ATROPÓLOGOS E TURISTAS: possíveis diálogos sobre o deslocamento




A preocupação com a origem, a realidade e o destino do homem esteve presente em vários povos e sociedades. A história da antropologia possui períodos marcados pelas peculiaridades de cada época. Até 1835, há que se tomar como contribuição remota, mas significativa, toda produção do pensamento da humanidade voltada para a explicação e compreensão da existência do homem no universo. Paul Mercier (1974, p.19) aponta que,

[...] o fato importante é que toda sociedade, tendo ou não atingido a fase científica, construiu uma antropologia a seu jeito: toda organização social, toda cultura tem sido interpretada pelos homens que dela paticipam; e mais, as próprias noções de organização social e de cultura podem, elas mesmas, ser objeto de reflexão. Sob este ponto de vista a pré-história da antropologia é longa, tão longa quanto a história da humanidade. Esta antropologia ‘espontânea’ não pode ser separada do conjunto de interpretações que o homem elabora a respeito de sua própria condição e está, em geral, ligada a uma cosmologia.

Nesse sentido é que se pode dizer que todas as manifestações culturais do homem através dos tempos, as mais longínquas que sejam, apresentam-se como contribuições efetivas à constituição da antropologia. O aprimoramento da navegação, por exemplo, significou o aumento das possibilidades de relações interculturais, a difusão de idéias e a soma de aprendizagem. “O desenvolvimento da antropologia cultural deveu-se principalmente às grandes descobertas marítimas. Durante o século XVI a Europa foi invadida por escritos e crônicas a respeito dos povos até então desconhecidos.” (MELLO, 2009, p. 187).

Em resumo, incansáveis viajantes e diligentes observadores, ambos possuídos de luminar confiança em seu destino, fosse este secular ou religioso, discorreram sobre o tema de sempre: afinidades e diferenças entre os homens e seus mundos sociais e culturais. E se as idéias preconcebidas, as considerações precipitadas e um forte sabor passional, de humildade ou de infantilismo permeiam o conteúdo das páginas escritas, nem por isso deixam seus lugares de honra. (BARBACHANO, 1965, p. 159).

Interessante observar como a antropologia, ao longo de sua formação, passou a possuir forte relação com os deslocamentos e/ou com as viagens. Clifford (1998) aponta que ao fim do século XIX, nada garantia, a priori, o status do etnógrafo como o melhor intérprete da vida nativa – em oposição ao viajante, e especialmente ao missionário e ao administrador, alguns dos quais haviam estado no campo por muito mais tempo e possuíam melhores contatos e mais habilidade na língua nativa. Foi a partir de Malinowski (década de 1920 até a primeira metade do século XX) que a legitimação do pesquisador de campo se efetivou com uma nova fusão de teoria geral com pesquisa empírica, de análise cultural com descrição etnográfica. “As abstrações antropológicas, para serem válidas, deviam estar baseadas, sempre que possível, em descrições culturais intensivas feitas por acadêmicos qualificados. [...] o novo estilo havia se tornado popular, sendo institucionalizado e materializado em práticas textuais específicas”. (CLIFFORD, 1998, p. 21). A observação participante passa a ser o método de pesquisa característico da antropologia – tornando inseparável a sua relação com as viagens e/ou com os deslocamentos do antropólogo, sejam geográficos, de pontos de vista ou conceituais.

A observação participante obriga seus praticantes a experimentar, tanto em termos físicos quanto intelectuais, as vicissitudes da tradução. Ela requer um árduo aprendizado lingüístico, algum grau de envolvimento direto e conversação, e freqüentemente um “desarranjo” das expectativas pessoais e culturais. [...] A experiência real, cercada como é pelas contingências, raramente sobrevive a esse ideal; mas como meio de produzir conhecimento a partir de um intenso envolvimento intersubjetivo, a prática da etnografia mantém um certo status exemplar. [...] O desenvolvimento da ciência etnográfica não pode, em última análise, ser compreendido em separado de um debate político-epistemológico mais geral sobre a escrita e a representação da alteridade. [...] deve-se ter em mente o fato de que a etnografia está, do começo ao fim, imersa na escrita. Esta escrita inclui, no mínimo, uma tradução da experiência para a forma textual. (CLIFFORD, 1998, p. 20-21).


