CULTURA COMO HABILIDADE

1 - Introdução

Como a experiência que adquirimos ao longo de nossas vidas é enriquecida pela sabedoria de nossos ancestrais? E como, por sua vez, tal experiência se faz sentir nas vidas dos descendentes? Em termos gerais, na criação e manutenção do conhecimento humano, o que dá, de subsídio, cada geração à geração seguinte? Estas são algumas das questões que o antropólogo britânico Tim Ingold (2001) aborda ao mesmo tempo em que examina algumas linhas centrais para as mesmas questões dos argumentos de outro antropólogo – Dan Sperber (2001) – no sentido de afirmar porque estes argumentos estariam incoerentes. Neste texto apresentarei a perspectiva proposta por Ingold (2001) bem como seus questionamentos sobre a abordagem de Sperber (2001), concluindo com uma breve explicação da escolha da abordagem proposta por Ingold (2001) para clareamento da minha pesquisa com a capoeira angola que está em desenvolvimento para o Mestrado em Lazer da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Minas Gerais, na área de concentração ‘Lazer, Cultura e Educação’ e na linha de pesquisa ‘Lazer, História e Diversidade Cultural’.

Uma forma de abordar as questões citadas anteriormente, parte da ciência cognitiva. Esta perspectiva argumenta que o conhecimento existe na forma de ‘conteúdo mental’, que, com vazamentos, preenchimentos e difusão pelas margens, é passado de geração em geração, como herança de uma população portadora de cultura. Um dos principais proponentes antropológicos desta abordagem é Dan Sperber (2001). Estes pressupostos são, especificamente, que o conhecimento é informação, e que seres humanos são mecanismos para processá-lo. Ingold (2010, p. 7) argumenta que, “pelo contrário, nosso conhecimento consiste, em primeiro lugar, em habilidades, e que todo ser humano é um centro de percepções e agência em um campo de prática”. Este autor questiona a abordagem dominante na psicologia cognitiva clássica apontando seu continuado domínio em função de uma poderosa aliança com a biologia evolucionária em sua moderna formulação neo-darwiniana.

"A solução, eu afirmo, é ir além da dicotomia entre capacidades inatas e competências adquiridas através de um enfoque sobre as propriedades emergentes de sistemas dinâmicos. Habilidades, sugiro eu, são melhor compreendidas como propriedades deste tipo. É através de um processo de habilitação (enskilment), não de enculturação, que cada geração alcança e ultrapassa a sabedoria de suas predecessoras. Isto me leva a concluir que, no crescimento do conhecimento humano, a contribuição que cada geração dá à seguinte não é um suprimento acumulado de representações, mas uma educação da atenção". (INGOLD, 2010, p. 7).

