ACESA. Os treinos de percussão eram embutidos nas aulas de capoeira angola e dança-afro, já que no espaço não havia som mecânico e, portanto, a sonorização dos treinos era feita na hora pelos alunos e veteranos que iam se revezando nas atividades (execução de movimentos corporais, tocar instrumentos, cantar, etc.) enquanto, neste processo, iam aprendendo a tocar os instrumentos e a cantar as músicas de capoeira. As atividades de limpeza e organização da “casa” para o início e finalização dos treinos e rodas também era realizada pelos alunos veteranos e novatos participantes.
Para o treino havia um roteiro escrito pelo Mestre João que servia de guia para os treinéis. Apesar disto, nem todos seguiam o roteiro exatamente como estava escrito – o que não era necessariamente um problema, desde que os fundamentos da capoeira angola praticada pelo grupo fossem mantidos durante a realização do treino. Em geral, os treinos sempre começavam com a prática da percussão (ritmo) nos instrumentos da bateria e canto, seguida da prática de movimentos corporais (golpes, esquivas, movimentações em dupla e individual, e jogos de capoeira angola) e terminavam com um momento de ‘orações’ e ‘informes’. Uma parte dos treinos era em silêncio (podendo ser interrompido, por exemplo, quando algumas crianças tocavam algum instrumento, já que as crianças ficavam ‘soltas’ e podiam fazer o que estava sendo proposto pelo treino ou outra coisa que desejassem desde que não atrapalhassem o andamento do mesmo). O restante dos treinos era feito com o som dos instrumentos da bateria e/ou cantigas de capoeira sendo executados na hora por ao menos um dos participantes do treino – que ia revezando as atividades com outros participantes ao longo do treino. Notei que quando eu perguntava o que era para fazer ou o que queria dizer o nome do golpe (como fazer aquele golpe específico) as pessoas não respondiam verbalmente. Queriam sempre mostrar como era, sem falar nada diretamente no momento. Os intervalos entre uma coisa e outra eram feitos com o movimento de ‘dar a volta ao mundo’. No final havia um momento de jogo-de-dentro: sem tirar as mãos do chão; jogo-de-estudo: se errar repetia o movimento com o parceiro; jogo solto: era o jogo livre, sem regras pré-estabelecidas. Durante os treinos e rodas não havia separação da turma por níveis de aprendizagem: todos treinavam e jogavam capoeira angola juntos: mulheres, crianças, homens, idosos, adultos, jovens, veteranos, novatos, ou seja, havia um envolvimento dos principiantes.
As rodas também sempre começavam pela execução da música. Elas podiam começar com os treinéis, mestres convidados ou com o Mestre João cantando a ladainha. Durante a roda na ACESA o Mestre João ia apontando quem ia jogar com quem e todos tinham oportunidade de participar tocando, jogando e cantando. Após a roda de capoeira angola podia acontecer um samba-de-roda em que todos participavam dançando, cantando e/ou tocando. Como afirmavam muitos dos envolvidos na prática da capoeira angola no grupo, era o gosto pela capoeira angola e seus fundamentos, bem como o envolvimento na ACESA que os fazia participar. Entre as expectativas de alguns participantes o desejo de dar continuidade ao trabalho do grupo dando aulas de capoeira angola em outras ‘frentes de trabalho’ também estava presente.
A prática de capoeira angola no grupo era intensa. Sem contemplar os treinos e as rodas de capoeira angola do grupo, as práticas de capoeira angola que ocorriam no âmbito de outros espaços (angoleiros da ACESA jogavam capoeira em outras rodas da cidade, participavam em eventos de capoeira angola de outros grupos ou de eventos de grupos de manifestações de matriz africana em que a capoeira também estivesse presente), os outros modos de participação (como assistir/produzir vídeos ou livros/revistas sobre a capoeira angola da ACESA – o que foi realizado por alguns integrantes do grupo resultando no vídeo-documentário “Paz no Mundo Camará” e na revista “Angoleiro é o que eu Sou!” -, assistir/participar dos vídeos e debates sobre a capoeira angola, conversar sobre a capoeira angola e/ou temáticas afins, etc.), mostram a ampla gama de possibilidades de participação/aprendizagem das pessoas na capoeira angola da ACESA. É claro que a existência desse rol de possibilidades de práticas de capoeira angola não significava homogeneidade de envolvimento e de investimento na participação, nem que todos tinham oportunidades iguais. Nesses contextos havia disputas e relações de poder em torno da participação na capoeira angola.
Em outras palavras: havia práticas de ensino da capoeira angola, mas a estrutura que orientava a aprendizagem era a participação na prática social, ou seja, os recursos de estruturação para a aprendizagem vinham de uma variedade de fontes, não apenas da atividade pedagógica. Sendo assim, o envolvimento direto, contínuo e, por vezes, compulsivo das pessoas na capoeira angola é que permitia que elas fossem incorporando a habilidade. Era a experiência do e no grupo de capoeira angola que permitia a aprendizagem por meio de uma “participação centrípeta na prática”.
Mais do que o tempo de envolvimento das pessoas com a prática da capoeira angola, o que estava em questão eram os seus modos de estruturação. Portanto, a prática de ensino reduzida, a aprendizagem na prática, os diferentes níveis de participação na capoeira angola e os aspectos identitários envolvidos, permitiram tratar o grupo como uma “comunidade de prática” da capoeira angola.
De acordo com Lave e Wenger (1991), não há atividade que não seja situada, e isso significa: Ênfase no entendimento compreensivo que envolveu a pessoa como totalidade, em atividade e com o mundo; entender que agente, atividade e mundo se constituem mutuamente, ou seja, não entender a pessoa apenas como um corpo receptor de conhecimento dos fatos do mundo. É importante não entender a atividade situada e nem a aprendizagem situada, como particularismos ou como limitadas a um tempo e tarefas dadas, ou que são situadas porque estão localizadas em um determinado tempo e espaço.