A discussão que se segue propõe abordar brevemente as possíveis contribuições de alguns dos autores da teoria antropológica contemporânea para a compreensão de algumas questões do fenômeno turístico na atualidade. Se no passado, os relatos dos viajantes contribuíram para a formação da antropologia, como a antropologia contemporânea pode contribuir para a compreensão das viagens turísticas? Como o debate antropológico atual pode contribuir nas discussões sobre a gestão do turismo? Ou ainda, quais são as luzes que a antropologia atual pode lançar sobre as relações que ocorrem entre turistas e ‘nativos’? Será que há ainda espaço para os atuais relatos e experiências dos viajantes também serem levados a sério no debate antropológico contemporâneo?

Quando comecei a estudar alguns dos autores da teoria antropológica contemporânea o que mais me fascinou foram as perspectivas propostas por eles para compreendermos melhor os incômodos causados pela relação com a diferença, com o ‘outro’, a partir do questionamento sobre as nossas próprias certezas ‘ocidentais’, nossos etnocentrismos e egocentrismos utilizados para explicar a diferença. As discussões sobre a experiência e autoridade etnográficas também apontaram para uma nova possibilidade de descrição sobre o ‘outro’ e de repensarmos nós mesmos nestas relações. Estas questões me fizeram abrir um leque de possibilidades para pensar, também, o turismo , enfocando uma possibilidade de compreender as assimetrias existentes nas relações entre hospedeiros e visitantes e entre as políticas públicas de turismo e os interesses dos ‘nativos’.

Para começar esta breve reflexão sobre o turismo e a antropologia, levanto os apontamentos de Marshall Sahlins (1997 e 2004) quando aborda a imagem negativa dos povos primitivos que era corrente nas ciências sociais. O autor mostra que estas sociedades não são ‘economias de subsitência’ em um sentindo perjorativo. Ele mostra que nelas, a razão simbólica prevalece sobre a razão material: por exemplo, o excedente não é dado necessariamente pelos bens materiais e sim pelo tempo livre. O que vestir ou o que comer no mundo primitivo são necessidades que para nós demandariam uma razão prática, mas lá demandam uma razão simbólica. Assim, o autor critica a noção ocidental que quer enxergar e enquadrar todos os povos a partir do paradigma da produção. Ele aponta que ao invés da razão prática (que quer explicar toda conduta social em termos de utilidade), possuímos razões simbólicas. Cada local, portanto, possui seus costumes e as coisas mais práticas, do cotidiano, variam de um local para o outro. Explicar as coisas em termos práticos seria cair na ideologia do capitalismo moderno que é, ele mesmo, uma maneira peculiar de perceber o mundo, também criada por razões simbólicas!

Se pensarmos nas políticas públicas de turismo ou mesmo na forma como o turismo é conduzido por turistas e hospedeiros, podemos notar como a perspectiva da razão prática – criticada por Sahlins – é enfatizada durante toda atividade turística, esvaziando as possibilidades de simetrizar as relações entre turistas e ‘nativos’ e de seus interesses com o turismo. Nas políticas públicas do turismo, as localidades menores ou que possuem comunidades tradicionais são enquadradas como ‘economias de subsistência’, tendo o turismo a função primordial de resolver o ‘problema’ econômico destas populações. Esta forma de trabalhar o turismo de forma utilitarista, colocando à venda a cultura local entendida como ‘objeto’ vai ao encontro do complexo de ‘Adão decaído’ que Sahlins aponta estar incorporado ao conhecimento do homem ocidental:

Em suma, o pressuposto lógico-histórico do entendimento empírico é o Adão decaído, o indivíduo limitado e sofredor, carente do objeto, que assim passa a conhecê-lo sensorialmente, através dos empecilhos ou vantagens que ele oferece a sua felicidade. A percepção e a satisfação são aspectos recorrentes de uma teoria incorporada do conhecimento, que parece ser o corolário filosófico adequado da trasnferência do encantamento da natureza para o capital. (SAHLINS, 2004, p. 604-605).