2 - A abordagem de Dan Sperber – Transmissão de Representações

Há mais de cinqüenta anos atrás, Alfred Kroeber (1943) refletia sobre as aparentes analogias entre fenômenos culturais e biológicos. Seria errado, ele observou, comparar os indivíduos de uma cultura a membros de uma espécie. Porque os elementos que se combinam para estabelecer o padrão específico de pensamento e comportamento para um povo não podem ser rastreados até uma fonte ancestral comum, já que são de origens as mais diversas. Segundo a convenção da época, Kroeber chamou esses elementos de ‘traços de cultura’ e, se existe algo comparável a uma espécie, pensou, é o traço (ou o conjunto de traços). Assim, como pontua Ingold (2001, p. 7), Kroeber (1952 [1943] p. 93) concluiu que ‘é a agregados ecológicos que as culturas podem ser comparadas: associações locais de espécies de origem diversa’. A idéia original de Kroeber voltou à tona de forma similar na demanda de Sperber (2001) por uma ‘epidemiologia de representações’. Conforme discute Ingold (2001), basta substituir a noção de ‘traços’, com suas implicações meio comportamentais, pela noção mais mentalística de ‘representação’. Assim como o traço, segundo Kroeber, é manifestado nos seus exemplares incontáveis, para Sperber, também, toda representação existe no nível de realidade concreta como a população de suas ocorrências, sejam estas encontradas dentro de cérebros humanos ou no comportamento corporal que desencadeiam. E onde Kroeber comparou traços com os animais e plantas habitantes de um local, Sperber compara representações com os microorganismos causadores de doença que habitam o corpo. Estudar a ploriferação e distribuição de representações em cérebros é assim análogo ao estudo epidemiológico da ploriferação e distribuição de microorganismos em corpos: ‘fenômenos culturais são padrões ecológicos de fenômenos psicológicos’ (SPERBER, 1996, p. 60). Assim, a questão colocada por Ingold (2001) é como uma representação no seu cérebro encontra o caminho dela até o meu, e ainda do meu cérebro até o cérebro de outras pessoas? A esta questão Sperber oferece um tipo de resposta bem diferente de Kroeber - que já em 1917 colocou que o homem é uma tabula em que se escreve. Sperber, por sua vez, alega que este modelo tradicional de enculturação, enquanto simples processo de inscrição se apóia numa psicologia impossível. Mesmo se, no meu comportamento eu ‘inscrevo’ representações no meu cérebro, isto não equivale a ‘inscrevê-las’ no seu. Conforme esclarece Ingold (2001), a cadeia causal que vai da presença concreta de uma representação em um cérebro até o seu estabelecimento em outros é menos direta. Sperber explica isso por meio de uma distinção entre ‘representações mentais’ e ‘representações públicas’. Estou com uma melodia na cabeça: isto é uma representação mental. Eu assobio a melodia enquanto caminho rua abaixo: isto é uma representação pública. Para que uma transmissão de informação (no caso, para que outra pessoa que me ouvir assobiando a melodia, também guarde a melodia na mente), possa ser efetuada há a exigência da operação de um aparato computacional capaz de processar o input de dados sensoriais, como os gerados pelo impacto do meu assobio nos órgãos receptores dos ouvintes, em forma representacional duradoura. Nesta perspectiva, algum tipo de aparato processador cognitivo já deve estar instalado, em cérebros humanos, antes que qualquer transmissão de representações possa ocorrer. Assim que este ponto é reconhecido temos de admitir também que o aparato (ou aparatos) de processamento pode ser capaz de lidar melhor com alguns tipos de input do que com outros. Isto, Sperber (1996, p. 74-5) nos diz, acontece simplesmente porque os mecanismos cognitivos inerentes do cérebro são equipados para lidar com objetos de estrutura narrativa. Se grande parte do conhecimento em culturas não-literárias toma a forma de mitos e histórias, é porque essas formas são prontamente memoráveis. Aquilo que não puder ser facilmente lembrado sairá naturalmente de circulação e, portanto, não ficará retido na cultura. Enquanto determinam o que é e o que não é memorável, os mecanismos de cognição têm um impacto bastante imediato sobre a organização do conhecimento cultural.

O ponto essencial desta abordagem cognitiva, então, é que todo ser humano deve vir ao mundo pré-equipado com mecanismos cognitivos que são especificados independentemente e antes de qualquer processo de aprendizado ou desenvolvimento. Para John Tobby e Leda Cosmides (1992), cujas investigações dos fundamentos psicológicos da cultura seguiram um caminho muito próximo do de Sperber, esses mecanismos formam o que eles chamam de ‘metacultura humana’- princípios básicos universais legados a todos e a cada um de nós em virtude de nossa ancestralidade evolucionária compartilhada. Graças a esses enquadramentos metaculturais é que os seres humanos são capazes de aprender os aspectos variáveis de suas tradições culturais específicas. Assim, estes autores concluem (e são endossados por Sperber), que a transmissão entre gerações de informação cultural variável depende da presença, em todas as mentes humanas, de mecanismos de cognição inatos, típicos da espécie. Supõe-se que esses mecanismos sejam o resultado de um processo darwiniano de variação sujeito à seleção natural, e como tal, que sejam construídos segundo especificações que não são culturais, mas genéticas, incluídas dentro da herança biológica comum da humanidade.

Outro ponto abordado por Ingold (2001) sobre a perspectiva de Sperber trata-se no tocante da teoria deste autor sobre a evolução da cognição a partir de uma concepção neodarwinista, ou seja, tratando a evolução da cognição humana como processo de seleção natural que ocasiona o desenvolvimento de ‘módulos cognitivos especializados’ para solução de domínios específicos de problemas. Assim pode haver, em nossas mentes, um módulo para navegação e orientação no ambiente, outro, para tratar de cooperação social, outro, para reconhecimento e classificação de animais e plantas, etc. Nesta concepção, o cérebro humano é particularmente suscetível a representações compatíveis com suas disposições inatas. Tais representações vão proliferar e se espalhar, estabelecendo-se assim dentro da cultura, ao passo que outras, deixando de satisfazer as condições de input dos módulos cognitivos, vão declinar e desaparecer. A cultura, em suma, é parasita das estruturas universais de cognição humana. Sperber (1996, p. 66) ainda coloca que ‘as habilidades cognitivas humanas, geneticamente determinadas, resultam de um processo de seleção natural’.