O JOGO DE PODER

Procurando conhecer o contexto de produção da capoeira angola no grupo pude percebê-lo como um contexto em que operavam diferenças de engajamento em determinadas atividades em função das diferenças de gênero e, principalmente, em função da participação das pessoas nas práticas de capoeira angola do grupo.
A pesquisa de campo destacou a legitimidade dos homens em determinadas atividades (como maior participação na bateria durante as rodas, principalmente tocando o berimbau “gunga” – que coordena o tipo de jogo de capoeira a ser realizado no momento -, ou durante o samba-de-roda em que houve maior participação de homens tocando instrumentos e “puxando” as cantigas) e das mulheres (na organização administrativa e dos eventos do grupo, escolha de figurinos para as apresentações de dança-afro, dançando no samba-de-roda).
Como em outros contextos brasileiros a participação feminina nas práticas de capoeira angola não se dava de forma “natural” e tranqüila. Exigia, ao contrário, de homens e mulheres a superação de barreiras. Nesse caso, o que estava em questão eram as identidades. Deste modo, apesar das mulheres serem incentivadas a tocarem instrumentos e participarem dos treinos e rodas, durante a prática da capoeira angola, os conflitos de gênero ficavam evidentes na própria expressão corporal dos participantes.
Apesar disto, o desenvolvimento da habilidade de capoeirista angoleira (tocando instrumentos, cantando, jogando capoeira angola, participando dos treinos e rodas) possibilitava a obtenção de legitimidade das mulheres para realizarem determinadas atividades.
Além da questão de gênero, outros aspectos marcavam a legitimidade no grupo. Na ACESA, para se tornar participante periférico da capoeira angola (que, conforme Lave e Wenger, 1991, é o que permite o engajamento/aprendizagem,) o mais básico requisito era participar. O fato de o participante ser do sexo masculino facilitava a obtenção de legitimidade para realizar algumas atividades, mas era a participação intensa nas práticas cotidianas do grupo que possibilitava que a pessoa se tornasse um participante periférico. Deste modo, a pesquisa de campo mostrou que na ACESA, legitimidade significava a possibilidade de ação (de fazer algo) dentro do grupo e estava relacionada à intensidade de participação do sujeito, à sua habilidade nas práticas da capoeira angola e ao tempo de engajamento nas práticas do grupo (o que determinava quem era veterano ou novato na comunidade de prática). Por este motivo, era muito difícil ficar no espaço da ACESA e não participar em nada.
Deste modo, a pessoa era instigada a querer tornar-se um participante periférico desde o momento em que estivesse dentro do espaço do grupo “Eu Sou Angoleiro” – o que dependia dela começar a participar do que estivesse acontecendo no momento e, posteriormente, continuar freqüentando/participando no/do grupo. “Participar” significava, portanto, estar presente durante a realização das práticas de capoeira angola e “entrar no jogo”, ou seja, estar atento e interagindo no contexto, mesmo que apenas observando. Na medida em que a pessoa fosse adquirindo habilidade em alguma atividade durante sua participação ia, também, aumentando sua legitimidade para realizar outras atividades no grupo.
Este processo era permeado por conflitos e disputas. O ‘jogo de poder’ era freqüente e aprender a jogá-lo fazia parte do processo de engajamento do sujeito no grupo. Além disso, nota-se que este ‘jogo de poder’ ocorria, principalmente, durante o próprio jogo de capoeira, inclusive durante a execução dos instrumentos da bateria (seja nos treinos ou rodas) - ou estava diretamente relacionado ao jogo de capoeira onde havia momentos em que o sujeito aprendia também o que podia ou não podia fazer com seu corpo e com quem podia ou não podia fazer. Assim, o corpo era, também, durante o jogo de capoeira, instrumento de obtenção de legitimação. Isso não quer dizer que em todo jogo de capoeira que ocorresse houvesse sempre um ‘jogo de poder’, mas sim que durante os jogos de poder (que ocorriam principalmente durante os jogos de capoeira) o corpo participava intensamente no processo de definição do que podia ou não ser feito e de quem/com quem podia ou não podia fazer.  Deste modo, o treino corporal (docilização do corpo – em que a pessoa também aprende novas habilidades corporais) não era antítese de agência no grupo e sim facilitador de obtenção desta agência e, portanto, de legitimidade).
Por outro lado, podia haver um sujeito que necessariamente não estivesse jogando capoeira ou que não estivesse jogando bem a capoeira (como um mestre idoso, por exemplo), mas que por participar de outras práticas do grupo ou por sua legitimidade no “mundo da capoeiragem” tinha legitimidade. Isto mostrava que “participar” não queria dizer necessariamente estar jogando capoeira e ainda, que a participação se estendia para outras práticas de capoeira que ultrapassavam o espaço físico do grupo.  E esta intensidade de engajamento no grupo também podia englobar a participação nas práticas afins que contribuíam com o processo de aprendizagem da capoeira angola. Portanto, este ‘jogo de poder’ era um jogo de obtenção de legitimidade, de aprender como participar para ir, neste processo, tornando-se um veterano no grupo.

