VOZES DA VADIAÇÃO: SOBRE AS CANTIGAS DE CAPOEIRA

Trabalho apresentado no VIII Encontro Regional Sudeste de Historia Oral - ABHO - Belo Horizonte / UFMG - 5 a 7 de outubro de 2009.

Resumo


Realiza breve análise das cantigas de capoeira enquanto literatura oral, entendendo capoeira como performance afro-brasileira. Utiliza como exemplos algumas cantigas de capoeira tecendo comentários sobre suas características, enfatizando, também, a história oral revelada a partir destas cantigas e sua importância como dado ou metodologia de pesquisa nas ciências sociais.


1 APRESENTAÇÃO

Os estudos da performance desenvolvidos no mundo acadêmico, que surgiram nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, a partir da década de sessenta, podem ser considerados, hoje, um território sem fronteiras, constituindo rico e complexo universo no qual convivem abordagens históricas, com aquelas de base psicológica, antropológica e semiológica. (...), já não apenas o artista visual ou o ator criam a performance, mas também o homem de rua, o vendedor, ou o professor. Isto é, tornaram-se objetos de estudos desse campo as ações, singulares ou coletivas, identificadas com um “comportamento expressivo” que estudiosos contemporâneos, como Richard Schechner, Victor Turner e outros, passaram a definir como performance. (LIGIÉRO, 2003, p. 3).

É dentro desta perspectiva de performance afro-brasileira que este trabalho pretende contextualizar a capoeira, identificando principalmente, aspectos que demonstram a importância do canto e das letras das cantigas dentro desta manifestação cultural enquanto performance, bem como sua utilização como dado para análise e compreensão de seus significados culturais e da história de seus praticantes revelada em sua oralidade.

Ao pensarmos nos relatos orais como dados ou método de pesquisa em qualquer campo de estudos, creio ser pertinente considerarmos os seguintes aspectos levantados pelo antropólogo norte-americano Clifford Geertz (1989) quando teoriza sobre o método etnográfico – característico da Antropologia:

O etnógrafo “inscreve” o discurso social: ele o anota. Ao fazê-lo, ele o transforma de acontecimento passado, que existe apenas em seu próprio momento de ocorrência, em um relato, que existe em sua inscrição e que pode ser consultado novamente. Paul Ricoeur [...] pergunta, “o que a escrita fixa?” [...] o que escrevemos é o noema (“pensamento”, “conteúdo”, “substância”) do falar. É o significado do acontecimento de falar, não o acontecimento como acontecimento. [...] o que inscrevemos (ou tentamos fazê-lo) não é o discurso social bruto ao qual não somos atores, não temos acesso direto a não ser marginalmente, ou muito especialmente, mas apenas àquela pequena parte dele que os nossos informantes nos podem levar a compreender. [...] A análise cultural é (ou deveria ser) uma adivinhação dos significados, uma avaliação das conjecturas e não a descoberta do Continente do Significado e o mapeamento da sua paisagem incoprórea. (GEERTZ, 1989, p. 29-30).

O autor pondera, porém, que ‘a força de nossas interpretações não pode repousar, [...], na rigidez com que elas se mantêm ou na segurança com que são argumentadas. (GEERTZ, 1989, p. 28). Assim, é importante relativizarmos nossas interpretações dos dados orais coletados em campo (sem, no entanto, cairmos no niilismo), priorizando, também, os significados das ações dos sujeitos na vida social. Segundo Lang (1998) apud Nakamoto e Amaral (2009, p. 227), a história oral vem sendo utilizada por diversas ciências, entre elas a sociologia que, voltada à práxis, busca conhecer a realidade, reconstruindo-a de forma simplificada e criando, assim, um modelo orientador da ação sobre a mesma, visando o remanejamento social. Em outras palavras, a sociologia une dois interesses, compreender e intervir, sendo que a história oral enquanto metodologia de pesquisa pode ser útil a ambos. Tal como a análise etnográfica, a reconstrução histórica, levando em conta o uso de diversas fontes documentais, entre elas, os relatos orais, é de grande importância para a compreensão de uma realidade cultural específica. Isso, pois, a memória possui uma ligação estreita com o sentimento de identidade, tanto individual, correspondente à imagem particular que o sujeito possui para si e para outros, como também coletiva, referente aos elementos que caracterizam a continuidade do sujeito com seu grupo. Além disso, dependendo de como é conduzida a pesquisa e de seus objetivos, o trabalho com a memória não apenas permite a compreensão da dinâmica social específica de uma comunidade por parte do pesquisador, como também a apropriação da própria história pela coletividade em foco. Apropriação essa que atua reforçando os vínculos identitários entre os sujeitos, permitindo-lhes reconhecer o individual no coletivo, dando-lhes maior coesão social e possibilitando, a partir disso, uma afirmação cultural e política mais eficaz.