A preocupação de Ingold (2001) ao questionar a teoria de Sperber não é com a escolha dos termos, mas com base epistemológica da própria distinção – isto é, com a idéia de que um tipo de mudança (cultural, histórica, der-lhe o nome que quiser) é configurado dentro dos parâmetros de outro (biológica, evolucionária). O objetivo de Ingold (2001), portanto, é acabar com a oposição entre mecanismos cognitivos inatos e conteúdo cultural adquirido, mostrando como as formas e capacidades dos seres humanos, assim como aquelas de todos os outros organismos, brotam dentro de processos de desenvolvimento. Isto leva a um conceito de evolução que, embora radicalmente diferente da explicação neodarwiana ortodoxa, não nos obriga mais a reservar um espaço ontológico separado para a história humana.

3 – A perspectiva de Ingold – partindo para a educação da atenção

Ingold (2001) argumenta que a arquitetura da mente é um resultado de cópia; esta cópia, no entanto, não é uma transcrição automática de dispositivos cognitivos (ou instruções para construí-los) de uma cabeça para outra, mas sim uma questão de seguir, nas ações individuais, aquilo que as outras pessoas fazem. Neste sentido, mais de imitação do que de transcrição, copiar é um aspecto da vida de uma pessoa no mundo, envolvendo repetidas tarefas e exercícios. É através do trabalho de copiar, então, que as bases neurológicas das competências humanas se estabelecem. Isto não é para negar que a organização neural resultante possa assumir uma forma modular; é para insistir, todavia, que a modularidade se desenvolve (Ingold, 1994), e que a maneira exata como este empacotamento ocorre dependerá das especificidades da experiência ambiental. Com isso, Ingold não pretende defender a prioridade da cultura sobre a natureza, nem substituir o viés inatista da explicação de Sperber por uma doutrina de determinação ambiental das capacidades humanas. O ponto é que estas capacidades não são nem internamente pré-especificadas nem externamente impostas, mas surgem dentro de processos de desenvolvimento, como propriedades de auto-organização dinâmica do campo total de relacionamentos no qual a vida de uma pessoa desabrocha.

Para exemplificar seu argumento, Ingold cita a capacidade de, com certa precisão, lançar e agarrar coisas com a mão. Isto, bem como caminhar com dois pés, parece ser uma das características de nossa espécie. Ainda há, na prática, um sem-número de diferentes modos de lançar e de agarrar, adequados a diferentes atividades e situações. O lançamento de um dardo, de um peso ou de uma bola de cricket, cada qual exige padrões e seqüências diferentes de tensão muscular, e diferentes concepções de passadas, ângulos e giros. No entanto não existe uma ‘essência’ de lançar e agarrar baseando essas variações no verdadeiro desempenho. Em todos os casos, as capacidades específicas de percepção e ação que constituem a habilidade motora são desenvolvimentalmente incorporadas no modus operandi do organismo humano através de prática e treinamento, sob a orientação de praticantes já experientes, num ambiente caracterizado por suas próprias texturas e topografia, e coalhado de produtos de atividade humana anterior. Assim, as múltiplas habilidades dos seres humanos emergem através dos trabalhos de maturação no interior de campos de prática constituídos pelas atividades de seus antepassados. Não faz sentido perguntar se a capacidade de subir está na escada ou em quem sobe. Esta e outras capacidades não existem ‘dentro’ do corpo e cérebro do praticante e nem ‘fora’ no ambiente. Elas são sim, inste Ingold (2010), propriedades de sistemas ambientalmente estendidos que entrecortam as fronteiras do corpo e cérebro. Segue-se que o trabalho que as pessoas fazem, estabelecendo ambientes para as suas próprias gerações e as gerações futuras, contribui bastante diretamente para a evolução das capacidades humanas.