A CORPOREIDADE

Ao participar de um dos treinos da ACESA no início da minha participação no grupo fiquei um pouco impaciente porque era muito diferente do que eu estava acostumada: deveríamos fazer os movimentos corporais lentamente, em silêncio e fazendo um trabalho com a respiração como se fosse uma espécie de yoga. Houve um momento de treino de prática das ‘chamadas’ e o mestre pediu para eu mostrar com um colega o movimento no centro da sala. Aliás, isso era comum: mostrar no centro da roda com um colega ou mesmo sozinho o que era para ser feito para os demais observarem. Para Ingold (2001), o processo de aprendizado por “redescobrimento dirigido” é realizado mais corretamente através da ação de mostrar. Mostrar alguma coisa a alguém, conforme coloca o autor, é fazer esta coisa se tornar presente para esta pessoa, de modo que ela possa apreendê-la diretamente, seja olhando, ouvindo ou sentindo. Neste caso, o papel do tutor é criar situações nas quais o iniciante é instruído a cuidar especialmente deste ou daquele aspecto do que pode ser visto, tocado ou ouvido, para poder assim ‘pegar o jeito’ da coisa. Aprender neste sentido é equivalente a uma “educação da atenção”.
Deste modo, a pesquisa de campo mostrou que durante o processo de aprendizagem da capoeira angola, os tutores criavam situações que possibilitavam a educação da atenção dos iniciantes que neste processo iam “pegando o jeito” de praticar a capoeira angola.
Ainda durante os treinos e rodas de capoeira angola do grupo, notei que as pessoas relutavam em dizer verbalmente o que era para ser feito corporalmente e que havia poucas conversas verbais entre os participantes. A comunicação era enfatizada mais pela corporeidade e pela musicalidade, portanto, nas práticas de aprendizagem da capoeira angola no grupo o corpo se destacava como fator de comunicação e, portanto, de subjetivação.
A noção moderna de corpo-objeto possibilitou a idéia de si, sendo o corpo fator de individuação. Isso significa que temos um corpo, mas quando falamos que somos um corpo estamos fazendo outra passagem; neste ponto nosso corpo se confunde com nossa pessoa. Ele se converte na nossa forma de estar no mundo. Deste modo, é notável que durante as práticas de aprendizagem da capoeira angola no grupo pesquisado os veteranos iam educando a atenção dos iniciantes também em relação à sua percepção “do corpo como sua forma de estar no mundo”. E, por isto, esta prática ia, portanto, modificando a maneira do sujeito existir no mundo.
Durante o treino de capoeira angola passamos para um momento de fazer movimentos e o mestre pediu que cada vez um fosse à frente da bateria e fizesse “mandingas” gingando, soltando o corpo, enquanto o restante tentava acompanhar imitando os movimentos. Disse que nosso corpo é possuidor de um saber.
Esta experiência de incorporação da prática da capoeira angola que ocorreu durante a pesquisa de campo fez, inclusive, com que eu parasse de freqüentar o grupo de capoeira do qual eu fazia parte há oito anos, em função do meu posterior estranhamento corporal para voltar a fazer as práticas de capoeira da forma como eu fazia antes de freqüentar a ACESA. Assim, os relatos do caderno de campo mostram o que podia ou não podia um corpo na capoeira angola no grupo pesquisado (como, por exemplo, no caso em que não pude jogar na roda porque entrei para jogar no momento errado ou no meu corpo que não queria mais praticar a capoeira de determinada maneira e que, portanto, definiu os meus rumos a partir de então).
Ao participar realizando uma tarefa como cantar, sambar ou tocar um instrumento, o sujeito se incorporava no sentido de que sua individualidade era constituída juntamente com sua ação como o corpo que participava da prática no momento presente. Daí a importância e a ênfase dos treinéis na participação (executando tarefas no treino) até mesmo de visitantes.