Enquanto manifestação de cariz afro-brasileiro, a capoeira sofreu diversas influências no seu desenvolvimento de traços da cosmovisão de variados grupos africanos trazidos ao Brasil em função da escravidão, que criaram e recriaram a capoeira em solo brasileiro em diferentes momentos históricos. Estas influências e recriações foram passadas e realizadas por seus descendentes em terras brasileiras até a atualidade através, principalmente, da memória oral.

Em relação às cantigas de capoeira:

Não é possível estabelecer um marco divisório entre cantigas de capoeira antigas e atuais, embora alguns capoeiristas tentem fazê-lo. Ao examinar esta distinção, verifica-se que não procede, uma vez que muitas das cantigas consideradas atuais são quadras antiqüíssimas, que remontam aos primórdios da colonização, as quais relatam passagens da Donzela Teodora, Decamerão, cenas da vida patriarcal brasileira e motivos outros. Também as cantigas que eles classificam de antigas, em sua maior parte, não o são. Em realidade são quadras de desafios cujos autores viveram até bem pouco; cantigas de roda infantil e samba de roda. Portanto é por demais perigoso se tentar distinguir cantiga de capoeira antiga da atual e, de um modo geral, cantiga e capoeira propriamente dita e cantiga de proveniência outra, cantada no jogo da capoeira. (REGO, 1968, p. 89).

E ainda:
A não existência de qualquer vínculo rítmico-instrumental ou construções poéticas específicas para a luta capoeira no decurso do século XIX, fortalece cada vez mais a posição de que, após a transformação e consolidação da prática referida em expressão de cariz lúdico, a partir do século XX, propiciou-se a revivalização de emanações de musicalidade rítmico-instrumental e vocal, já agora específicas para a manifestação cultural citada. (ARAÚJO, 2002, p. 114).

Dentro desta perspectiva, na atualidade, as cantigas de capoeira possuem semelhanças com os chamados cantopoemas de tradição banto-católica, presentes no congado. Do ponto de vista formal cantopoema é o poema cantado que, a partir da interferência de pesquisadores, tornam-se escritos também (suporte oral e da escrita). Quando é cantado (na tradição oral), está permeado de performance (englobando o canto, a platéia, a dança, o teatro sagrado, etc.). Assim, essa “literatura oral” não é fixa, pois é realizada na vivência momentânea, pela figura do performer. Este possui a dificuldade em reter a informação (relativismo – identidade que guarda em si uma alteridade), posto que se relativize no espaço do “outro”, interagindo na vivência momentânea com seu público (receptor), testando a atenção do espectador. Nesse sentido, a tradição não é fechada nem imutável, já que a cada performance ela seja re-criada. O performer faz releituras da tradição a todo tempo. Estas características da literatura oral são encontradas nas cantigas de capoeira.

Outra característica das performances da oralidade foi identificada por Leda Martins (2002) ao analisar as congadas: “na performance dos ritos o corpo e voz são portais de inscrição de um conhecimento que se grafa no gesto, no movimento, na coreografia, na superfície da pele, assim como nos ritmos e timbres da vocalidade”. De acordo com a autora, “nas performances da oralidade (características das culturas de ascendência banto – da qual a capoeira é herdeira – ou nagô-iorubá), o gesto não é apenas uma representação mimética de um aparato simbólico, veiculado pela performance, mas institui e instaura a própria performance”. Neste sentido o corpo passa a ser mídia de si mesmo. Jogar capoeira é performar, inscrever. É, pois, um ato de inscrição, uma grafia. O corpo passa a ser, por excelência, o local da memória, o corpo em performance, o corpo que é performance. Como tal, este corpo não apenas repete um hábito, mas também institui, interpreta e revisa o ato reencenado. O fazer não elide o ato de reflexão, a memória grafa-se no corpo, que registra, transmite e modifica dinamicamente.