Assim, fazer uma viagem turística passa a ser apenas mais uma forma de tentar suprir a carência do ‘objeto’, a insatisafação eterna do homem ocidental, sempre mais cheio de necessidades, buscando no consumo de ‘objetos’ suprir a sua eterna carência. Esta perspectiva influencia a forma do homem ocidental compreender os ‘outros’, permeando, portanto, sua relação como turista com o autóctone durante a viagem.

Com estes apontamentos não estou pretendendo apagar os impactos negativos que podem ser causados pelo turismo. Sahlins (2004) aponta que a ação oferece o risco de mudança do simbólico também. A tradição não é fixa nesse sentido. Toda estrutura pré-forma a ação, mas toda ação pode modificar a estrutura. Assim, a ação do turismo em uma localidade pode modificar as razões simbólicas daquela cultura. É fato que o turismo pode interagir modificando a identidade local, influenciando, portanto, em quais são as razões simbólicas locais com o passar dos anos. Também é fato que a diminuição das desigualdades sociais e econômicas interferem diretamente nas possibilidades de não reduzir o turismo à lógica da produção. Porém, é preciso considerar que o turismo em si e as mudanças que ocorrem localmente não são necesariamente um problema. O fato da cultura ser reinventada não quer dizer que ela se torne falsa. Se as pessoas continuam fazendo o que fazem, mesmo que de forma diferente, não significa que elas deixaram de ser o que eram. A identidade não foi perdida, pois não há identidade fixa. O que não muda é o modo como tudo muda. Como teorizou, em uma outra perspectiva, Gabriel Tarde (2007), “durar é mudar”.

Dada essa ordem estrutural, não há sentido em lamentar por “inautênticas” as formas de adaptação dos povos locais ao Sistema Mundial, sequer quando eles se apropriam das imagens ocidentais do “nativo” como signos de sua própria alteridade – seja com propósitos aparentemente benignos (como quando os “nativos” utilizam, em benefício próprio, toda a sabedoria ecológica que o movimento ambientalista global lhes imputa), seja com propósitos explicitamente comerciais (como na exploração do mercado turístico ávido de danças “nativas”, artefatos ou coisa que valha). É assim que se faz hoje a história cultural, em um intercâmbio dialético do global com o local. Pois ficou bem claro agora que o imperialismo não está lidando com amadores nesse negócio de construção de alteridades ou de produção de identidades. (SAHLINS, 1997, p. 133).

Vejamos, ainda de acordo com Sahlins (2004), outras questões que podem ajudar a ampliar o debate. Para ele é preciso que questionemos a idéia de que onde o capitalismo chega, tudo sempre muda. O ‘sistema mundial capitalista’ não é o único sistema mundial. O autor aponta que o sistema mundial (global) está sempre subordinado a um sistema mais abrangente – o sistema local (cultura local). Toda apreensão é definida pelo sistema local que é determinante. O valor de troca de determinado produto é condicionado ao valor de uso deste produto localmente. Assim, a razão econômica está sempre subordinada à razão simbólica prática. Em turismo isso poderia ajudar a quebrar a idéia de que onde o turismo chega tudo muda como uma simples reação ao turismo. A cultura pode mudar, mas através de uma interação e não apenas de reação passiva à atividade turística. E para aqueles antropólogos que olhavam para o turismo com desconfiança e que proclamavam o desaparecimento de algumas culturas que eles ainda estavam aprendendo a perceber, Sahlins (1997, p. 136) apontou um caminho interessante que, a meu ver, oferece uma possibilidade de conciliação da antroplogia com o turismo: “Assim, enquanto disciplina, a antropologia parece estar tão bem de vida como sempre esteve: com as culturas desaparecendo [...], para reaparecer logo em seguida de maneiras que não havíamos previsto. [...] Agora é explorar toda essa imensa variedade de processos culturais e de relações interessantes”.