Mas, uma coisa é caracterizar o conhecimento do especialista em termos de habilidade, e outra bem diferente é afirmar, como faz Ingold, que a habilidade é a base de todo o conhecimento. Para sustentar seu argumento, o autor marca a distinção entre conhecimento e informação, citando o exemplo de um livro de receitas culinárias. Ele está cheio de informações sobre como preparar deliciosos pratos. Mas será que é desta informação que consiste o conhecimento do cozinheiro? O autor pontua que Sperber diria que sim. E assim a receita de um molho especial inclui tudo que você precisa saber para preparar o molho na sua própria cozinha. Nada mais é considerado necessário além da capacidade de ler. Logo que as instruções forem transcritas para a sua cabeça, tudo que você tem que fazer é ‘convertê-las em comportamento corporal’ (Sperber, 1996, p. 61). No entanto, é mais fácil falar desta conversão do que pô-la em prática. Nenhum livro de culinária que se conheça vem com as instruções exatas a ponto de suas receitas poderem ser convertidas assim tão simplesmente em comportamento. Quando a receita manda ‘derreter a manteiga numa panela pequena e adicionar a farinha’ você é capaz de segui-la só porque ela dialoga com sua experiência anterior de derreter e mexer, de lidar com substâncias como manteiga e farinha, e de encontrar os ingredientes e utensílios básicos nos vários cantos da sua cozinha. Assim, cada comando é colocado estrategicamente na receita em um ponto que o autor original, olhando para a experiência prévia de preparar o prato em questão, considerou ser uma junção crítica na totalidade do processo. Entre esses pontos, no entanto, espera-se que o cozinheiro ou a cozinheira seja capaz de achar o seu caminho, com atenção e sensibilidade, mas sem depender de outras regras explícitas de procedimento – ou, numa só palavra, habilidosamente. Assim, Ingold (2001) conclui que a informação no livro de receitas, em si mesma, não é conhecimento. Seria mais correto dizer que ela abre caminho para o conhecimento, por estar dentro de uma tarefagem até certo ponto já familiar em virtude da experiência anterior. Apenas quando é colocada no contexto das habilidades adquiridas através desta experiência anterior, a informação especifica uma rota compreensível, que pode ser seguida na prática, e apenas uma rota assim especificada pode levar ao conhecimento. É neste sentido que todo conhecimento está baseado em habilidade. Não se trata de conhecimento que lhe foi comunicado; trata-se de conhecimento que você mesmo construiu seguindo os mesmos caminhos de seus predecessores e orientado por eles. Em suma, o aumento do conhecimento na história de vida de uma pessoa não é um resultado de transmissão de informação, mas sim de redescoberta orientada. O ambiente, então, não é meramente uma fonte de problemas e de desafios adaptativos a serem resolvidos; ele se torna parte dos meios de lidar com isso. Ingold (2001) cita Andy Clark (1997) quando coloca que a mente é um ‘órgão incontinente’ que não admite ficar confinado dentro do crânio, mas que se mistura despudoradamente com o corpo e o mundo no conduto de suas operações. Na solução de problema, todo passo é um movimento exploratório no interior daquele mundo. Portanto, conforme pontua, ainda nesta mesma linha de raciocínio, a antropóloga Jean Lave (1988), não pode haver qualquer diferença entre resolver um problema e executar a solução na prática, pois todo passo numa solução de problema é um passo ao longo do caminho da implementação. E, cada passo segue o outro como movimentos sucessivos do agente perceptivamente atento, a ‘pessoa-que-atua’, no cenário da prática.

O processo de aprendizado por redescobrimento dirigido é transmitido mais corretamente pela noção de mostrar. Mostrar alguma coisa a alguém é fazer esta coisa se tornar presente para esta pessoa, de modo que ela possa apreendê-la diretamente, seja olhando, ouvindo ou sentindo. Aqui, o papel do tutor é criar situações nas quais o iniciante é instruído a cuidar especialmente deste ou daquele aspecto do que pode ser visto, tocado ou ouvido, para poder assim ‘pegar o jeito’ da coisa. Aprender neste sentido, conforme aponta Ingold citando uma frase de James Gibson (1979), é equivalente a uma ‘educação da atenção’.

Finalmente, para responder as suas questões iniciais propostas no texto, Ingold (2001) conclui que na passagem das gerações humanas, a contribuição de cada uma para a cognoscibilidade da seguinte não se dá pela entrega de um corpo de informação desincorporada e contexto-independente, mas pela criação, através de suas atividades, de contextos ambientais dentro dos quais as sucessoras desenvolvem suas próprias habilidades incorporadas de percepção e ação. Em vez de ter suas capacidades evolutivas recheadas de estruturas que representam aspectos do mundo, os seres humanos emergem como um centro de atenção e agência cujos processos ressoam com os de seu ambiente. O conhecer, então, não reside nas relações entre estruturas no mundo e estruturas na mente, mas é imanente à vida e consciência do conhecedor, pois desabrocha dentro do campo de prática estabelecido através de sua presença enquanto ser-no-mundo. A cognição, neste sentido, é um processo em tempo real. ‘Em vez de falar de idéias, conceitos, categorias e elos’, Ingold (2001) cita Gatewood (1985) dizendo que deveríamos pensar em ‘fluxos, contornos, intensidades e ressonâncias’. Como a tarefagem através da qual qualquer pessoa se move é constituída pela prática de todas as outras, cada um desempenha um papel no estabelecimento das condições de desenvolvimento de todos os demais indivíduos. Assim o processo de cognição é equivalente ao próprio processo histórico da vida social. E este último não passa de uma continuação, na esfera humana, de um processo de evolução mais abrangente.