De um ponto de vista amplo, a cantiga de capoeira tanto pode ser o enaltecimento de um capoeirista que se tornou herói pelas bravuras que fez quando em vida, como pode narrar fatos da vida quotidiana, usos, costumes, episódios históricos, a vida e a sociedade na época da colonização, o negro livre e o escravo na senzala, na praça e na comunidade social. Sua atuação na religião e na tradição. Assim, as cantigas são documentos de literatura oral que fornecem fontes preciosas do ponto de vista afro-descendente sobre sua relação na sociedade. Louvam-se os mestres de capoeira e evocam-se as terras de África, demonstrando a importância dada à ancestralidade, presente nas manifestações afro-brasileiras e ainda, buscando e afirmando, através das cantigas, a identidade do grupo e seus ícones de resistência social em uma sociedade racista e excludente, que inclusive, proibiu a capoeira – criminalizada na constituição brasileira até a década de 1930. Na maioria das cantigas, ocorre o diálogo entre uma pessoa e o coro, representado pela totalidade, pelos espectadores-participantes da roda de capoeira – testando a atenção deste espectador ao mesmo tempo em que o convida a participar também. As cantigas fornecem, ainda, valiosos elementos para o estudo da vida brasileira, em suas várias manifestações, os quais podem ser examinados sob o ponto de vista lingüístico, folclórico, etnográfico e sócio-histórico, como o fez com extrema minúcia Waldeloir Rego em seu livro Capoeira Angola: ensaio sócio-etnográfico, de 1968.

As principais formas específicas das composições encontradas na capoeira, atualmente, são as chulas, ladainhas e corridos. Caracterizam-se pelo primarismo das composições, quase sempre imbuídas de uma simplicidade melódica e constituídas pelo processo estrofe-refrão, repetido pelo coro que acompanha o acontecimento social quase sempre em roda; a durabilidade e variabilidade do canto, que se repete incessantemente; a originalidade do canto, que como citado anteriormente, compreende a composição de fatos acontecidos ou de criação espontânea tão comum nos desafios; aliados tudo isso à influência polirrítmica, que concorre para valorizar e transformar não só os valores da linha melódica, o que é facilmente comprovado pela presença de uma diversidade rítmico-instrumental (berimbau, pandeiro, atabaque, etc.), mas, também para propiciar momentos de criatividade e de espontaneidade dos seus compositores no decurso do jogo capoeira. Cabe ressaltar que a execução dos ritmos (toques) de cada berimbau na roda e dos outros instrumentos, a ordem para se começar a tocar cada instrumento na roda, a hora de se cantar uma ladainha, chula e corrido, as formas que definem o que é uma ladainha, chula e corrido, a forma de se jogar a capoeira definida pelos toques do berimbau e em alguns momentos também pelas cantigas, são considerados um conjunto de fundamentos da capoeira que definem suas particularidades. O capoeirista possuidor de maior conhecimento sobre estes fundamentos na sua execução na roda de capoeira possui mais respeito pelos outros membros do grupo, assim como também os capoeiristas mais velhos sempre possuem maior grau de respeito dentro do grupo, sendo, geralmente, os guardiões destes preciosos fundamentos da capoeira. Ocorre, também, a presença nas cantigas, de referências as entidades do candomblé tanto de matrizes banto, quanto iorubanas e a presença de outros vocábulos de línguas de matrizes banto. Esta presença demonstra a influência das religiões de matrizes africanas em alguns capoeiristas. Da mesma forma, a presença de vocábulos banto e outros próprios do “mundo da capoeiragem”, a utilização constante de metáforas, a forma específica de pronúncia de vocábulos em português, as filosofias de vida repassadas por cantigas aparentemente simples – portanto compreendidas apenas pelos que vivenciam este “mundo” – demonstra, por um lado, a afirmação da identidade dos capoeiristas, e, por outro, a necessidade de distanciamento, de se preservar “o segredo”, de não se mostrar tudo que se sabe descaradamente e diretamente – essência, inclusive, do próprio jogo da capoeira. Esta dualidade presente nas cantigas (aparentemente simples à primeira vista, mas cheias de profundidade e de significados); a inversão de valores (o simples torna-se o ideal – guardando na sua simplicidade os “tesouros” do fundamento, da tradição, a memória coletiva, as lições boas para a vida – filosofia de vida da capoeira), reflete a própria dualidade do jogo de capoeira: ao mesmo tempo em que é luta, é dança e jogo; a ginga seria o movimento que melhor representa esta dualidade (ao mesmo tempo em que se está no mesmo lugar, se está em movimento); trocam-se os pés pelas mãos, ficando em posição contrária à posição normal (em pé), onde os pés tocam o solo no lugar das mãos. Esta inversão de posição corporal (ficando ‘de cabeça para baixo’) representa performativamente, uma nova forma de ‘pensar com os pés’ em que os ‘pés passam a ocupar a posição designada para a cabeça. Esta inversão de valores é, ao mesmo tempo, a busca da inversão de valores impostos aos afro-descendentes pelas elites brancaranas ao longo da história do Brasil, refletidas na capoeira enquanto manifestação de resistência afro-brasileira.