É exatamente enfatizando a relação entre antropólogo e nativo que Roy Wagner (1981) vai desenvolver sua teoria antropológica. O autor aponta que a antropologia inventa a cultura que estuda, mas a relação que coloca o antropólogo em contato com a cultura é real. Há uma invenção para explicar ‘a verdade’. Criamos a noção de sociedade para descrever outras sociedades. Os cientistas sociais arrogantemente desqualificam o discurso dos nativos a fim de ‘mostrarem’ o que está por trás daquele discurso. Por outro lado, o autor aponta que levar a sério o nativo não é acreditar literalmente no que ele diz. A simetria está em achar o equilíbrio entre as perspectivas do antropólogo e do nativo, entender a lógica de cada um e o sentido desta lógica para cada um. Para isso é preciso abrir mão de certezas pré-concebidas. Para uma etnografia acontecer de fato é necessário que ocorra o ‘choque’, o estranhamento em relação ao outro. O autor aponta ainda que é preciso repensar nossa idéia de contexto como algo que é o ‘pano de fundo’, o ‘palco’ onde as coisas acontecem. Para ele, o contexto não é matriz, não é moldura e quadro e sim associação. É o que emoldura a ação, mas também é o que se faz, o que a ação produz. Nós co-produzimos contextos com a ação. O contexto existe enquanto a atividade ocorre nele. Esta perspectiva vai ao encontro daquela apontada por Sahlins (2004) anteriormente, quando enfatiza a constante mudança presente na dinâmica da cultura.

Wagner aponta ainda, que os antropólogos pensam os outros a partir de seus próprios termos, mas ao fazerem os seus termos serem afetados pelos termos de outros, há uma operação de recontextualização do contexto. Assim a linguagem do antropólogo é forçada a encontrar novos termos e/ou a recontextualizar alguns. Essa perspectiva pode ser pensada a meu ver como uma possibilidade de nova compreensão do que seria o turismo e ainda propor uma nova maneira de educar para o turismo. Entender turismo como uma possibilidade de ação que co-produz o contexto e que oferece uma oportunidade massiva de recontextualização do contexto, ou seja, de afetamento pelos termos do ‘outro’ durante a viagem. E, mesmo que alguém argumentasse sobre as diferenças entre os objetivos do antropólogo e do turista advogando sobre a possível ‘profundidade de saber’, maior contato e conhecimento sobre a cultura local que é dado como algo que o antropológo experiencia mais ‘profundamente’ que o turista, creio que uma viagem de férias possa causar no turista um estranhamento e proporcionar momentos de afetamento, no sentido dado pela antropóloga Jeanne Favret-Saada. Em texto traduzido por Paula Siqueira (2005, p. 158), ao falar sobre este afetar-se em campo em suas pesquisas sobre a feitiçaria, Favret-Saada aponta que “aceitar participar e ser afetado não tem nada a ver com uma operação de conhecimento por empatia, qualquer que seja o sentido em que se entende este termo”.

Ora, eu estava justamente no lugar do nativo, agitada pelas “sensações, percepções e pelos pensamentos” de quem ocupa um lugar no sistema da feitiçaria. Se afirmo que é preciso aceitar ocupá-lo, em vez de imaginar-se lá, é pela simples razão de que o que ali se passa é literalmente inimaginável, sobretudo para um etnógrafo, habituado a trabalhar com representações: quando se está em um tal lugar, é-se bombardeado por intensidades específicas (chamemo-las de afetos), que geralmente não são significáveis. Esse lugar e as intensidades que lhe são ligadas têm então que ser experimentados: é a única maneira de aproximá-los. [...] o próprio fato de que aceito ocupar esse lugar e ser afetada por ele abre uma comunicação específica com os nativos: uma comunicação sempre involuntária e desprovida de intencionalidade, e que pode ser verbal ou não (SAADA apud SIQUEIRA, 2005, p.159).