A ESPIRITUALIDADE

A pesquisa de campo mostrou que o silêncio verbal e a musicalidade durante as práticas de capoeira angola no grupo pesquisado eram fatores importantes no processo de aprendizagem desta prática social, estando relacionados ao desenvolvimento da espiritualidade e do ritual durante a prática da capoeira angola. Lembrei-me de um treino em que, durante o momento de tocar os instrumentos da bateria, pareceu para todos os participantes do treino, que eles estavam tocando a si mesmos por conta própria! Porque, de repente ocorreu “uma energia” que possibilitou que tocássemos com muita facilidade, rapidez e fazendo muitos improvisos. O treinel Dimas até comentou neste dia que com certeza as entidades estavam atuando e no final do treino agradeceu a todos os presentes, inclusive às entidades.
A constituição das identidades dos sujeitos era marcante na medida em que iam se engajando no grupo de capoeira angola. Dentre as práticas de aprendizagem da capoeira angola no grupo, relacionar-se com a espiritualidade era parte do processo de constituição das identidades. No grupo, o auge desse esforço era expresso na organização do “ritual” - a roda de capoeira.
Sempre após os treinos havia um momento de ‘orações’. As pessoas ficavam de mãos dadas em círculo e cada uma falava uma palavra positiva que viesse na cabeça para gerar uma energia boa. Em geral, sempre eram palavras subjetivas, como: amor, união, vitória, luz, etc. ou de nomes de entidades: Jesus, Krishna, Ogum, etc. Em outro momento, eu estava treinando com um lenço na cabeça e de repente o lenço caiu. O treinel Renato parou de executar o movimento comigo e disse que era para eu amarrar o lenço na cabeça novamente, que não era bom jogar sem proteção na cabeça. Depois do treino, em particular, perguntei o porquê de ter que ficar com o lenço na cabeça. Ele me respondeu que na cabeça temos um centro energético muito importante vulnerável às influências espirituais negativas e que era bom que eu o mantivesse ‘fechado’ com o lenço para que a energia que emanasse da minha cabeça ficasse concentrada em mim mesma, protegendo.   
Portanto, a espiritualidade era fator importante das práticas de aprendizagem da capoeira angola no grupo pesquisado e, no processo de sua ritualização, os iniciantes vão aprendendo a relacionar-se com a espiritualidade na medida em que vão constituindo suas identidades.