Por serem muitas as cantigas de capoeira, serão abordadas agora, sete cantigas de capoeira onde ocorre a presença de algumas das características citadas anteriormente. Inicialmente uma ladainha, depois uma chula e finalmente cinco corridos: quatro corridos para serem utilizados durante o jogo de capoeira e o último específico para o final da roda de capoeira. Essa é a ordem de entrada das cantigas na roda de capoeira mais utilizada como fundamento, principalmente nas rodas de capoeira de grupos que se definem como praticantes de capoeira angola.

2 ALGUMAS CANTIGAS

Ladainha

A ladainha é a louvação dos feitos ou qualidades de capoeiristas famosos ou um herói qualquer, como é o caso da cantiga que se segue, narrando às bravuras do repentista Manoel Riachão. Pode ser também a narração de algum acontecimento, desde que comece com uma saudação e termine com uma louvação. É a única forma de cantiga da capoeira onde não há a presença do coro. A ladainha é para ser somente ouvida pelos presentes na roda, tanto que, durante a sua execução não há jogo de capoeira.

Riachão tava cantando

Na cidade de Açu

Quando apareceu um nego

Como a espece de ôrubu

Tinha casaca de sola

Tinha calça de couro cru

Beiços grossos redrobado

Da grossura de um chinelo

Tinha o olho incravado

Outro olho era amarelo

Convido Riachão

Pra cantá o martelo

Riachão arrespondeu

Não canto cum nêgo desconhecido

Ele pode sê um escravo

Ande por aqui fugido

Eu sô livre como um vento

Tenho minha linguagem nobre

Naci dentro da pobreza

Não naci na raça pobre

Que idade tem você

Que conheceu meu avô

Você ta parecendo

Que é mais môço do que eu.

Nesta ladainha, Riachão descreve um acontecimento onde encontra um desconhecido que o convida pra cantar junto com ele. Através da cantiga ele mostra a sabedoria, a malícia, para se manter reservado, quando diz: não canto com nego desconhecido... Justifica logo após, seu comportamento: Ele pode ser um escravo / Ande por aqui fugido: Riachão que se diz livre como o vento, mostra a cautela em conversar com um desconhecido que pode não ser livre como ele e, portanto, colocá-lo em situação problemática. Faz referência ainda ao período da escravidão no Brasil, onde um negro fugido teria sérios problemas ao ser capturado. Percebe-se a referência à importância da oralidade (característica comum nas culturas de matriz africana): ele é livre como o vento / tem a sua linguagem nobre. No texto ele fala com o estranho perguntando a sua idade. Percebe-se uma referência a uma mesma origem de Riachão e o negro estranho na frase “que conheceu meu avô” (idéia de uma mesma ancestralidade entre os dois, embora não se conheçam). Pelo comportamento do estranho (de tê-lo convidado a cantar com ele sendo um desconhecido), sendo, portanto, pouco malicioso, Riachão diz ao estranho: “você ta parecendo / que é mais moço do que eu. Dessa forma, coloca o estranho em situação de respeitá-lo também, por ele ser mais velho.