Assim, algumas atividades realizadas durante a viagem associadas à forma de compreendê-las poderiam sim causar também no turista este afetamento, oferencendo possibilidades de reflexão sobre os próprios conceitos, gerando um aprendizado significativo e a compreensão da forma de saber ‘nativo’. Talvez, a própria despreocupação antecipada em teorizar sobre a cultura local possa facilitar o processo de contato do turista com este saber ‘nativo’, através das experiências vividas na viagem e relembradas posteriormente em casa. Mas, para que este tipo de experiência ocorra mais frequentemente é necessário que todo o processo de concepção e desenvolvimento do turismo e da viagem do turista esteja focado em uma prática que proporcione a abertura de perspectivas e o deslocamento conceitual necessário para que haja este afetamento no turista.

Strathern (1999), ao teorizar sobre a etnografia, fala sobre essa pré-concepção do ‘outro’, que deve ser evitada pelo antropólogo. Para a autora o ponto de vista do outro é o outro! Não dá para ir a campo com uma concepção formada, pré-concebida do que vai encontrar e utilizando nossos conceitos para explicar e enteder os outros. O que não quer dizer ir a campo como uma ‘tábula rasa’, mas sim não ir com uma pré-concepção do que vai encontrar. Creio que, apesar de toda a influência do marketing e das programações de viagens das empresas turísticas, da mídia e do senso comum, o turista, por não ter a priori a intenção de teorizar sobre detereminada cultura, pode conseguir se libertar destas pré-concepções com mais facilidade durante a viagem.

Por ourto lado, apesar de ‘turistas’ ser uma categoria heterogênea (há vários tipos de turistas), uma concepção prática de turismo que não divulgue noções pré-concebidas do ‘nativo’, baseada na valorização da relação de contato com o ‘outro’ in loco, poderá proporcionar maior abertura de perspectivas.

Assim, vejo a possibilidade de fazer um paralelo da relação que ocorre entre antropólogo e nativo e a que ocorre entre turista e autóctone. Logicamente não estou supondo que sejam relações idênticas, nem que as viagens ocorram das mesmas maneiras ou que os objetivos de viagem do antropólogo e do turista sejam os mesmos. As diferenças são muitas, a começar pelo próprio fato do turista estar viajando em seu tempo de lazer, muitas vezes utilizando equipamentos (de transporte, hospedagem, entretenimento, etc.) eminentemente turísticos e para um lugar que oferece a ele sanções positivas, a priori. Além disso, o antropólogo não tem que viajar, necessariamente, para fazer sua pesquisa de campo. Os trabalhos de antropologia urbana atestam, por exemplo, este fato.

Porém, creio que há algumas semelhanças entre o antropólogo e o turista e suas relações com o ‘outro’ que podem apontar caminhos de como os campos do turismo e da antropologia podem passar para um diálogo que vá além das acusações que colocam o turismo como algo exclusivamente comercial e maléfico para a comunidade local ou que acuse a antropologia de querer pregar uma política de ‘congelamento’ ou ‘fechamento’ das culturas em si mesmas para preservá-las e de uma disciplina que detém apenas um discurso academicista ‘intelectualista’ e pouco prático.