A MUSICALIDADE

Os treinos da ACESA sempre começavam com a prática de ritmo e canto na bateria, ou seja, primeiro todos tocavam e cantavam para depois passarem para os movimentos corporais. E, mesmo durante os movimentos às vezes alguém ia e tocava algum instrumento ou cantava uma cantiga de capoeira. Para quem estivesse tocando e cantando no treino, cada hora um tinha que participar cantando um verso referente à música que começava a ser cantada e já estava em execução. Se não cantasse, o tempo que seria para a pessoa cantar o verso ficava só com os instrumentos tocando, ninguém tomava o lugar da pessoa para cantar. Percebe-se que mais do que falar sobre a prática, a comunicação estabelecida em campo (como linguagem corporal ampla) permitia que os praticantes fossem organizando/estruturando a prática social, orientando-se e aprendendo nela. Nesse processo a musicalidade assumia papel importante, já que caracterizava uma linguagem partilhada pelo grupo. Em campo, as cantigas, os toques de berimbau e demais ritmos dos instrumentos executados durante os treinos e rodas do grupo tinham também esta função comunicativa.
Portanto, era notável a importância da música que, no grupo pesquisado, era definida pelo ritmo dos instrumentos percussivos e pela melodia e letra das cantigas. O que se tocava e cantava, bem como a maneira de tocar e cantar e o momento de fazê-lo eram pontos fundamentais para que um bom jogo de capoeira pudesse acontecer. Além disso, percebeu-se que a música era, embora não exclusivamente, o próprio processo de comunicação entre os sujeitos durante os treinos ou durante o jogo de capoeira. Daí a importância de prestar atenção ao que estava sendo cantado ou tocado, já que um tipo determinado de toque no berimbau, por exemplo, exigia que se mudasse completamente o jogo de capoeira no momento.
            Outro aspecto das práticas de aprendizagem da capoeira angola que a pesquisa de campo mostrou é a ênfase na relação entre as entidades espirituais e a musicalidade na capoeira. Era marcante a ligação direta entre musicalidade e espiritualidade na capoeira angola do grupo e que um tipo de ‘sujeito’ (agente) podia atuar no outro e vice-versa (os instrumentos como agentes ‘musicais’ sendo tocados pelos agentes espirituais e os agentes espirituais que são ‘tocados’ pelos instrumentos). Deste modo, os instrumentos também possuíam condição de ‘sujeitos’ (de agentes) no grupo de capoeira angola pesquisado e ter cuidado com eles, saber manuseá-los e construí-los fazia parte do processo de aprendizagem da capoeira angola no grupo.
            Assim, saber o que, como e quando tocar e cantar eram fatores que aumentavam a legitimidade do aprendiz no grupo de forma bem específica, já que muitas vezes o capoeirista não era tão hábil no jogo de capoeira em si, mas por ser muito hábil em cantar e tocar instrumentos conseguia se destacar no grupo. Os angoleiros veteranos deviam possuir, portanto, habilidade ‘musical’ neste sentido. É por este motivo, também, que apenas capoeiristas veteranos ou mestres de capoeira possuíam prioridade para tocar o berimbau gunga (que é o berimbau que definia como e quando os angoleiros deveriam jogar e como, quando e o que os demais componentes da bateria deveriam tocar e/ou cantar). E, esta habilidade pressupunha também possuir conhecimento sobre como se dava a atuação das entidades espirituais em relação à musicalidade na capoeira. Por este motivo, começar os treinos sempre com a prática ‘musical’ era um aspecto importante para que o novato fosse, desde o início, aprendendo a se relacionar com estes ‘sujeitos’ musicais (os instrumentos) e fosse, neste processo, desenvolvendo sua habilidade musical.
            Certo dia, antes do início da roda, mestre João falou com o grupo sobre como “a execução dos instrumentos e cantigas na bateria deveria ser bem feita porque isto ditava o clima espiritual da roda, a sua energia”.
            O cuidado com os instrumentos e sua correta localização na bateria durante os treinos e rodas do grupo era marcante. Sendo assim, as coisas (no caso, os instrumentos), ontologicamente não estavam separadas dos conceitos que se tinha delas: o ‘berimbau-instrumento-material’ não estava separado do ‘berimbau-conceito-ideal’ porque sendo sujeito ele era, em sua materialidade e atuação no mundo, o próprio conceito. O ‘berimbau gunga’ na ACESA, portanto, era diferente do berimbau gunga no grupo Bantus porque eram ‘sujeitos’ (agentes) diferentes. Quando alguém chegava a um treino ou roda da ACESA com um berimbau que não era de lá, todos ficavam curiosos para conhecer o som do berimbau, qual berimbau era aquele, o que ele fazia. Assim, aprender a ser um ‘angoleiro’ também era aprender a ser uma pessoa que lidava a todo o tempo com a “alteridade das coisas”, portanto, que também pensava e agia através das coisas.