Portanto, conclui Ingold (2001), cocções, narrações de histórias e assobios não são representações, não são traços; na verdade, eles não são objetos de nenhum tipo, mas sim ações corporificadas no mundo. Ouvir ou olhar, neste sentido, é acompanhar um outro ser, seguir – mesmo se apenas por um breve momento – o mesmo caminho que este ser percorre pelo mundo da vida, e tomar parte na experiência que a viagem permite. Essencialmente, nesta jornada, tanto o observador quanto o observado viajam na mesma direção. Ouvir, em suma, não é o inverso de assobiar ou falar, nem olhar é o inverso de fazer, pois “ambos são orientados na mesma direção pelo movimento da consciência” (INGOLD, 1986, p. 273).

Seria errado, argumenta Ingold (1992), pensar na interface entre cérebro e ambiente como uma área de contato entre dois campos mutuamente exclusivos, mental e público, respectivamente; antes, cada um está implicado no outro. Assim, ao longo do desenvolvimento, a história das relações de uma pessoa com o seu ambiente está envolvida em estruturas específicas de atenção e resposta, neurologicamente fundamentadas. Do mesmo modo, envolvidas dentro das variadas formas e estruturas de ambiente estão as histórias das atividades de pessoas. Em suma, as estruturas neurológicas e as formas (artefatos) que Sperber chama de representações não são causas e efeitos umas das outras, mas emergem juntas como momentos complementares de um processo único – isto é, o processo da vida das pessoas no mundo. É dentro deste processo que todo conhecimento é constituído.

4 – A escolha pela abordagem de Ingold

Dentro desta perspectiva proposta por Ingold (2001) de compreendermos cultura como habilidade em um contexto de prática, uma pesquisa que propõe realizar uma etnografia deve realizá-la enfocando a descrição das práticas do contexto a ser estudado (já que aprender é compreender na prática), sobretudo, das práticas que enfatizam a corporeidade (como andar, falar, jogar capoeira, etc.), descrevendo o campo total de relações constituídas pelos praticantes no ambiente característico da prática.

Neste processo que estou desenvolvendo em campo (que está ainda, em andamento) em um grupo de capoeira angola na cidade de Belo Horizonte, já é notável que o processo de aprendizado da capoeira se dá, de fato, a partir da participação do aprendiz nas práticas do grupo de capoeira angola sob orientação de um veterano que mostra os detalhes referentes aos movimentos, à forma de tocar os instrumentos, de se portar durante a execução da roda de capoeira, enfim, de educar a atenção do aprendiz que, a partir de sua participação vai construindo seu aprendizado. Outro ponto observado refere-se à própria execução dos movimentos da capoeira. O aprendiz não pensa para depois executar a ação de fazer um golpe, por exemplo. Ele ‘pensa-fazendo’ ou ‘fazendo-pensa’ o golpe. Portanto esta perspectiva cognitivista apontada por Sperber da mente computacional que apenas armazenas as informações para transmiti-las não é suficiente para explicar este processo de como a informação sobre o golpe a ser executado transforma-se na pessoa fazendo o golpe. Em um aprendiz de capoeira, por exemplo, esta concepção de Sperber de módulos cognitivos pré-constituídos cujas necessidades de informação estariam ainda não satisfeitas não condiz com o próprio processo de desenvolvimento do aprendizado da capoeira, já que é com o tempo de participação na prática cotidiana no grupo que o aprendiz consegue construir sua própria formação, construindo a si mesmo neste processo, física e mentalmente. Sendo assim, embora eu ainda não tenha concluído minha pesquisa de campo, creio que abordagem de Ingold (2001) ajuda a explicar melhor o que ocorre lá no grupo de capoeira angola, explicitando de forma verbal o que muitas vezes ocorre em campo e é expresso de outras maneiras. E tenho aprendido, nesta minha participação prática em outro campo (no mestrado), que daí advém grande parte da importância das teorias.



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