Chula


Iê, água de bebê

Iê, água de bebê camarado (coro)

Aruandê

Iê, Aruandê camarado (coro)

Quis me matá

Iê, quis me matá camarado (coro)

Na falsidade

Iê, na falsidade camarado (coro)

Faca de ponta

Iê, faca de ponta camarado (coro)

Sabe furá

Iê, sabe furá camarado (coro)

Ele é cabecêro

Iê, ele é cabecêro camarado (coro)

É mandinguêro

Iê, ele é mandiguêro camarado (coro)

No campo de batalha

Iê, no campo de batalha camarado (coro)

Viva meu mestre

Iê, viva meu mestre camarado (coro)

Que me insinô

Iê, que me insinô camarado (coro)

A capoêra

Iê, a capoêra camarado (coro)

Da vorta do mundo

Iê, da vorta do mundo camarado (coro)


Percebe-se a presença do diálogo constante entre o puxador do canto e o coro. É uma conversa constante, sempre precedida pelo Iê, que inclusive caracteriza a chula na capoeira. Iê – corrutela de ê! – É uma forma de chamar a atenção do público presente. O puxador conta uma história de uma briga, onde um homem quis matar o outro, utilizando a falsidade como recurso na briga. Ocorre a presença de termos exclusivos do mundo da capoeira (faca de ponta representa a navalha, usada antigamente pelos capoeiristas e também a cotovelada – golpe da capoeira). Água de bebê é referência à água de beber: em algumas localidades do Brasil (principalmente no Nordeste), as pessoas chamam a água potável, portanto boa para beber, de água de beber. Há aqui, a presença de uma metáfora: a água boa é a água de beber. A cantiga começa como se o puxador dissesse que o que vai contar é água de beber, ou seja, puxa a atenção da platéia para o fato que será contado porque o fato é água de beber (é algo bom). Sendo assim, torna-se um discurso metalingüístico nesse sentido (o texto analisa a própria performance). Veja a ocorrência do termo Aruandê: de acordo com Rego (1968, p. 145), “trata-se do vocábulo Luanda, acompanhado de um a protético, seguido da troca do l pelo r na referida palavra e um ê exclamativo. Daí a composição a + Luanda + ê”. Palavra de origem banto, portanto, que representa também uma referência à ancestralidade africana. Da mesma forma, a palavra mandinguêro, que significa feiticeiro. Há também aqui uma metáfora: na capoeira, um mandinguêro é um capoeirista que possui mais habilidade por sua astúcia e malícia na capoeira, há ponto dele realizar coisas no jogo que parecem feitiço. A palavra cabecêro, indicando cabeça, refere-se à cabeçada, golpe comum na capoeira. O puxador diz que o agressor é cabecêro: dá cabeçadas. A referência ao campo de batalha, portanto campo de batalha em guerra pode ser uma metáfora da roda de capoeira e também referência ao campo de batalha na Guerra do Paraguai – para onde muitos capoeiristas foram levados obrigatoriamente para lutar - venceram a luta e voltaram heróis. O capoeira na cantiga louva seu mestre, que lhe ensinou a capoeira (pelo fato narrado percebe-se que o puxador participa da luta através dessa capoeira ensinada por seu mestre). E ainda, a vorta do mundo: além de representar um movimento específico na roda de capoeira, vorta do mundo é uma metáfora do moto-contínuo presente na cosmovisão banto do mundo. Tudo é movimento. Na capoeira, ao mesmo tempo em que se tem vantagem no jogo, perde-se esta vantagem também. Daí a vorta do mundo. É uma lição, uma filosofia de vida repassada através da cantiga.