A ENCRUZILHADA DE PRÁTICAS

            A partir da pesquisa de campo percebe-se que a interlocução da prática da capoeira angola com a prática de outras atividades é constante. Assim, aprender capoeira angola no grupo é também, aprender outras práticas afins. Em campo, a relação com a dança-afro, o samba-de-roda e com algumas atividades relacionadas às práticas filosófico-corporais do oriente (meditação, yoga) era mais visível, já que também havia aulas de dança-afro na ACESA e relaxamentos com meditação, bem como samba-de-roda depois de algumas rodas de capoeira do grupo.
            Assim, os angoleiros são os sujeitos que também participam destas atividades (e, deste modo, vão aprendendo também a realizá-las), enfim, são sujeitos ‘multi-habilidosos’ ou que estão inseridos em um campo de aprendizagens onde ocorre o entrecruzamento de diversas práticas. Nota-se, também, que estas práticas possuem algumas semelhanças com a capoeira angola em si: algumas são de origem afro-brasileira (congado, tambor de crioula), enfatizam a musicalidade, a corporeidade, os valores humanos ou a espiritualidade (forró, reggae, yoga, vegetarianismo, meditação).
Desta maneira, a aprendizagem da capoeira angola não era um processo que tinha como ser finalizado, a pessoa nunca parava de aprender novas habilidades, estava sempre na encruzilhada de diversas atividades que eram parte do aprendizado da capoeira angola. Assim, “a capoeira angola era o universo, o jogo da vida”, e aprender a praticá-la, era um processo contínuo e sem fim, era também aprender a viver.

CAPOEIRA COM VALORES HUMANOS

            A pesquisa de campo realizada na ACESA mostrou a maneira como os sujeitos tratavam uns aos outros e a ênfase em estimular o sujeito a participar voluntariamente das atividades mais corriqueiras, seja servindo ou ajudando o próximo. Esta “educação da atenção” da pessoa para agir em prol das necessidades do coletivo era aspecto marcante nas práticas de aprendizagem da capoeira angola.
            Além disso, percebeu-se que era justamente participando também na realização destas atividades corriqueiras que o sujeito ia se engajando no grupo e, neste processo, ia se percebendo como sendo o grupo que também ajudava a constituir. Deste modo, a pessoa aprendia a ‘habilidade da cortesia’ - que era uma espécie de pré-ocupação com o bem-estar e com a participação do próximo e do coletivo, mas de um ‘próximo’ e de um ‘coletivo’ que não eram compreendidos como algo contrário ao próprio indivíduo.
Esta maneira de relacionar-se que permeava as práticas de aprendizagem da capoeira angola no grupo ia constituindo as identidades dos aprendizes. De acordo com Lave e Wenger (1991), “a aprendizagem envolve a pessoa por inteiro”, de modo que “atividades, tarefas, funções e entendimento não existem isoladamente”. Segundo os autores (1991), “esses sistemas de relações surgem e são reproduzidos e desenvolvidos em comunidades sociais”, de modo que a pessoa é definida por, bem como define essas relações (e aprende). Para Lave e Wenger (1991), ignorar esse aspecto da aprendizagem é negligenciar o fato de que a “aprendizagem envolve a construção de identidades” e de que “identidade, conhecimento e membro social acarretam/causam (entail) um ao outro”. Como afirma os autores (1991) a “aprendizagem e um senso de identidade são inseparáveis: eles são aspectos de um mesmo fenômeno”.
Portanto, a constituição do angoleiro se dava a partir da aprendizagem de um ‘hábito cortês’ – uma habilidade que a pessoa ia constituindo e ajudava a constituir em que operava uma lógica prática de uma individualidade que não era antítese de coletividade. Assim, aprender capoeira angola no grupo era, também, aprender valores humanos. O grau de habilitação do aprendiz era percebido, também, na sua maneira de jogar capoeira angola com os outros e se comportar durante as práticas de aprendizagem da capoeira, ou seja, se ele sabia o momento certo de começar o jogo na roda, seu cuidado em permitir que o ‘oponente’ também participasse do ‘diálogo’ durante o jogo e não ficasse apenas “querendo entrar no oponente, fazendo jogo duro o tempo todo”, o cuidado de saber cantar e tocar no momento certo “para não atropelar ninguém que estivesse cantando e tocando” ou a receptividade e consideração com os convidados das rodas e eventos.