Citarei, portanto, algumas destas semelhanças: a primeira é que ambos, antropólogo e turista são percebidos como pessoas ‘de fora’ da comunidade. Se o antropólogo inventa a cultura que estuda, o turista também a inventa, desde sua idealização da viagem. O objetivo de viagem do antropólogo é vivenciar em campo, o deslocamento de sua perspectiva a fim de pesquisar outras formas de concepção do mundo, novos conceitos e saberes que o façam compreender e modificar, também, os seus. Os objetivos de viagem do turista são variados e já foram temas de diversos debates, sendo inclusive um dos principais motivos de críticas ao turismo. Em geral, sempre estão relacionados com a necessidade de evasão da vida cotidiana e, neste processo, experienciar o movimento, a diversidade ou mesmo a diferença. Antropólogos e turistas encontram-se, muitas vezes, em uma situação de liminaridade durante a viagem. É o caso, por exemplo, de ser brasileiro e ser também turista ou antropólogo, portanto, ‘de fora’ de determinada comunidade no Brasil, durante uma viagem. Dependendo da massificação do turismo em uma localidade e da dependência econômica da mesma em relação ao turismo, os ‘nativos’, concebem os turistas como um ‘mal necessário’, muitas vezes mantendo uma relação que, a priori, pode ser eminentemente comercial. Antropólogos também podem ser vistos apenas como uma possibilidade de influência política, fazendo ‘o papel’ de advogar a favor dos interesses nativos – o que pode prejudicar sua etnografia. Antropólogos, após a viagem, continuam a fazer a escrita da etnografia a partir dos dados coletados em campo e, ao fazê-lo, trabalham com uma perspectiva imaginativa do trabalho de campo (Strathern, 1999). Turistas, após a viagem, relembram e contam sobre ela vendo as fotografias, souvenirs, filmagens e, ao fazê-lo, ‘revivem’ sua viagem. Turistas não viajam com a perspectiva de produzirem necessariamente algo material a partir de sua experiência de viagem – o que não significa que o que vivenciam na viagem não seja aprendido ou seja inútil. Antropólogos produzem etnografias (textos) que, em geral, são publicados e direcionados a um mercado consumidor especializado (estudantes, docentes, pesquisadores, etc.), raramente sendo circulados entre os ‘nativos’ pesquisados. É aqui que surgem, conforme aborda Strathern (1999), alguns problemas de direitos autorais e produção dos textos etnográficos.

Abordando o sistema de trocas na Melanésia a autora mostra que o problema para os melanésios não é o do antropólogo vender o livro produzido aqui, porque lá, não há uma ênfase tão forte na produção como a que opera no ocidente. Porém, lá é importante a circulação do livro, a possibilidade de trocá-lo. É a relação que importa e que constitui inclusive as identidades das pessoas. A noção ocidental de ‘indivíduo’ não serve para compreendermos a concepção que eles fazem de ‘pessoa’ lá. Quando o antropólogo não coloca lá na Melanésia o livro em circulação, possibilitando sua troca, ele quebra exatamente com a lógica nativa em que a possibilidade de troca é primordial no processo de constituição das identidades. É como ir lá, pesquisar o que queria e depois ir embora sem dar retorno ou possibilidade dos nativos pensarem e participarem desta relação – que lá é definida pela relação de troca.

Outros autores da antroplogia contemporânea abordam questões que creio poderem ajudar a entender, também, o turismo. Partindo por caminhos diferentes, as discussões atuais antropológicas retomam, entre outras questões, um antigo problema que é o de explicar a diversidade na unidade.

Isto é, como explicar as diferenças culturais observadas sem abrir mão da idéia de que em todos opera um mesmo espírito (que é a idéia da unidade psíquica da humanidade) e que todos compartilhamos da mesma biologia. Esse problema re-atualizava oposições chave como universalismo-particularismo, que não é senão uma outra forma de manifestação da oposição natureza-cultura. (Bonet, 2006, p. 2).

Esta perspectiva que reflete o questionamento atual sobre a noção ocidental de cultura pode ser destacada em diversos autores, como por exemplo, nas discussões do filósofo francês Bruno Latour (2005) - propondo que o ator social é formado na própria rede por todos os agentes: objetos e seres vivos em geral. Para isso, desenvolve a teoria do ator-rede que, ao analisar a atividade científica, considera, enquanto variáveis, tanto os atores humanos como os não humanos, estes últimos devido à sua vinculação ao princípio de simetria generalizada. O autor questiona os fundamentos de nossa modernidade, a partir de uma polêmica histórica entre o filósofo Thomas Hobbes, e o cientista Robert Boyle, ambos britânicos, que deram forma ao projeto de separação entre províncias ontológicas distintas - Natureza e Cultura - e das possibilidades de se agir sobre elas.