Corrido

Os corridos são caracterizados, principalmente, pelo diálogo constante entre puxador e coro, através de frases curtas – o que sonoramente – causa um ritmo mais rápido (corrido), porém sem a utilização do Iê presente na chula. Muitas vezes fazem referência ao que está ocorrendo no momento da roda de capoeira, sobre alguma característica de alguém presente na roda de capoeira, sobre algum desafio que possa ocorrer no momento entre dois capoeiristas, pode ser um alerta para algum capoeira durante o jogo ou ainda transmitir lições de vida para o público presente. Podem fazer referência a alguma entidade do candomblé ou serem ditos em palavras de origem diferentes ao português, mescladas com o português, desafiando a compreensão e atenção do público presente. Caracterizam-se por utilizarem sempre metáforas. O último corrido apresentado trata-se de um corrido específico para final da roda de capoeira.

Sto dormindo

Sto sonhando

Stão falando mal de mim

Sto dormindo (coro)

Sto sonhando (coro)

Tão falando mal de mim

Sto dormindo (coro)

Sto sonhando (coro)



So eu, so eu

Quem vem lá (coro)

So eu Brevenuto

Quem vem lá (coro)

Montado a cavalo

Quem vem la (coro)

Fumando charuto

Lembaê Lembá

Lemba do barro vermelho

Lembaê Lembá (coro)

Lemba do vermelho barro



N’golo n’gunzu

Força e poder

Kiatalua não vai me vencer

N’golo n’gunzu força e poder (coro)

Kiatalua não vai me vencer



Adeus adeus

Boa viagem (coro)

Eu vou-me embora

Boa viagem (boa viagem)

Fica com Deus

Boa viagem (coro)

Nossa Senhora

Boa viagem (coro)


3 CONCLUSÃO

As cantigas de capoeira são fontes de ‘literatura oral’ desta performance afro-brasileira. Apresentam características que permitem conhecer a história desta manifestação cultural no Brasil e de seus sujeitos na história. Nesse sentido, são também fontes de história oral dos sujeitos que a vivenciam. Fornecem dados sobre a visão de mundo afro-descendente. Enquanto conhecimento oral permite a preservação e reconstrução da memória coletiva dos capoeiristas, através dos fundamentos e tradição que transmitem. Formam, ainda, a identidade do grupo no momento da roda de capoeira. Definem, junto com os instrumentos musicais na capoeira, a forma do jogo. Trazem constantemente, através de seus diálogos, o espectador pra dentro da dinâmica da roda de capoeira, como participante do processo, testando sua atenção e conhecimento sobre os fundamentos da capoeira. Criam um código de conduta que define a filosofia de vida do capoeirista, a forma como ele deve interagir com o mundo.

Portanto, conhecer estas dinâmicas das cantigas de capoeira, saber ler suas “entre linhas” é de extrema importância para a preservação de sua memória ancestral e construção da identidade desta manifestação cultural, que ocorre no momento de sua execução na roda do jogo de “vadiação”. Para o pesquisador de ciências humanas, os dados orais coletados em campo (ou compartilhados no cotidiano dos sujeitos pesquisados – como no caso das cantigas de capoeira), são fontes preciosas que auxiliam a compreender o significado histórico-cultural das ações dos sujeitos no contexto em questão, devendo, portanto, ser cuidadosamente abordados.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAÚJO, Paulo Coelho de. O revivalismo africano e suas implicações para a prática da capoeira. Revista Mackenzie de educação física e esporte, Universidade de Coimbra, ano I, n. I, 2002.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, 1989.

LANG, A. B. S. G. et al. História oral e pesquisa sociológica: a experiência do CERU. São Paulo: Humanitas, 1998.

LIGIÉRO, Zeca. Perspectivas culturais dos estudos da performance. O Percevejo. Revista de teatro, crítica e estética, Rio de Janeiro, ano 11, n. 12, 2003.

MARTINS, Leda. Performances do tempo espiralar. In: RAVETTI, G; ARBEX, M. (Orgs.). Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte: Faculdade de Letras UFMG, 2002. Cap. 1, p.69-91.

NAKMOTO, Henrique O.; AMARAL, Sílvia C. F. A história oral como possibilidade na investigação e intervenção do lazer em comunidades. In: X SEMINÁRIO O LAZER EM DEBATE, 10, 2009, Belo Horizonte. Coletânia do X Seminário O Lazer em Debate. Belo Horizonte: UFMG, 2009. Anais impressos.

REGO, Waldeloir. Capoeira Angola: Ensaio Sócio-Etnográfico. Salvador: Ed. Itapuã, 1968.

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