VETERANOS E/OU APRENDIZES

A perspectiva em que ‘observar’ o outro fazendo o movimento não era algo separado do processo de ‘executar’ o movimento foi recorrente em campo. O aprendizado ocorria também na observação que se dava no contexto da prática em que executar é observar e vice-versa. Esta maneira de ensinar (mostrando) e aprender (observar participando no contexto do grupo de capoeira angola) ofereceu uma abertura da concepção de aprendizado, evidenciando a ação como inseparável da vida da comunidade que a desenvolve, tornando possível ligar os indivíduos à comunidade e o cognitivo ao social. Esta abordagem recusava reduzir o aprendizado a uma capacidade/atividade mental individual, contrariando, também, a perspectiva cognitivista da aquisição de conhecimento (idem).
No grupo pesquisado o aprendizado ocorria em um processo em que veteranos iam educando a atenção dos novatos durante as práticas de aprendizagem. Ultrapassando as noções convencionais de atenção e de aprendizagem, Ingold (2001) afirma que a educação da atenção (ou processo de afinação/coordenação do sistema perceptual) é a própria aprendizagem e que esta se situa na prática. Desse modo, a qualidade da atenção é equivalente ao que o autor (2000) — citando a performance musical — chama de feeling (“tocar é sentir”). Para Ingold (2001), agir é prestar atenção, ou seja, “a atenção do agente é totalmente absorvida na ação”. As contribuições do autor (2001), associadas às observações de campo, permitiram-me entender a incorporação da habilidade do capoeirista — entendida como responsividade de “movimentos para as condições do entorno que nunca são as mesmas de um momento para o outro” (INGOLD, 2001) – como um tipo de educação da atenção, e não o contrário. Portanto, os iniciantes só se tornavam praticantes habilitados quando eram capazes de afinar continuamente seus movimentos segundo as perturbações do ambiente, no caso, segundo as demandas que cada atividade exigia para sua realização.
Constituir um corpo capaz de enfrentar a roda de capoeira e de jogar, tocar e cantar com o outro em diferentes contextos relacionados à capoeira angola eram características importantes para que as pessoas se tornassem veteranos nesta prática social. Todavia, perceber os próprios movimentos, perceber os movimentos dos outros jogadores e agir (prontamente) durante o jogo parecia óbvio apenas para os jogadores experientes. Os iniciantes tinham dificuldade de captar os indícios do corpo dos outros praticantes, a musicalidade da roda e de antecipar ações. Às vezes, mesmo quando chegavam a percebê-los, não conseguiam, em tempo hábil, antecipar-se ao outro. Mas, para os praticantes veteranos/habilidosos, o ritmo dos instrumentos, o canto e o corpo dos outros praticantes eram quase uma extensão do próprio corpo. Isso porque a percepção os permitia “obter características críticas do ambiente” que os iniciantes simplesmente falhavam em notar. Nesse caso, o que estava em questão era aprender e aprender a partir da percepção das diferenças. Como afirma Bateson (1986) não existe aprendizagem (ação) sem a percepção da diferença, ou seja, o processo de conhecimento é um processo comparativo. Os relatos possibilitam compreender também, que não estava em jogo na capoeira angola a assimilação passiva de um programa motor definido, mas a aprendizagem de uma relação, da qual era preciso considerar a dinâmica inteira: eu, os instrumentos musicais, o outro, o contexto.
Participando da capoeira angola de forma mais qualificada (o que significava a incorporação de certas maneiras de se relacionar entre experientes e aprendizes, certas práticas de musicalidade e o domínio da ação) e em contexto mais amplo (rodas e eventos de ouros grupos de capoeira angola e práticas afins, por exemplo) as pessoas iam ganhando visibilidade e podiam até conseguir oportunidade de começar a roda tocando o berimbau gunga ou cantando uma ladainha – o que era feito prioritariamente por veteranos.
Mas essas pessoas não jogavam capoeira angola com foco na aprendizagem. Elas buscavam a participação. Como pude observar nos jogos de capoeira angola do grupo, a aprendizagem era uma conseqüência do engajamento na prática. Do mesmo modo, a mudança no modo de participação, que significava aprendizagem, significava também maior responsabilidade: organização da roda e coordenação de treinos, toque de instrumentos e canto durante as rodas, organização de eventos, realização de projetos para o grupo, produção da prática, etc.
É importante ressaltar que jogar não constituía a única atividade da capoeira angola. A capoeira angola é plural e a habilidade constituída no jogo era uma dimensão da participação na prática. Portanto, no grupo, a circulação de conhecimento/habilidade não se restringia à participação como jogador de capoeira angola, ainda que essa fosse a mais marcante. O currículo de aprendizagem da capoeira angola envolvia outras formas de engajamento e a participação periférica não ocorria apenas no jogo. Aprendizagens de artesão (confecção de instrumentos), de treinéis, de compositores das cantigas, de percussionistas, etc. também ocorriam cotidianamente.