Uma outra forma de abordar o tema é proposta pelo antropólogo inglês Tim Ingold (1996) argumentando que o mundo em que habitamos não é um mundo de natureza dado, nem um mundo de cultura construído. Trata-se de um meio-ambiente, mas não no sentido de um mundo físico (externo ou natural), de uma ‘realidade de’, mas sim como uma ‘realidade para’ – o mundo real constituído em relação com o organismo ou pessoa cujo meio-ambiente passa a existir. Isto é o mundo que percebemos através do nosso engajamento com ele. Partindo desta perspectiva ecológica de ‘habitar no mundo’, o autor pontua que as dicotomias ficam insignificantes.

Outra perspectiva de desenvolvimento do tema, porém partindo de uma discussão da etnologia, é elaborada pelo antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro (2002, p. 347-348), quando aponta para a noção de ‘perspectivismo ameríndio’:

[...] trata-se da concepção, comum a muitos povos do continente, segundo a qual o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não-humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos. [...], a distinção clássica entre Natureza e Cultura não pode ser utilizada para descrever dimensões ou domínios internos a cosmologias não-ocidentais sem passar antes por uma crítica etnológica rigorosa. Tal crítica, no caso presente, exige a dissociação e redistribuição dos predicados subsumidos nas duas séries paradigmáticas que tradicionalmente se opõem sob os rótulos de Natureza e Cultura: universal e particular, objetivo e subjetivo, físico e moral, fato e valor, dado e construído, necessidade e espontaneidade, imanência e transcendência, corpo e espírito, animalidade e humanidade, e outros tantos.

Percebe-se que a questão de fundo das discussões dos autores é a mesma: as separações entre natureza e cultura, humanidade e animalidade, corpo e mente, pessoas e coisas, sociedade e natureza e todas as outras dicotomias similares – que o desenvolvimento da ciência moderna levou ao extremo – são repensadas e reformuladas. Seriam todos conceitos historicamente construídos com o advento da ciência moderna e, portanto, limitados à perpectiva do humano que ela adotou. O debate aponta, entre outras questões, para o fato de que não seriam só os seres humanos que estariam contidos no social. Os objetos e a natureza seriam, também, parte do social, eles possuiriam agência . Posto que cultura é um conceito historicamente e socialmente construído, ele na verdade estaria inserido em algo mais amplo ao invés de ser apenas ‘este todo complexo ’ até então correntemente adotado nas ciências sociais.

Partindo do exposto, creio que novos desafios se colocam para pensarmos o turismo e as suas relações com a antropologia. Se os objetos, assim como os seres humanos, também possuiriam agência, sendo, portanto, parte do social, como lidar com esta questão nas atividades de turismo que a todo momento lidam com equipamentos turísticos? Se as coisas são os conceitos para determinados povos, como abordar, na gestão do turismo e no desenvolvimento de roteiros turísticos, estes povos que “pensam através das coisas” (HENARE; HOLBRAAD; WASTELL, 2007)? Como e por que causar no turista esse tipo de deslocamento ontológico? Como propor e realizar uma viagem de ‘ecoturismo’, por exemplo, que procure uma perspectiva de quebra da separação entre natureza e cultura? Pensando na perspectiva de Ingold (1996) de um mundo que passa a existir a partir de nosso engajamento com ele, como o turismo pode despertar nas pessoas um senso de responsabilidade por seu engajamento no mundo? Strathern (1999) propõe que o efeito do texto etnográfico é produzir nos leitores, inclusive nativos, um efeito de deslocamento como aquele que é causado no antropólogo em campo. Sendo assim, como abordar na prática turística (incluindo, logicamente, a perspectiva nativa) as descobertas antropológicas e efetivar no turista aquilo que Strathern (1999) propõe que os antropólogos efetivem com a etnografia, isto é, como efetivar esse efeito de deslocamento no turista?