            Durante minha participação no grupo o tema da transmissão da tradição na capoeira angola e da importância de manutenção da ancestralidade foi constante, principalmente nas falas dos mestres de capoeira em eventos que o grupo realizou. Assim, esta maneira de aprender e de ensinar a capoeira angola colocava como primordial o respeito aos ‘ancestrais’, à geração anterior (aos idosos), já que eram eles os que constituíram e que, permaneciam constituindo, os ambientes de prática da capoeira angola. Esta ancestralidade reverenciada no presente por meio da prática da capoeira angola, inclusive, era referente aos saberes africanos e/ou afro-brasileiros que permeavam a prática da capoeira angola, não se restringindo, portanto, a poucas gerações anteriores.   
Assim, na passagem para as gerações seguintes da ‘tradição’ e do ‘saber’ presentes na capoeira angola, percebe-se que a contribuição da geração anterior (‘ancestral’) para a cognoscibilidade da seguinte se dava pela criação, através de suas atividades, de ambientes de prática dentro dos quais as sucessoras desenvolviam suas próprias habilidades incorporadas de percepção e ação. A cognição, neste sentido, era um processo em tempo real, ou seja, era participando no contexto do grupo de capoeira angola que a pessoa aprendia a praticá-la. O que os mais velhos transmitiam eram os contextos para a prática da capoeira angola constituídos ao longo de suas vidas por suas atividades para que os angoleiros seguintes pudessem dar continuidade à constituição deste processo de produção desta prática social. Como a realização das tarefas no grupo era constituída pela participação de todas as pessoas engajadas na prática da capoeira angola (por exemplo, treinéis que se revezavam para puxar os treinos, o mestre que passava o roteiro dos treinos, os novatos e veteranos que participavam, as entidades espirituais, os instrumentos), cada uma desempenhava um papel no estabelecimento das condições de desenvolvimento de todos os demais indivíduos.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na capoeira angola, o modo de aprender situado (nas relações entre pares e no compartilhamento das práticas) é hegemônico. Nas práticas de capoeira angola cotidianas os praticantes aprendem a capoeira angola e nela constituem identidades, significados, disposições corporais, tipos de atenção, emoções e conhecimentos. Como parte das redes de sociabilidade, os praticantes incorporavam o jogo de capoeira angola.
A cultura da capoeira angola marca o corpo dos praticantes ao mesmo tempo em que é marcada por ele. O que os mais velhos transmitiam eram os contextos para a prática da capoeira angola constituídos ao longo de suas vidas por suas atividades para que os angoleiros seguintes pudessem dar continuidade à constituição deste processo de produção desta prática social. Como a realização das tarefas no grupo era constituída pela participação de todas as pessoas engajadas na prática da capoeira angola, cada uma desempenhava um papel no estabelecimento das condições de desenvolvimento de todos os demais indivíduos.
A aprendizagem é uma maneira de ser no mundo social, não uma maneira para se conhecer o mundo. Os aprendizes, como observadores de maneira mais geral, estão comprometidos nos contextos de sua aprendizagem e no mundo social mais amplo dentro do qual estes contextos são produzidos. Sem estes compromissos não existe aprendizagem e onde o compromisso está sustentado a aprendizagem ocorrerá.
O aprender não está meramente situado dentro da prática - como se fosse algum processo independente objetivável; aprendizagem é uma parte integral da prática social gerada na vivência do mundo. 
Tal proposição não nega que onde haja ensino haja aprendizagem, mas não toma a instrução intencional em si como a fonte ou causa da aprendizagem.
Esta perspectiva informa sobre possíveis novos horizontes sobre os processos de aprendizagem que estejam focados nos aspectos-chave da experiência que podem ser subestimados. Para isto é necessário enfatizar a mudança do centro de analítico do indivíduo como um 'estudante' (receptor de informações) para o aprender como participação em um mundo social e, do conceito de processo cognitivo para um ponto de vista mais amplo de prática social.

REFERÊNCIAS

BATESON, Gregory. Mente e Natureza. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1986.

INGOLD, Tim. The Perception of the Environment. Essays in livelihood, dwelling and skill. London: Routledge, 2000.

INGOLD, T. From the transmission of representations to the education of attention. In. H. Whitehouse (ed.), The debated mind: evolutionary psychology versus ethnography. Oxford: Berg, 2001, p. 113-153.

LAVE, J; WENGER; E. Situated learning: legitimate peripheral participation. New York: Cambridge University Press, 1991.

LUCE, Patrícia Campos. Eu Sou Angoleiro: A aprendizagem da/na capoeira angola e suas relações com o lazer. 2010. 119f. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional, Belo Horizonte.

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