Como mencinei anteriormente, uma prática de turismo que valorize a relação in loco entre turista e autóctone e que não se fundamente em pé-concepções sobre o autóctone ou sobre seu mundo poderá facilitar a possibilidade de ocorrrência deste efeito de deslocamento. A partir disto, pensar as políticas públicas, os planos de gestão e marketing turísticos efetivando este desvio de olhar do objeto da viagem (turistas ou nativos) para as relações que podem ocorrer entre eles e entre os demais agentes que permeiam seus mundos pode ser uma estratégia interessante. Isso faz repensar ainda a própria concepção de turismo, ou mesmo de humano que estamos lidando na e com a prática turística.

Wagner apud Henare et al. (2007, p. 21), aponta que invenção é apenas o processo no qual os conceitos são transformados pela ação de ter sido adaptados em novos contextos. Assim, conceitos começam a carregar seus contextos em si mesmos. Então, como Strathern pontuou posteriormente, Wagner vê o encontro entre os conceitos do antropólogo e os conceitos de seus informantes como produtivo por causa das suas divergências. Quando os dois são colocados em contato seus sentidos são transformados através do que Wagner chamou de ‘extensão metafórica’. Com isso, conforme elucida Henare et al. (2007) ele não está sugerindo que invenção é simplesmente uma questão de flexibilizar velhos conceitos por novos contextos – um impulso euro-americano – mas, ao invés disso, algo mais radical, ocorrendo cada vez que os conceitos são ‘extendidos’ de uma forma em que eles são ipso facto transformados dentro de novos significados – portanto, uma atividade ontológica (e não epistemólogica).

Partindo desta perspectiva, Henare et al. (2007, p. 13) propõe uma metodologia de pesquisa antropológica que considere uma ‘ontologia das coisas’:

Nós começamos com a suposição ordinária (representacionista/epistemológica) de que os conceitos são o local da diferença. Então nós argumentamos que para que a diferença seja levada a sério (como ‘alteridade’), a suposição de que conceitos são ontologicamente distintos das coisas nas quais eles usualmente se referem deve ser descartada. A partir disso, a alteridade pode completamente ser pensada como uma propriedade das coisas – coisas, isto é, que são conceitos tanto quanto parecem materiais ou entidades físicas para nós. Conseqüentemente a primeira resposta para a incrédula questão sobre onde ‘mundos diferentes’ devem estar, é aqui, na nossa frente, nas próprias coisas [...]. Então este é um método de ‘retornar às coisas nelas mesmas’ como os fenomenologistas fizeram, mas apenas com a ressalva de que não é isso porque a ‘vida-mundo’ da nossa ‘experiência’ das coisas tem prioridade sobre uma ‘atitude teórica’ (Husserl, 1970), mas precisamente porque nossa experiência das coisas pode ser conceitual [...]. (tradução nossa).

Creio que os possíveis diálogos entre a antropologia e o turismo são imprescindíveis principalmente porque ambos são campos em que a alteridade é o principal motivador para o deslocamento, mesmo que este seja, inicialmente, exclusivamente geográfico ou mediado a princípio por questões mercadológicas. Os desafios são muitos. Quais são as transformações ontológicas causadas no encontro entre turista e ‘nativo’ a partir de um turismo que considere a perspectiva antropológica na prática? Como tornar isto possível?

Os outros mundos possíveis que a antropologia revela ao ocidente podem causar uma mudança conceitual interessante, que nos faça sair da ‘esquizofrenia’ que acaba por nos prender nas nossas dicotomias, enquanto julgamos o resto do mundo encontrando maneiras de estar sempre na posição de juízes do tribunal. Um turismo permeado por estes outros mundos possíveis pode proporcionar um deslocamento conceitual que aos poucos se torne massivo, gerando possibilidades de revelação de novos outros mundos possíveis a partir, também, da relação entre turista e nativo. O desafio é grande e não é minha pretensão aqui dar por encerrado este diálogo. Se onde há diferença as possibilidades são infinitesimais, termino com a inspiração suscitada por Gabriel Tarde (2007) e que poderia (por que não?) caber também em um guia de turismo a ser consultado durante uma viagem: Hypotesis fingo !

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WAGNER, Roy. The invention of culture. Chicago: The University of Chicago Press, 1981.

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